TRISTÃO*
João
Henriques da Silva
(In
Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
Quando
Tristão ficou um rapazinho, tornou-se a pessoa mais esquisita do povoado. Andava
pelos cantos sozinho, pensativo e não havia meio de tirá-lo daquela solidão. A
família preocupava-se e os prognósticos eram os piores possíveis. Ia marchando
para uma loucura precoce. Coitado do Antonio. Tristão era seu apelido, nascido
do mutismo em que vivia. Mandá-lo fazer um tratamento específico, mas Tristão
não estava doente.
Dizia
ele:
-
É minha maneira de viver e ninguém se preocupe.
Tristão
quando saia pela cidade ia sempre só e com ar distraído. Quando encontrava
algum companheiro, mal cumprimentava e prosseguia alheio a tudo.
-
Não, não, o rapazinho está mesmo desequilibrado. Sai à noite, volta tarde, com
a mesma cara, o mesmo jeitão de raposa chumbada. E não convinha dizer nada pra
não agravar-lhe o estado de espirito. E o tempo ia se consumindo sem que
Tristão melhorasse daquele mutismo ou pirraça. O mal estava estabilizado. A
família resolveu mandar vigia-lo à noite, numa tentativa de desvendar o
mistério daqueles demorados passeios noturnos. Pelo dia, tudo era claro.
Sabia-se por onde andava Tristão ou pelo menos ninguém procurava saber. Mas o diabo
é que a vigilância não descobria nada de importante, pois Tristão, seguido de
longe, enfiava-se rua a fora e ao dobrar uma esquina, desaparecia como por
encanto. Onde entrava não se tinha certeza e ali só moravam famílias de quem
nada se poderia suspeitar, O fato é que Tristão desaparecia e não voltava pela
mesma rua. O vigilante, oculto, aguardava sua saída de alguma das casas e nem
mais sinal dele. Quando retornava já Tristão estava em casa tranquilamente ou a
sono solto, como um justo.
Acordava
no dia seguinte, tomava seu café, pegava os livros, preparava suas lições e na
hora certa estava na escola. O restante do dia, ao que parece, levava
calculando o que seria o seu passeio noturno. E o mais embaraçoso é que
frequentava ruas diferentes e ninguém desvendava o mistério. Ora desaparecia
numa, ora na outra, apesar de sua sumisse, a mãe, sutilmente, procurava
interroga, mas ficava sempre na mesma. A resposta era a mesma:
- Andando por aí!
-
Mas por aí, onde Tristão?
-
Pelas ruas, olhando as casas, as pessoas que passam ou então paradas
conversando. Distraio-me assim. Fico até me dar sono ou vontade de voltar.
Gosto do silencio das noites. Sinto-me muito bem e volto aliviado.
-
E porque não conversas com os companheiros, não te divertes como eles. É bom
para a saúde para o espirito.
-
Ora, ninguém tem mais tranquilidade do que eu. Não incomodo ninguém, ninguém me
incomoda e levo a vida que gosto.
Mas,
um belo dia a dinamite estourou. Tristão deflorara e engravidara uma moça, com
promessas de casamento. A mãe chamou às falas. Queria uma explicação de tamanho
desavergonhamento. E Tristão, com a maior naturalidade, perguntou a dona Sofia:
-
Qual delas?
-
Qual delas, como, hem Tristão?
-
Sim, porque são três. As outras são mulheres sem responsabilidade minha. Moças
maiores, viúvas e mulheres casadas que não se dão a respeito. Quando à noite,
ando percorrendo as ruas, sempre tem uma me esperando. E entro na primeira casa
que me dão sinal verde.
-
Mas, que horror, seu degenerado!
-
Degenerado não. Chamam-me e eu entro. Degenerado são elas que me viciaram.
Sabem que sou caladão, não ando contando lérias e confiam em mim.
-
E agora tens que te casar. Como será então?
