quarta-feira, 15 de abril de 2015

DONA DILU




DONA DILU*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/4/2003)


            Quando Dilu chegou às Ipueiras em companhia da mãe, já era uma moça de seus presumíveis catorze anos, vividos na roça, em pleno sertão, trazia no corpo beleza e feitiço. Morena de olhos verdes, um fruto imaturo que dava vontade de colher ainda verde. Mas Dilu, embora cobiçada, não dava confiança a ninguém. Saia sozinha, de casa em casa, procurando trabalho, um emprego doméstico e roupa para lavar. O pouco que a mãe havia trazido duraria pouco. As donas de casa, mesmo necessitando de empregada, não a queriam. Não eram nem doidas pra botar dentro de casa uma coisinha daquela. Por mais honestos que fossem os maridos. O diabo estava por aí para despertar desejos e ciúmes.
            - Não, minha filha, não estou querendo empregada. Eu mesma dou conta da casa. E Dilu ia indo de porta em porta sentindo-se cada vez mais desiludida e humilhada. Tudo quanto conseguira fora roupa para mãe lavar e passar. Voltava para casa com toda a tristeza do mundo nos olhos.
            - Ah. Mãe, aqui não dá para gente, mãe. Ninguém quer o meu trabalho. Nem perguntam quem eu sou. Olham para mim e vai logo dizendo, não minha filha. Querem outras moças. Será que eu tenho alguma coisa diferente delas?
            A mãe entendia. Conhecia muito bem as outras mulheres. Elas tinham medo do corpo e os olhos de Dilu. Quem por acaso, poderia vê-la, sem ter arrepio.
            - Vai, Dilu, vai tentar mais uma vez, só hoje. Esta lavagemzinha de roupa não dá para se viver.
            E lá se foi novamente Dilu. Penteou o cabelo como gostava de fazer, vestiu o melhor vestidinho, apertado na cintura, um tanto decotado e mudou de rua. A rua da gente mais rica. Timidamente bateu à quinta porta. Seu Crispim veio ver quem era. Chegou à porta e tomou um susto. Não, não era possível o que estava vendo. Já tinha visto Dilu de longe e ela não lhe tinha mais saído da imaginação. Caia a sopa no mel.
            - O que é que você deseja mocinha?
            - Um trabalho, meu senhor! Crispim quase perde a fala.
            Demorou um pouco olhando abestalhado o corpo desabrochante de Dilu, o comecinho dos seios apontando inocentemente no decote e, recuperada a voz, falou para Dilu como se tivesse derramando pétalas macias sobre ela.
            - Espera um pouco. Vou chamar Margarida.
            - Quem está aí crispim? Pelo jeito e a demora deve ser um desses teus amigos que levam o nosso dinheiro.
            - Que nada, Margarida. Desta vez (procurou sustentar a voz), é uma mocinha procurando emprego. Nem olhei bem para ela... Mas chegou a tua vez. Talvez sirva para te ajudar. Não gosto de te ver trabalhando sozinha na arrumação da casa. Precisa urgentemente de uma arrumadeira. Dinheiro só serve para isso. Já deves estar enjoada desse dia a dia, fazendo coisas que não gosto de te ver fazendo. Temos o bastante para ter mais descanso e mais um pouco de conforto. Vai, vai lá!
            Dona Margarida não desconfiava de Crispim. Sempre lhe havia sido fiel, ótimo companheiro. E estava encantada com o interesse que ele demonstrara. E se foi pensando.
            “Poucas mulheres tem a sorte de possuir um maridinho como é o meu. Fui uma moça de muita sorte”.
            Crispim mostrou-se indiferente, nem foi lá, acompanhando a mulher. Manhoso...
            - Quer alguma coisa, mocinha?
            - Sim senhora. Um emprego, dona. Somos eu só e mamãe. Pobres demais. Já está quase faltando comida lá em casa. Tenho pena de mamãe. Vive lavando e passando roupa, mas não dá para nada.
            - De onde vocês vieram?
            - De muito longe. Fugidos de papai. Bebia demais, maltratava a gente. Mamãe não aguentou mais. E ele nem sabe onde a gente anda. Se souber é capaz de matar a mamãe. Quando bebe, chega a casa querendo comida, dando na pobre quando não encontra o que comer. Não trabalha. Mamãe mandou que eu saísse procurando emprego. A senhora me arranja?
