quinta-feira, 23 de abril de 2015

DONA ALBERINA

DONA ALBERINA*


João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


            Dona Albertina tinha ódio de quem falava da vida alheia. Por que cada um não cuidava de si, de sua casa, dos filhos e, se não tivesse; dos seus afazeres. Por isso saía pouco, fazia poucas visitas e conversava menos ainda. Nem sabia como Deus não castigava essa gente, enferrujando-lhe a língua de trapo. Quando corriam os boatos contra A ou B, largava-se para a igreja a rezar pelas pessoas envolvidas. Não lhe interessava saber se era verdade ou não. Defeitos todas tinham, e talvez o pior de todos fosse justamente aquele de retaliar a conduta dos outros.
            Mas a coisa não parava. Ninguém respeitava ninguém. E certo dia deliberou-se a fazer uma campanha aberta contra as linguarudas. Falou com uma, falou com outra e a resposta era a mesma – “Deus me livre de meter-me com a vida alheia”.
            - Mas o que eu quero minha gente, é que não se fale de ninguém. Não temos nada a ver com o comportamento de nossos semelhantes.
            - Muito bem, dona Alberina e como à senhora quer se meter com a vida dos outros. Que temos nós a ver que alguém fale de alguém. É a liberdade de imprensa, falada e escrita. E depois faltaria assunto para as reuniões, os segredinhos, os bate-papos de todas as horas. Ora, seria um desastre, todo mundo de bico trancado só olhando uns para os outros. O mundo precisa se distrair.
            - Então minha comadre, o que se tem haver com a mulher do Cesário. Tem os seus namorados por que gosta de variar ou, quem sabe, o marido fede a molambo. Ele não se está incomodando e então que temos nós a ver com isso. E está aí, a Tilita namora um e outro, sai todas as noites, chega à hora que quer, e se fica a falar da menina, estragando sua vida. Tudo errado, erradíssimo. Todo mundo sabe que Chico Coró é um corno de mãos lavadas. Quem bota chifre nele é a mulherzinha que tem e o pobre é quem anda na língua ferina do povo. Sou contra essas misérias todas. Deixe o homem em paz. Acham pouco o peso da chifrada que a santinha da mulher lhe bota.
- Essa não! Não tem que ninguém saber da vida de ninguém. Mau costume, safadeza, pura safadeza. E veja só. Andaram espalhando que aquele rapagão é filho do vigário, segundo dizem as más línguas, não é sério. Diga-me cá que diabo se tem a ver com isto. Acha pouca à fraqueza do rapagão, a feiura de uma coisa dessas. Desumanidade. Cada um é o que quer ser. Deus fez o mundo assim e assim andará até que o diabo leve tudo numa nuvem de fumaça de enxofre. Eu é que não me conformo. Já o padre novo que chegou está sendo levado às vias da amargura. O que é que tem que o santo representante de Cristo tenha em casa uma arrumadeira nova e apresentável? Se tivesse um besuntão, velha e suja, diriam que o ministro era relaxado e miserável... Todo mundo sabe que um padre é proibido de fazer certas coisas. Juram castidades. Pois bem, nem isso respeitam.
- Está vendo aí. Faz hora que não falta assunto é porque a comadre não sai de casa, não gosta de conversa. Eu por exemplo não sabia dessas coisas que acaba de me contar. Mas, agora, já tenho matéria para entreter as amigas por algum bom tempo. E todos vão acreditar porque foi à senhora, quem disse.
- Vê bem! Se falares no meu nome, contarei o que sei de tua vida. Pensas que não sei do que te aconteceu, tempos depois de casada. Cala teu bico.
- Nunca me aconteceu nada, sinha desavergonhada.
- Sei que não, mas espalho. Não gosto disso, mas farei tranqüilamente.
- Pois podes ficar certa de que descasco a tua vida. Teu marido morreu de desgosto pela tua conduta e há quem diga que botaste veneno na boca do homem quando dormia. E quem sabe se não foi isto mesmo. Um homão sadio e forte daquele, morrer assim à toa. Prepara-te para o que der e vier. Sou uma mulher honesta, sempre fui e serei. E o que tem feito às ocultas depois de viúva. Estas pensando que o povo não sabe sinha crueira envenenada!
- Olha minha comadre. Vamos acabar com isso. Eu estava brincando contigo. Sabes que sou contra fuxicos.