-
Não vai acontecer nada. Todo mundo me tem em conta de doido e qual é o pai
sensato que vai querer casar suas filhas com um doidão de minha espécie. Está
na cara que não. Nem se assuste. Saberei me defender. A única com quem poderia
me casar é a viuvinha Aglair. Gosto da danada e ela é rica e me promete tudo. E
é o que vou fazer o mais depressa possível. Vou lá agora mesmo, falar com ela.
A gente foge e vai casar. Não gosto das outras. Ia lá porque insistiam, ou por
não ter o que fazer de melhor.
-
É bem certo que és mesmo doido varrido.
-
Sou não, mãe. Não queria ser desatencioso. As mulheres merecem todo respeito e
atenções. Não queria ser desagradável com elas.
-
Mas logo tu, com esta cara de sonso. É por isto que não queriam companhias nos
teus passeios.
-
E acha que podia dar certo. Sempre fui muito conveniente. Para estas coisas não
se tem companheiros nem amigos. Amores de um lado, negócios de outro. Sei não.
Pode ter sido errado, mas foi uma ótima distração. As noites se passavam sem me
sentir.
-
E as filhas dos outros, como irão ficar, seu irresponsável. Estragastes a vida
de muita gente. E ainda estás arriscado a sofrer um desacato.
-
Não fiz nada com elas. Elas que me chamaram e só faltaram pegar-me à força.
Todas sabem que sou um abobalhado. Nem me bate o papo.
Oito
dias depois já se sabia de mais de uma dúzia de casas envolvendo o Tristão.
Quem
não sabia que Tristão era um insano. Requereram um internamento em escola de
recuperação. Falaram com o Juiz e o médico. Mas antes da coisa sair, já Tristão
havia caído no mundo com a viuvinha. E lá do Brejo das Freiras escrevera à mãe,
que fora embora para João Pessoa com vergonha da situação:
Casei-me
com a viúva. Apesar de já nos conhecermos a quase doze meses, inventamos uma
lua de mel. Faça-me o favor de avisar às outras namoradas a quem havia
prometido casamento, que resolvi desistir. Não forneça meu endereço a ninguém.
Caso o Dr. Juiz ou o delega, me procurem, diga-lhes que não sabe de meu
paradeiro e que, além disso, sou biruta. Todos sabem disso, A viuvinha é cheia
das granas. Aqui não nos falta nada, Depois vou trazer à senhora para conhecer
esta maravilha que é a estação de tratamento e o hotel. Qualquer complicação
avise-me por carta ou pelo telefone. Mudei muito. Hoje sou um tagarela, jogo
bola, monto a cavalo e gosto de fazer camaradagem. Já estou gostando de duas
meninas daqui. Não sei em que vai dar. Prometi casamento às duas. Minha
viuvinha não sabe de nada e a coisa já vai muito adiantada. Espero cumprir
minha promessa. Gosto de ser honesto. Aqui se comem muito bem e os banhos
térmicos dão uma fome de comer até pedras. Avise-me quando poderei retornar. Vida
boa, aliás, não quer pressa. Enquanto a viuvinha tiver dinheiro, estarei com
ela. Tenho até pena de mais tarde ter que deixa-la. Uma mulher só, por muito
tempo, enjoa.
Quantas
buchudas já apareceram? Será que a família ficou braba. Afinal de contas, a
culpa foi dessas doidinhas, Sabiam que eu não tinha bom juízo e me convidavam.
Tenha cuidado com suas amizades com certas casadinhas, Elas me enganaram
também. Ao lado mando uma relação das donas que vieram a mim. É sigiloso.
Sempre fui uma vítima inocente das mulheres. Aproveitava-se de minha doidice.
Mas não há de ser nada. Escapei com saúde. Só poderei voltar mesmo quando as
assanhadas daí se acalmarem. Parece que ainda há quem não creia na força do
destino. E aí está o que tem me acontecido. Sempre fui uma vitima das mulheres.