            - E o que é que você sabe fazer?
            - Tudo que gente pobre sabe.
            Dona Margarida lembrou-se da conversa do marido. Estava muito interessado em diminuir as canseiras. Olhou novamente para os olhos e para o corpo inteiro de Dilu. Viu aqueles comecinhos de seios rebrotando, aquelas duas coisinhas firmes e aprumadas forçando o pano da blusa – Já sei. É isto que o malandrão quer. E depois botar em casa uma mulher mais bonita e atrativa que ela, era uma grande burrada.
            - É, mocinha, por agora não estamos precisando de empregada. É uma pena, mas não tenho o que fazer.
            E entrou sentindo-se aliviada. O mal deve ser cortado pela raiz. Confiava no marido, mas também assim era demais. Botar uma coisinha daquela perto do marido ainda forte como era, era a mesma coisa que colocar banana perto de macaco. E o diabo está por aí soltinho da silva. E imaginou: - Eu mesma se fosse homem uma bichinha dessas não me escapava. O santinho do Crispim quer dar um golpe. Um safadão. Daqui por diante vou botar os olhos nele... Aquele interesse todo... Sim, bicho... Vou ver a reação do Crispim. Por aí tirarei minhas conclusões.
            Mas Crispim nem falou no assunto. Calado estava calado ficou. Dona Margarida considerou que havia feito uma injustiça, julgando mal o marido. Intimamente pediu-lhe desculpas.
            - Crispim, aquela é uma mocinha da roça que nada sabe de arranjo de casa. Deixa ver se aparece alguma mais entendida...
            Crispim, de esguelha, passou-lhe o rabo do olho, pois sabia muito bem as suas intenções. Tinha que descobrir a moradia de Dilu. Teria que falar com a pobre menina. Não era possível deixa-la abandonada, faltando-lhe até o essencial para comer. Via então, o mundo como uma coisa mal feita e desorganizada. Uns tinham demais, outros com o estômago vazio, dormindo com fome e sem esperança para o dia seguinte. A mulher não pensava nisso. E depois não era nada de mais deixar o marido dar de vez em quando uma espiada furtiva num corpo doido daquele. Mas as mulheres ficam logo pensando, maldosamente, como se os homens fossem todos uns cafajestes.
            E Crispim, esperou que Dilu reaparecesse. E certo dia vai à menina passando com aquela tristeza de por de sol. Crispim deixou-a distanciasse segui-a de longe. Dilu entrou num casebre quase em ruínas. A mãe apareceu à porta e foi logo lhe perguntando: - Nada?
            - Nada mamãe. Vamos embora daqui. Pode ser que a gente tenha sorte noutro lugar.
            - Mas, onde Dilu?
            - A gente sai por aí andando, andando...
            Crispim aproximou-se sem saber o que dizer. Dona Santina poderia pensar que vinha atrás da filha com más intenções.
            - Bom dia!
            - Bom dia, meu senhor. Deseja alguma coisa?
            - Sim, minha senhora. Sua filha esteve em nossa casa, pedindo trabalho. Minha patroa não quis. Não tinha trabalho para ela. Tive pena da menina. Deveria estar até passando fome.
            - É isso mesmo. Já andou a cidade toda. Ninguém a quer. Não sei o que ela tem que tanto desagrada. É até uma moça vistosa, de boa educação e de respeito. E tenho até receio de que ela faça uma bobagem. Quando sai para a rua fico assustada. A fome faz tudo. Muita mocinha tem se perdido por causa disso. Sem roupa com fome, sem ter esperança de nada, deixa-se arrastar pelo primeiro que lhe promete tudo. Abusam das coitadas e depois a abandonam. Vão parar nas pontas de rua trocando-se por qualquer coisa. Sofremos demais. Eu e ela.
            - Vem cá Dilu! – Como é mesmo o nome do senhor?
            - Crispim. Crispim dos Santos.
- Nome bonito. Dos Santos.
            Dilu apareceu e lembrou-se do rosto do seu Crispim.