- Pois bem. Ficas prevenida. E não te esqueças de tua vidinha de primeira zeladora da igreja. Andas com ciúme da arrumadeira do padre e estás te fingindo de defensora do santo vigário, como diz. Tu e ele comestes na mesma gamela. Apenas estou te advertido e isto será o mínimo que poderá te acontecer. Quem não vê e não sabe dos teus paleio com o padre Damião. Que diabo ficas fazendo na igreja o dia todo, antes e depois das rezas.
- Sou uma mulher viúva e respondo pelos meus atos. Não tenho que prestar contas a ninguém.
- Ah! É assim, não é? Pois as outras também são. Prepara-te. Já sei que toda a fuxicada desta cidade sai de tua boca suja.
- Suja, não. Escovo-o três vezes por dia.
- Pois vai te danar e não me apareça mais.
- Esta não. Não quero nem tolero inimizades, especialmente com as minhas comadres... Prepara uns bolinhos e um bom café que amanhã lá para as três da tarde, receberás minha visita.
- Se for, coloco veneno nos bolos...
- Bobagem, minha comadre. Faz de conta que não houve nada. É até divertido um bate-papo assim. Não foi um momento de boa intimidade? A vida sem esses arrebites é uma comida sem sal. É bem verdade que detesto falar da vida alheia, mas uma vez ou outra a gente tem que desopilar. E já sei que não sabes da última. Só para nós duas.
- Conta, conta minha comadre de minha alma!
- A arrumadeirinha do padre está mais cheia do que uma pitomba. E o padreca não sabe o que faça. Segundo me disse a sirigaita, seu vigário vai mandá-la embora. Vai fazer uma festa para arrumar dinheiro para ela. São dois descarados. Perdi a fé naquele sujeito. Eu que cuido da igreja, não recebo um tosteco e quando a bichota não estava lá, me tratava como se eu fosse alguma galinha pedrês. Estou disposta a fazer um escândalo. Isto mesmo vou dizer-lhe na próxima confissão. Vou descoser-lhe as orelhas. Ou divide comigo o rendimento da festa ou solto a língua no mundéu. Está muito enganado.
- Pois não é minha comadre. Só porque a safadinha é mais nova do que eu. Guarda segredo. Deixa comigo. O padreca vai ver quanto dói uma saudade.
- Já sabia a muito tempo de tuas ligações, mas isso é problema só teu.
- Ah! Menina é raro encontrar um que tenha vergonha nas fuças... Quando encontram qualquer facilidade enfiam logo a cabeça e entram de cara adentro, como se fossem os donos.
- Ora, se não têm a quem prestar contas. Não têm mulher, não possuem filhos legítimos, não têm um lar a zelar, vivem por aí, dando saltos sem peia e cabresto; bem alimentados e vadios. Tem as beatas para lhes dar tudo, até casa boa para morar. É uma organização terrível.
- Oferecem o céu e ameaçam com o inferno e os fracos e os ignorantes ajoelham-se aos seus pés pedindo perdão. Tem o céu garantido, façam o que fizerem. Queimaram muitos inocentes, juntaram fortunas e continuam explorando Cristo, forjicando histórias de Troncoso. Fazem o que querem, sem uma Ave Maria de penitência. Pelo contrário, são santificados.
É pecado mortal, dizer qualquer coisa de seu vigário. Se disser terá que ir pedir-lhe perdão. É pouco o que te acontecer...
- Ora, pensava que não podia recusar-lhe nada. E o safadório, botou-me de lado como um bagulho. Agora está santificando arrumadeira... E nem posso dizer nada. Mulher de padre não há mais reza que salve.
- Nem água benta tira-lhe mais a sujeira. Fazia do que fazia e, casava, batizava, celebrava, sem tomar banho ou lavar as mãos. Nunca me deu nada. Parecia que estava me fazendo um favor ou me santificando. Agora estou toda emporcalhada de corpo e alma e o besuntão esquecido do mal que me fez e da sujeira que me deixou. Seria bom mesmo que houvesse inferno para queimar-lhe a sem-vergonhice. Mas sabe que não há e dorme tranqüilo como um justo. Mas vai me pagar. Vou chupar-lhe as economias. Recorrerei até ao delegado dizendo que fui violentada.
- A culpa foi tua. É melhor ficares como estás. Ninguém irá dar-te crédito. A palavra do padre é sagrada... Gostastes da coisa, não foi...
- Foi mesmo. O que passou passou. É por isto que prezo a tua amizade. Sempre dais boas advertências. Além do mais é coisa feia mexer com a vida alheia... Um vigário merece todo respeito. O culpado é o direito canônico que não consente casamento de padre. Coitado deles. Tem que viver dessas beliscadas...

Em 20.4.85
*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.


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