Que coisa mais desagradável essa de ter que aturá-las. A viuvinha creio que
esta pensando que vai me perseguir por muito tempo. Qualquer dia destes o
destino arruma-lhe as trouxas. Já me exploraram demais. Tenho aturado por ser o
que mais me prendeu. Mas estou estudando com carinho o que terei de fazer. Ela
está pensando que o céu é bem ali. E coitada, faz tudo por mim, mas não posso
com o destino. Há, no entanto, um empecilho. Enganou-me e nos casarmos. Sou sempre
uma vítima das mulheres. O destino, o destino, o grande culpado.
Quando
procuraram Tristão em Terra Quente, depois que a bomba estourou, não acharam
nem o rastro. Souberam somente que a viuvinha havia também sumido. O Dr. Juiz
considerou-o um tarado. Louco e tarado. E só havia uma solução. Deixar os furos
pra lá e internar Tristão numa casa de recuperação onde não houvesse mulher.
Mas todo mundo ficou curioso da saber que atração danada era aquela do malucoíde.
Se demorasse mais em Terra Quente, completaria a devastação. Ou era reza forte
ou total depravação. E a boca pequena se comentava que havia mais casos
encobertos daquelas que não queriam aparecer.
O
Dr. Juiz decretou a prisão de Tristão e ordem ao delegado para agarra-lo, antes
que aumentasse o número das vítimas. As cidades vizinhas foram varridas, mas
quem iria supor que Tristão estava em Brejo das Freiras, tomando seus banhos
térmicos e bem zelado pela viuvinha a única que tivera sorte de prendê-lo. Além
do mais Tristão estava usando seu nome próprio. E quando tudo estava quase
esquecido, Tristão foi surpreendido. O velho Napoleão, com doenças de pele que
foi mandado às águas radioativas de Brejo.
Era
o único meio rápido de cura. Deu de cara com Tristão que não o reconhecia.
Homem de fazenda, frequentando poucas vezes a cidade, era um estranho para ele.
Napoleão não desejava fazer mal a ninguém e acreditava que o mau por si só se destroem.
Deixava para lá o Tristão. No entanto, não demorou muito que o tarado começasse
a rondar sua filha, mocinha de 18 anos e dessas moreninhas atraentes. Então não
poderia mais silenciar. Ligou o telefone e contou tudo ao Dr. Juiz, o seu
achado inesperado.
O
Tristão não o conhecia e nem falava em sair. Estava, pelo que via, premeditando
novos assaltos aos lares alheios, apesar de acompanhado por uma mulher que já
havia visto em Terra Quente. Mulher ou amante, não sabia. O Dr. Juiz pediu-lhe
para manter o sigilo e aguardasse a visita do delegado. E não tardou. No dia
seguinte à noite, já o delegado estava espreitando Tristão. Iria apanhá-lo de
surpresa e levá-lo para ajustar contas como Juiz e a policia.
-
O senhor é Tristão de Terra Quente, não é?
-
Puro engano. Meu nome é Antonio.
-
Muito bem, é o senhor mesmo que irá já e já voltar comigo.
-
Não pode fazer isto. É uma arbitrariedade.
-
Pode até ser, mas isto o senhor irá reclamar do Dr. Juiz, lá mesmo em Terra
Quente.
-
O moço está aí Dr. Juiz.
-
Traz o bicho aqui. Quero ver-lhe a cara. Bem, é você. Já o conhecia. Sim,
senhor taradinho, não é?