            - Já vi o senhor. Falei com sua mulher. Não pôde me dar emprego. Desagrado a todo mundo. Talvez se fosse uma moça à toa, não me faltasse trabalho. Mas vamos embora daqui. Não tivemos sorte. Já andamos fugindo com medo de papai. Batia e judiava com a gente. Mamãe está se cansando e eu não tenho trabalho. Essa gente daqui é desconfiada.
            - Não é não Dilu. Desculpe-me dona Santina. Santina mesmo, não é? As mulheres têm medo e ciúme da beleza de Dilu. É isso. Só isso. Quando olham para esse rosto perfeito, esse corpo desabrochando para o amor. Mas não estou aqui para falar de coisas que todos sabem. Fiquei preocupado com o destino dessa menina. Gostaria de vê-la alegre, despreocupada, uma moça feliz. E para que ela possa ser feliz é necessário que a mamãe sinta-se também feliz. Então, de agora por diante, desejo ajuda-las. Tenho casa comercial. Dilu à tardinha apareça lá. Quero ficar fornecendo o que necessitarem até que um dia possam pagar. Tenho tecidos e alimentos, calçados também. Quero que nada lhe falte.
            - Não, não podemos fazer isso.
            - Bem, se não forem apanhar mandarei trazer. Não pensem que estou interessado na menina. Se fosse possível ficaria com ela como se fosse minha filha.
            Mas na verdade, o que pretendia era conquistá-la. Por as mãos naquele corpo sadio e bonito, como quem colhe um fruto sumarento e cheiroso. As noites de insônia perseguiram-no, como uma alucinação. Dilu não saia de sua memória. Tinha entrado na sua vida sem ter mais jeito de sair.
            - Pois é já me vou. Fico esperando-a lá. Arranjarei depois um emprego. Aliás, tive agora uma boa saída. Dona Santina bem que poderia ir se empregar lá em nossa casa. Não diz que é a mãe de Dilu, Nem fala no nome dela. Pode ir logo hoje, pedir emprego. A dona Margarida vai aceita-la. Ela gostara de seu trabalho e de sua companhia. Somente algum tempo depois falará na Dilu. Ela ira então até perguntar pela menina. Irá também querer conhecê-la.
            - Mas a menina não poderá ficar só. O diabo atenta. O mundo está cheio de malandros e alguns deles poderão vir aqui atenta-la e, quem sabe até forçá-la.
            - Que nada. Ela é uma moça ajuizada e ninguém se atreverá a isso. Mas antes apareça em nossa casa de comercio. E ensinou onde era.
            - Bem, até breve. Façam exatamente como estou recomendando. A vida é assim mesmo. A gente tem que lutar e aceitá-la como ela realmente é. Mais tarde sairão desse casebre. Vou comprar uma casinha para se mudarem.
            À tardinha Dilu entrou na loja de seu Crispim. Ia como se fosse empurrada pela força de um destino cruel.
            - Boa tarde seu Crispim. Queria comprar alguma coisa, para pagar depois.
            Crispim nem perguntou o que era. Foi embrulhando logo o que bem sabia de necessário a uma casa que não tem nada. Quilo disso, quilo daquilo. Aliás, nem pesava. Colocou tudo numa caixa. Dilu sentia-se humilhada e com vontade de chorar. Lembrou-se do pai que as obrigou a fugir. Bem que poderia estar em sua companhia, morando em sua casinha e na terra que era sua. E teve pena do pai. Fosse como fosse era seu pai. Mas agora não tinha mais jeito. Também não suportava mais ver a mãe sofrer.
            - Pronto Dilu. Leve para casa e volte sempre aqui. O pão venha buscar todos os dias. Não quero pensar que passam fome. Mas a final Dilu, quem são mesmo vocês. De onde vieram?
            - Mamãe me proibiu de dizer. Nem vale a pena saber. Somente ela poderá lhe falar.
            - Dilu, você, uma moça tão bonita como é não pensou ainda em casar-se? Quem sabe, tudo poderia melhorar para vocês duas.
            - Ora seu Crispim, quem vai querer uma moça pobre como eu. Ninguém.
            - Mas você precisa ter pelo menos um namorado, alguém que lhe faça agrados. Quem é moço gosta disso. Pois se eu não fosse casado, casava com você mesmo que fosse à força. Já pensou viver em companhia de uma coisinha linda como você.
