quarta-feira, 15 de abril de 2015

FREI FORTUNATO


 FREI FORTUNATO*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Fortunato já nasceu morto de preguiça. Cresceu assim e assim continua já aos 45 anos de uma vida atribulada. Era dessas criaturas sem ar para nada. O pai lhe deixara de herança meia dúzia de casas na cidade de onde nunca saiu. Morava na menor e alugava as cinco outras. Achava que era um sacrifício danado ter que ir receber os aluguéis, obrigado que fosse a ter essa ocupação cinco vezes por mês. Talvez até houvesse um meio de evitar, mas tinha preguiça de pensar nisso. Queixava-se sempre aos amigos de tal chateação. E o que o contrariava mais era ter dia marcado para fazê-lo. Alguém, então, o aconselhou a nomear um cobrador. Daria uma pequena gratificação e ficaria livre da obrigação. Aceitou a sugestão e foi direto à questão. Ofereceu ao amigo. “Ficarás tu se quiseres”.
            - Não, Fortunato. Dei-te apenas a idéia. Deus me livre de sair para fazer cobranças. Tenho já demais o que fazer.
            - E o que é que fazes tanto. Tens dinheiro sobrando nos bancos e o teu trabalho é ir lá buscar quando queres.
            - Não é isto, Fortunato. Tenho que gastá-lo e aí é que está a trabalheira.
            - Ora, homem, gastar dinheiro é uma delicia. É só pedir, receber, pagar o que se deseja.
            - Só! Se fosse assim seria uma beleza. Tenho que fazer economia, economia, entende. Tenho que andar de casa em casa procurando o mais barato. E mesmo assim ainda tenho sido enganado. Olha, faço uma verdadeira ginástica. Não posso gastar mais do que cinqüenta por cento dos juros. O dinheiro tem que ir crescendo, custe o que custar. E tudo isso é um quebra cabeça dos demônios.
            - Quem compra o mais barato, sempre compra o pior. E o barato sai caro.
            - É o que pensas. Depende muito da forma de usar. Usa-se cautelosamente e compra-se sempre um pouco folgado quando se trata de roupas, sapatos, chapéus. Quem compra apertado só vive apertado.
            - Mas é necessária muita paciência e não ter o que fazer.
            - Pois é. Além disso, o meu dinheirinho foi ganho suado e tenho que multiplica-lo. Ando limpo, como o suficiente para viver bem alimentado e sem preocupações. Faço meus cálculos para saber o que posso gastar diariamente. Mas, afinal de contas, quanto pagas pelas cobranças?
            - Dois mil réis por casa. Cinco, são dez naras.
            - Ora, isso irei gastar de sola de sapato e de suor. Pagas cinco por cada casa?
            - Só se eu tivesse comido picado de cachorro da moléstia. Queres ficar rico às minhas custas, sabidão.
            - E por que tu mesmo não vais cobrar. Não fazes outra coisa. Deixa-te de tanta preguiça.
            - Preguiça, não. É maneira de viver. Não me dou com trabalho. Qual quer que seja me aborrece. Queria era estar em teu lugar. Dinheiro no banco. E a propósito, queres comprar minhas casas?
            - Só se for agora, dependendo do teu preço, do meu dinheiro e dos inquilinos, se são bons pagadores.
            - São ótimos, Nonato. Pagam em dia, certinhos. Só que tenho de ir lá mês por mês, pegar o dinheiro e odeio obrigação. O dinheiro no banco, não, irei o dia que quiser.
            - E o preço?
            - Vendo barato. Quero é sair desse empresado. Aliás, estou te avisando. Cobrança, cinco dias por mês.
            Afinal foram a preço, o montante era menor do que os depósitos de Nonato e tráz-zás, negócio fechado. As escrituras correram rápidas. O Fortunato nem tinha noção do preço das coisas. Vendeu como bolo e deixou o dinheiro no mesmo banco. Agora sim era outro homem. Dinheiro no banco, vivendo dos juros.
            Nonato já havia planejado tudo e estava bem informado. Procurou negócio para as casas. Vendeu a primeira pelo duplo do preço e dinheiro na conta bancaria. Por fim negociara as cinco. Quase duplicou o depósito. Preferia não avistar Fortunato. Receava que ele fizesse perguntas. Em cidade pequena sabia-se de tudo. Mas certo dia topou-se no banco.
            - Ola, Nonato.
            - Ola, Fortunato.
            - Como vais com os inquilinos? - Já sabia dos negócios, mas fazia-se de inocente.
            - Não tive paciência de andar cobrando e vendi as casas e tinhas razão. É uma cosa incômoda.
- Por quanto?
- Quase o mesmo preço. Foi só para não perder dinheiro.
- Bobagem, sei por quanto vendestes. Quase o dobro do preço. Isso não se faz com um amigo. Está com o banco abarrotado, seu espertinho.