-
Dr. Sou um homem casado e tenho uma vida normal. Essas coisas de que me acusam,
são infamantes. Como me tem em conta de doido, jogam em cima de mim todas as
safadezas da cidade. Aperte essa gente que saberá quem são os autores. Estive
com algumas delas, é verdade, mas nenhuma era mais moça, seu doutor. Mas quem
paga sou eu que nada tenho a ver com virgindade de ninguém. Além disso, nunca
procurei nenhuma, como sempre fui caladão e triste, sabiam que eu não ia dizer
nada e por isto me chamavam. Eu nem sabia para que. A viuvinha com que me casei,
começou assim e foi ela quem me pediu para casar com ela. Foi tudo assim. Nem
sabia quem eram. E agora é Tristão o culpado. O que vai fazer comigo doutor?
-
Sabes de uma coisa, Tristão, vai viver com tua viuvinha. Mas não abandone e nem
te metas com outras mulheres.
-
Deus me livre doutor. Já fui muito caluniado. O que acontece de bom não me atribuem.
Somente as maldades. Sempre fui um jovem infeliz até para amar me levaram à
força ou enganado. Sofri muito. E o senhor sabe, existem mulheres horríveis.
Mulheres insaciáveis e traiçoeiras. Mulheres ambiciosas que não querem outra
coisa senão dinheiro, joias, domínio. Outras são depravadas e não respeitam o
lar nem o marido. De tudo isto já conheci. E, francamente, cheguei a odiá-las.
E, senhor Juiz, nestas casas só o homem é o culpado. As mulheres são sempre as
vítimas, quando, muitas vezes são elas que seduzem e se entregam. Há casos até
em que ameaçam, conheço um caso com mulher casada. O homem não queria aceitá-la
por respeito ao lar e ao marido. Pois bem, senhor Juiz, ameaçou de contar ao
marido, no caso de recusa, que ele estava tentando insistentemente, conquistá-la.
E que se houvesse com o marido. Uma paixão desenfreada leva a semelhante
situação. E, quando a mulher não quer, a não ser em caso de violência, não se
entrega a ninguém. Geralmente querem os dois. E há mulheres que se expõe, como um
desafio. Começa a mostrar partes internas, a se esfregar, a querer engolir com
os olhos e com os gestos os seus namorados, E é aí que se perde a reflexão e
ponto final na história.
Aliás,
quem fez mulher e homem e lhe deu órgãos para o prazer, não fez à toa. Se o
amor fosse livre, sem essa formalidade social, cumpria-se esse ato natural sem
água benta e sem código, como uma coisa banal. Mas, aí está o que é bom se
proíbe só para complicar a vida. E onde se coloca a honra das mulheres. O
senhor sabe onde é. No sexo, seu Dr. Juiz, Que vergonha. Valoriza tanto esse
negócio que foi não foi o bichinho dá cadeia em gente e até morte.
Se
elas não se botassem pra cima da gente, o mundo viveria na santa paz. Mas sabem
que são sempre as vítimas e se soltam na buraqueira. Uma moça deflorada é uma
vergonha. Um homem virgem é uma outra vergonha ainda maior. A sociedade, por
sua vez, humilha as moças velhas, que não tiveram a sorte de se casar. Quem
entende tanta contradição. Um donzelo, Deus nos acuda, é uma vergonha e maldam
logo que é aquilo que o senhor sabe. Uma moça que não é mais virgem, ninguém a
quer mais para casar e se casa enganando, abandona-a só por causa de uma
membranazinha insignificante. A mulher continua a mesma, mas tem que ser virgem
intocada. Não, não há quem aguente tanta confusão. Pois olhe, me acusam de
haver derrubado uma porção de meninas, e nenhuma é tão boa quanto à viuvinha
com quem me casei e que o senhor determina que não me separe mais dela. Era bom
que o senhor a conhecesse na cama, para ver o que é uma mulher especial.
-
Vai, vai embora Tristão, antes que a coisa piore e termine trazendo tua
viuvinha para eu conhecê-la.
-
Trazer, não, mas vou mandá-la e vai ver o que é uma mulher... Depois me diga.
Como é mando ou não mando.
-
Já que és tão generoso, manda, manda... Tristão...
*O conto faz parte
do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário