DONA
ALBERINA*
João Henriques da
Silva
(In Memoriam
20/09/1901 – 16/04/2003)
Dona Albertina tinha ódio de quem
falava da vida alheia. Por que cada um não cuidava de si, de sua casa, dos filhos
e, se não tivesse; dos seus afazeres. Por isso saía pouco, fazia poucas visitas
e conversava menos ainda. Nem sabia como Deus não castigava essa gente,
enferrujando-lhe a língua de trapo. Quando corriam os boatos contra A ou B,
largava-se para a igreja a rezar pelas pessoas envolvidas. Não lhe interessava saber
se era verdade ou não. Defeitos todas tinham, e talvez o pior de todos fosse
justamente aquele de retaliar a conduta dos outros.
Mas a coisa não parava. Ninguém respeitava
ninguém. E certo dia deliberou-se a fazer uma campanha aberta contra as linguarudas.
Falou com uma, falou com outra e a resposta era a mesma – “Deus me livre de
meter-me com a vida alheia”.
- Mas o que eu quero minha gente, é
que não se fale de ninguém. Não temos nada a ver com o comportamento de nossos
semelhantes.
- Muito bem, dona Alberina e como à
senhora quer se meter com a vida dos outros. Que temos nós a ver que alguém fale
de alguém. É a liberdade de imprensa, falada e escrita. E depois faltaria
assunto para as reuniões, os segredinhos, os bate-papos de todas as horas. Ora,
seria um desastre, todo mundo de bico trancado só olhando uns para os outros. O
mundo precisa se distrair.
- Então minha comadre, o que se tem
haver com a mulher do Cesário. Tem os seus namorados por que gosta de variar
ou, quem sabe, o marido fede a molambo. Ele não se está incomodando e então que
temos nós a ver com isso. E está aí, a Tilita namora um e outro, sai todas as
noites, chega à hora que quer, e se fica a falar da menina, estragando sua
vida. Tudo errado, erradíssimo. Todo mundo sabe que Chico Coró é um corno de
mãos lavadas. Quem bota chifre nele é a mulherzinha que tem e o pobre é quem
anda na língua ferina do povo. Sou contra essas misérias todas. Deixe o homem em paz. Acham pouco o peso
da chifrada que a santinha da mulher lhe bota.
- Essa não! Não tem que ninguém
saber da vida de ninguém. Mau costume, safadeza, pura safadeza. E veja só.
Andaram espalhando que aquele rapagão é filho do vigário, segundo dizem as más
línguas, não é sério. Diga-me cá que diabo se tem a ver com isto. Acha pouca à
fraqueza do rapagão, a feiura de uma coisa dessas. Desumanidade. Cada um é o
que quer ser. Deus fez o mundo assim e assim andará até que o diabo leve tudo
numa nuvem de fumaça de enxofre. Eu é que não me conformo. Já o padre novo que
chegou está sendo levado às vias da amargura. O que é que tem que o santo
representante de Cristo tenha em casa uma arrumadeira nova e apresentável? Se
tivesse um besuntão, velha e suja, diriam que o ministro era relaxado e
miserável... Todo mundo sabe que um padre é proibido de fazer certas coisas.
Juram castidades. Pois bem, nem isso respeitam.
- Está vendo aí. Faz hora que não
falta assunto é porque a comadre não sai de casa, não gosta de conversa. Eu por
exemplo não sabia dessas coisas que acaba de me contar. Mas, agora, já tenho
matéria para entreter as amigas por algum bom tempo. E todos vão acreditar
porque foi à senhora, quem disse.
- Vê bem! Se falares no meu nome,
contarei o que sei de tua vida. Pensas que não sei do que te aconteceu, tempos
depois de casada. Cala teu bico.
- Nunca me aconteceu nada, sinha desavergonhada.
- Sei que não, mas espalho. Não
gosto disso, mas farei tranqüilamente.
- Pois podes ficar certa de que
descasco a tua vida. Teu marido morreu de desgosto pela tua conduta e há quem
diga que botaste veneno na boca do homem quando dormia. E quem sabe se não foi
isto mesmo. Um homão sadio e forte daquele, morrer assim à toa. Prepara-te para
o que der e vier. Sou uma mulher honesta, sempre fui e serei. E o que tem feito
às ocultas depois de viúva. Estas pensando que o povo não sabe sinha crueira
envenenada!
- Olha minha comadre. Vamos acabar
com isso. Eu estava brincando contigo. Sabes que sou contra fuxicos.
- Pois bem. Ficas prevenida. E não
te esqueças de tua vidinha de primeira zeladora da igreja. Andas com ciúme da
arrumadeira do padre e estás te fingindo de defensora do santo vigário, como
diz. Tu e ele comestes na mesma gamela. Apenas estou te advertido e isto será o
mínimo que poderá te acontecer. Quem não vê e não sabe dos teus paleio com o
padre Damião. Que diabo ficas fazendo na igreja o dia todo, antes e depois das rezas.
- Sou uma mulher viúva e respondo
pelos meus atos. Não tenho que prestar contas a ninguém.
- Ah! É assim, não é? Pois as outras
também são. Prepara-te. Já sei que toda a fuxicada desta cidade sai de tua boca
suja.
- Suja, não. Escovo-o três vezes por
dia.
- Pois vai te danar e não me apareça
mais.
- Esta não. Não quero nem tolero
inimizades, especialmente com as minhas comadres... Prepara uns bolinhos e um
bom café que amanhã lá para as três da tarde, receberás minha visita.
- Se for, coloco veneno nos bolos...
- Bobagem, minha comadre. Faz de
conta que não houve nada. É até divertido um bate-papo assim. Não foi um
momento de boa intimidade? A vida sem esses arrebites é uma comida sem sal. É
bem verdade que detesto falar da vida alheia, mas uma vez ou outra a gente tem
que desopilar. E já sei que não sabes da última. Só para nós duas.
- Conta, conta minha comadre de
minha alma!
- A arrumadeirinha do padre está
mais cheia do que uma pitomba. E o padreca não sabe o que faça. Segundo me
disse a sirigaita, seu vigário vai mandá-la embora. Vai fazer uma festa para
arrumar dinheiro para ela. São dois descarados. Perdi a fé naquele sujeito. Eu
que cuido da igreja, não recebo um tosteco e quando a bichota não estava lá, me
tratava como se eu fosse alguma galinha pedrês. Estou disposta a fazer um
escândalo. Isto mesmo vou dizer-lhe na próxima confissão. Vou descoser-lhe as
orelhas. Ou divide comigo o rendimento da festa ou solto a língua no mundéu.
Está muito enganado.
- Pois não é minha comadre. Só
porque a safadinha é mais nova do que eu. Guarda segredo. Deixa comigo. O
padreca vai ver quanto dói uma saudade.
- Já sabia a muito tempo de tuas
ligações, mas isso é problema só teu.
- Ah! Menina é raro encontrar um que
tenha vergonha nas fuças... Quando encontram qualquer facilidade enfiam logo a
cabeça e entram de cara adentro, como se fossem os donos.
- Ora, se não têm a quem prestar
contas. Não têm mulher, não possuem filhos legítimos, não têm um lar a zelar,
vivem por aí, dando saltos sem peia e cabresto; bem alimentados e vadios. Tem
as beatas para lhes dar tudo, até casa boa para morar. É uma organização
terrível.
- Oferecem o céu e ameaçam com o
inferno e os fracos e os ignorantes ajoelham-se aos seus pés pedindo perdão.
Tem o céu garantido, façam o que fizerem. Queimaram muitos inocentes, juntaram
fortunas e continuam explorando Cristo, forjicando histórias de Troncoso. Fazem
o que querem, sem uma Ave Maria de penitência. Pelo contrário, são
santificados.
É pecado mortal, dizer qualquer
coisa de seu vigário. Se disser terá que ir pedir-lhe perdão. É pouco o que te
acontecer...
- Ora, pensava que não podia
recusar-lhe nada. E o safadório, botou-me de lado como um bagulho. Agora está
santificando arrumadeira... E nem posso dizer nada. Mulher de padre não há mais
reza que salve.
- Nem água benta tira-lhe mais a
sujeira. Fazia do que fazia e, casava, batizava, celebrava, sem tomar banho ou
lavar as mãos. Nunca me deu nada. Parecia que estava me fazendo um favor ou me
santificando. Agora estou toda emporcalhada de corpo e alma e o besuntão
esquecido do mal que me fez e da sujeira que me deixou. Seria bom mesmo que
houvesse inferno para queimar-lhe a sem-vergonhice. Mas sabe que não há e dorme
tranqüilo como um justo. Mas vai me pagar. Vou chupar-lhe as economias.
Recorrerei até ao delegado dizendo que fui violentada.
- A culpa foi tua. É melhor ficares
como estás. Ninguém irá dar-te crédito. A palavra do padre é sagrada... Gostastes
da coisa, não foi...
- Foi mesmo. O que passou passou. É
por isto que prezo a tua amizade. Sempre dais boas advertências. Além do mais é
coisa feia mexer com a vida alheia... Um vigário merece todo respeito. O
culpado é o direito canônico que não consente casamento de padre. Coitado
deles. Tem que viver dessas beliscadas...
Em
20.4.85
*O
conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
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