FREI FORTUNATO*
João
Henriques da Silva
(In
Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
Fortunato já
nasceu morto de preguiça. Cresceu assim e assim continua já aos 45 anos de uma
vida atribulada. Era dessas criaturas sem ar para nada. O pai lhe deixara de
herança meia dúzia de casas na cidade de onde nunca saiu. Morava na menor e
alugava as cinco outras. Achava que era um sacrifício danado ter que ir receber
os aluguéis, obrigado que fosse a ter essa ocupação cinco vezes por mês. Talvez
até houvesse um meio de evitar, mas tinha preguiça de pensar nisso. Queixava-se
sempre aos amigos de tal chateação. E o que o contrariava mais era ter dia
marcado para fazê-lo. Alguém, então, o aconselhou a nomear um cobrador. Daria
uma pequena gratificação e ficaria livre da obrigação. Aceitou a sugestão e foi
direto à questão. Ofereceu ao amigo. “Ficarás tu se quiseres”.
- Não, Fortunato.
Dei-te apenas a idéia. Deus me livre de sair para fazer cobranças. Tenho já
demais o que fazer.
- E o que é que fazes
tanto. Tens dinheiro sobrando nos bancos e o teu trabalho é ir lá buscar quando
queres.
- Não é isto,
Fortunato. Tenho que gastá-lo e aí é que está a trabalheira.
- Ora, homem,
gastar dinheiro é uma delicia. É só pedir, receber, pagar o que se deseja.
- Só! Se fosse
assim seria uma beleza. Tenho que fazer economia, economia, entende. Tenho que
andar de casa em casa procurando o mais barato. E mesmo assim ainda tenho sido
enganado. Olha, faço uma verdadeira ginástica. Não posso gastar mais do que
cinqüenta por cento dos juros. O dinheiro tem que ir crescendo, custe o que
custar. E tudo isso é um quebra cabeça dos demônios.
- Quem compra o
mais barato, sempre compra o pior. E o barato sai caro.
- É o que pensas.
Depende muito da forma de usar. Usa-se cautelosamente e compra-se sempre um
pouco folgado quando se trata de roupas, sapatos, chapéus. Quem compra apertado
só vive apertado.
- Mas é necessária
muita paciência e não ter o que fazer.
- Pois é. Além
disso, o meu dinheirinho foi ganho suado e tenho que multiplica-lo. Ando limpo,
como o suficiente para viver bem alimentado e sem preocupações. Faço meus
cálculos para saber o que posso gastar diariamente. Mas, afinal de contas,
quanto pagas pelas cobranças?
- Dois mil réis
por casa. Cinco, são dez naras.
- Ora, isso irei
gastar de sola de sapato e de suor. Pagas cinco por cada casa?
- Só se eu
tivesse comido picado de cachorro da moléstia. Queres ficar rico às minhas
custas, sabidão.
- E por que tu
mesmo não vais cobrar. Não fazes outra coisa. Deixa-te de tanta preguiça.
- Preguiça, não.
É maneira de viver. Não me dou com trabalho. Qual quer que seja me aborrece.
Queria era estar em teu lugar. Dinheiro no banco. E a propósito, queres comprar
minhas casas?
- Só se for
agora, dependendo do teu preço, do meu dinheiro e dos inquilinos, se são bons
pagadores.
- São ótimos,
Nonato. Pagam em dia, certinhos. Só que tenho de ir lá mês por mês, pegar o
dinheiro e odeio obrigação. O dinheiro no banco, não, irei o dia que quiser.
- E o preço?
- Vendo barato.
Quero é sair desse empresado. Aliás, estou te avisando. Cobrança, cinco dias
por mês.
Afinal foram a
preço, o montante era menor do que os depósitos de Nonato e tráz-zás, negócio
fechado. As escrituras correram rápidas. O Fortunato nem tinha noção do preço
das coisas. Vendeu como bolo e deixou o dinheiro no mesmo banco. Agora sim era
outro homem. Dinheiro no banco, vivendo dos juros.
Nonato já havia
planejado tudo e estava bem informado. Procurou negócio para as casas. Vendeu a
primeira pelo duplo do preço e dinheiro na conta bancaria. Por fim negociara as
cinco. Quase duplicou o depósito. Preferia não avistar Fortunato. Receava que
ele fizesse perguntas. Em cidade pequena sabia-se de tudo. Mas certo dia
topou-se no banco.
- Ola, Nonato.
- Ola, Fortunato.
- Como vais com
os inquilinos? - Já sabia dos negócios, mas fazia-se de inocente.
- Não tive
paciência de andar cobrando e vendi as casas e tinhas razão. É uma cosa
incômoda.
- Por quanto?
- Quase o
mesmo preço. Foi só para não perder dinheiro.
- Bobagem,
sei por quanto vendestes. Quase o dobro do preço. Isso não se faz com um amigo.
Está com o banco abarrotado, seu espertinho.
- Ora,
companheiro por quanto me oferecestes.