- Ora, companheiro por quanto me oferecestes.
- Deverias ter me chamado atenção.
- Não gosto de me intrometer nos negócios alheiros. Poderia até te sentires ofendido, pensar que estava de chamando de otário.
- Coisa nenhuma. Mas não faz mal. Tudo corre por conta de minha velha preguiça. O preguiçoso, o comodista, só anda arrasado. Bem que podia me dar mais alguma coisa. Mandar creditar em minha conta um pouco dos juros.
- E com que é que fico. E o meu trabalho, minhas preocupações. Preguiça da nisso. Não queres vender a outra. Mandarei creditar em tua conta, como desejas. Ficará me pagando aluguer. E não tenhas cuidado de que não terei preguiça de cobrar-te.
- Assim, não. Vendo-te e fico morando de graça. Estás rico as minhas custas, à custa de minha burrice.
- Certo. Enquanto for dono morarás de graça. Diz o preço. É a menor das seis.
- Mas é a melhor localizada. E está quitadinha.
E lascou um preção. Queria tomar uma desforra.
- Estás doido. Dou a metade. E enquanto não sair daqui. Meu dinheirinho está aí quentinho, soltando uns filhotes todos os dias. E o banco mesmo é que dá de mamar. Não tenho trabalho. Mas deixa de ser burro. Onde irás morar?
- Numa pensão. Estou enfadado de estar cuidando de casa. Uma trabalheira dos diabos. Pagar empregada, dinheiro pra feira, lavagem de roupa, tudo. Não imaginas. Estou cansado dessas coisas.
- Que tanta preguiça é esta Fortunato. E abre teus olhos que o dinheiro em banco também se acaba. Cuida em comprar barato e fazer economia.
Não houve jeito. Fortunato vendeu a casa de morada e instalou-se numa pensão. E depois sumiu. Nem notícia de Fortunato. Nonato teve receio que lhe houvesse acontecido qualquer coisa de grave. Houvesse, por exemplo, caído no fundo de algum açude e desaparecido misteriosamente. Por fim voltou a pensar. E se tivesse enlouquecido e saído pelo mundo afora. Tudo seria possível num sujeito tão morto de preguiça. E poderia até ter culpa com a compra das casas e o depósito do banco.
Mais de dois anos se foram sem qualquer vestígio. Sem parentes na cidade, ninguém se preocupava com sua ausência.
Procurava tira-lo da memória, mas não conseguia. Ia, voltava e era assim como uma coisa que estivesse grudada em sua memória. Chegaram às festividades da padroeira, Nossa Senhora do Desterro. O senhor Bispo havia sido convidado para o encerramento e traria um pregador para a última noite. Chegaram os dois. O bispo falou. Fez a apresentação do frade que havia de pregar. Frei Fortunato das Cinco Chagas.
 O nome fez Nonato lembrasse de Fortunato, das casas, do deposito bancário e da preguiça do amigo desaparecido. Coincidência. Fortunato, as Cinco Chagas confundiam tudo. A pregação iniciou-se. O Santo homem anunciou o tema da oração – A preguiça e a Vocação – Sim. Era mesmo muita coincidência. Fortunato. Preguiça. Vocação.
Nonato procurou se aproximar o quanto pode. Por traz da barba espessa, via alguns traços do amigo. Não poderia ser outro. Aguardou-se para o final da pregação. Iria vê-lo bem de perto. E foi. Lá estava o mesmo nariz e o sinalzinho entre as sobrancelhas. Não havia dúvida. Frei Cinco Chagas sentou-se no confessionário.  Nonato entrou na fila. Era um dos primeiros. Ajoelhou-se, benzeu-se, rezou o credo e em vez de contar os pecados, perguntou-lhe. Que diabo foi isto Fortunato, onde te metestes até hoje Fortunato?
- Cala tua boca. Custei, custei muito, mas afinal descobri minha vocação. Para preguiça o remédio é o convento ou o seminário. Não dá um pio. Se souberem quem sou ninguém me dará crédito. Estou rico, meu irmão, sem dar um prego. E quero ver se vou sair daqui sem dares um pouco dos juros das casas que me furtastes seu cachorrão. Confio em ti, seu espertalhão. E guarda segredo. Brevemente atirarei essa saia marrom nas urtigas e vou viver de juros, comprar uma fazendola e casar-me. Já estou de olho numa morena do outro planeta. Sou mestre em pedir. Comida e dormida quase de graça. Cobro por cada pregação e o dinheiro acumulando os juros. E tu, meu besta como vais?
- Daquele mesmo jeito. Dinheiro chorado, comprando o que há de mais barato.
- Pois é. Hoje louvo a Deus a preguiça que me deu. Some-te daqui, safadório, e cala teu bico. Nunca vistes frei Fortunato das Cinco Chagas.
- E onde estão essas chagas, Fortunato?
- No nome. Onde querias que fossem...

*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.



           


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