- Deverias
ter me chamado atenção.
- Não gosto
de me intrometer nos negócios alheiros. Poderia até te sentires ofendido, pensar
que estava de chamando de otário.
- Coisa
nenhuma. Mas não faz mal. Tudo corre por conta de minha velha preguiça. O
preguiçoso, o comodista, só anda arrasado. Bem que podia me dar mais alguma
coisa. Mandar creditar em minha conta um pouco dos juros.
- E com que é
que fico. E o meu trabalho, minhas preocupações. Preguiça da nisso. Não queres
vender a outra. Mandarei creditar em tua conta, como desejas. Ficará me pagando
aluguer. E não tenhas cuidado de que não terei preguiça de cobrar-te.
- Assim, não.
Vendo-te e fico morando de graça. Estás rico as minhas custas, à custa de minha
burrice.
- Certo.
Enquanto for dono morarás de graça. Diz o preço. É a menor das seis.
- Mas é a
melhor localizada. E está quitadinha.
E lascou um
preção. Queria tomar uma desforra.
- Estás
doido. Dou a metade. E enquanto não sair daqui. Meu dinheirinho está aí
quentinho, soltando uns filhotes todos os dias. E o banco mesmo é que dá de
mamar. Não tenho trabalho. Mas deixa de ser burro. Onde irás morar?
- Numa
pensão. Estou enfadado de estar cuidando de casa. Uma trabalheira dos diabos.
Pagar empregada, dinheiro pra feira, lavagem de roupa, tudo. Não imaginas.
Estou cansado dessas coisas.
- Que tanta
preguiça é esta Fortunato. E abre teus olhos que o dinheiro em banco também se
acaba. Cuida em comprar barato e fazer economia.
Não houve
jeito. Fortunato vendeu a casa de morada e instalou-se numa pensão. E depois
sumiu. Nem notícia de Fortunato. Nonato teve receio que lhe houvesse acontecido
qualquer coisa de grave. Houvesse, por exemplo, caído no fundo de algum açude e
desaparecido misteriosamente. Por fim voltou a pensar. E se tivesse
enlouquecido e saído pelo mundo afora. Tudo seria possível num sujeito tão
morto de preguiça. E poderia até ter culpa com a compra das casas e o depósito
do banco.
Mais de dois
anos se foram sem qualquer vestígio. Sem parentes na cidade, ninguém se
preocupava com sua ausência.
Procurava
tira-lo da memória, mas não conseguia. Ia, voltava e era assim como uma coisa
que estivesse grudada em sua memória. Chegaram às festividades da padroeira,
Nossa Senhora do Desterro. O senhor Bispo havia sido convidado para o
encerramento e traria um pregador para a última noite. Chegaram os dois. O
bispo falou. Fez a apresentação do frade que havia de pregar. Frei Fortunato
das Cinco Chagas.
O nome fez Nonato lembrasse de Fortunato, das
casas, do deposito bancário e da preguiça do amigo desaparecido. Coincidência.
Fortunato, as Cinco Chagas confundiam tudo. A pregação iniciou-se. O Santo
homem anunciou o tema da oração – A preguiça e a Vocação – Sim. Era mesmo muita
coincidência. Fortunato. Preguiça. Vocação.
Nonato
procurou se aproximar o quanto pode. Por traz da barba espessa, via alguns
traços do amigo. Não poderia ser outro. Aguardou-se para o final da pregação.
Iria vê-lo bem de perto. E foi. Lá estava o mesmo nariz e o sinalzinho entre as
sobrancelhas. Não havia dúvida. Frei Cinco Chagas sentou-se no confessionário. Nonato entrou na fila. Era um dos primeiros.
Ajoelhou-se, benzeu-se, rezou o credo e em vez de contar os pecados,
perguntou-lhe. Que diabo foi isto Fortunato, onde te metestes até hoje
Fortunato?
- Cala tua
boca. Custei, custei muito, mas afinal descobri minha vocação. Para preguiça o
remédio é o convento ou o seminário. Não dá um pio. Se souberem quem sou
ninguém me dará crédito. Estou rico, meu irmão, sem dar um prego. E quero ver
se vou sair daqui sem dares um pouco dos juros das casas que me furtastes seu
cachorrão. Confio em ti, seu espertalhão. E guarda segredo. Brevemente atirarei
essa saia marrom nas urtigas e vou viver de juros, comprar uma fazendola e
casar-me. Já estou de olho numa morena do outro planeta. Sou mestre em pedir. Comida e
dormida quase de graça. Cobro por cada pregação e o dinheiro acumulando os
juros. E tu, meu besta como vais?
- Daquele
mesmo jeito. Dinheiro chorado, comprando o que há de mais barato.
- Pois é.
Hoje louvo a Deus a preguiça que me deu. Some-te daqui, safadório, e cala teu
bico. Nunca vistes frei Fortunato das Cinco Chagas.
- E onde
estão essas chagas, Fortunato?
- No nome.
Onde querias que fossem...
*O conto faz
parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
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