            - O senhor gosta de brincadeira. E soltou-se num sorriso brejeiro. E há quanto tempo não ria. Nem se lembrava.
            Tomou a caixa, agradeceu, despediu-se e lá se foi sob os olhos famintos de seu Crispim.
            - Ah! Diabinha, se eu te pego. Mas devagar se vai ao longe.
            Dona Santina havia ido à casa de seu Crispim. Dona Margarida gostou de sua aparência e acertou emprega-la a começar logo no dia seguinte. Crispim sentiu-se vitorioso. A coisa ia no seu bom caminho. Agora, no seu entender, era só ir avançando devagar, sorrateiramente.
A terrível situação de dona Santina obrigava-a a aceitar as insinuações de seu Crispim. Entretanto, ele que não pensasse em abusar da filha, iludindo-a e explorando à sua miséria. Ele talvez pensasse que ela não estava a perceber suas intenções sujas.
            Logo ao voltar abriu os olhos de Dilu. – Olha menina, o bicho pelo que se vê está mal intencionado. Mas não temos outro jeito senão aceitar por enquanto os seus oferecimentos. Nada de liberdade com ele. E se dona Margarida suspeitar, perderei o meu emprego e a nossa vida irá piorando ainda mais.
            - Nem se preocupe mamãe. Pensa que eu já não percebi. Ele já me fez umas perguntas. Fiz que nem ouvia. Ri dele e ele pensou que estava rindo para ele.
            - É mais tu não conheces ainda as manhas dos cafajestes. Uma conversinha, um presentinho, a mão no queixinho das moças, um agradozinho daqui e outro dali e quando menos se espera quer dar o bote final.
            - Deixe comigo. Não se assuste. Para me ver livre dele já tive uma ideia. Só me falta falar com o padre Pedro. Quem sabe se ele não está querendo empregada. Aí todos vão me respeitar. Ficarei amparada. Dizem que o padre Pedro é quase um santo.
            - Nem, sei Dilu. O povo fala tanto de empregada de padre... A batina não tira a reima. Duas criaturas sozinhas numa casa nunca da certo. E de mais uma menina como tu.
            - Mãe, é até pecado falar assim. Vou tentar sempre.
E foi. Padre Pedro quase teve um estremilique. Não, não era possível ter tanta sorte.
            É seu vigário, até hoje ninguém quis me ajudar. Ninguém se agrada de mim.
            - Ora, menina, podes até ficar logo. Mas, como é mesmo o teu nome?
            - Dilu. Deolinda. Vou primeiro falar com a mamãe. Será que o senhor tem lugar também para ela. Somos somente nós duas. Ela esta empregada em casa de seu Crispim.
            - Certamente. Mas tomem cuidado. O seu Crispim não tem boa fama. Aqui em Ipueiras, todos sabem. A cara é de santo, mas o resto não vale nada. Bem não quero entrar na vida dos outros.
            Dilu não se conteve. Passou logo pela casa de seu Crispim.
            Dona Margarida foi recebê-la.
            - Tu de novo mocinha. Já te disse que não tenho emprego.
            - Não minha senhora, quero é falar com a mamãe.
            - Espere e a Santina é tua mãe?
            - É sim!
            - Pois, então, vou chamá-la. E saiu resmungando. Isso deve ter sido coisa preparada pelo crispim. O bicho é mesmo descarado. Hoje acerto os ponteiros com aquele cachorrão.
            - Olhe dona Santina. Aí tem uma mocinha esperando pela senhora.
            - Quem? Não conheço ninguém.
            - É sua filha. E vou logo usar de franqueza. Não quero essa menina aqui.  Estava gostando tanto da senhora, mas agora perdi o gosto.
            - Mas dona Margarida, a Dilu é uma moça direita e boazinha.
            - Sim, pode ser. Mas meu marido não é. E sabe de uma coisa curta e certa. Vá com a sua Dilu. Vamos fazer as contas. Está aqui a vinte e três dias. Vou buscar o seu dinheiro e muito obrigada. É uma pena, mas é isso mesmo. O Crispim vai me pagar. Vou esperá-lo para o almoço.
            - Pelo amor de Deus, dona Margarida seu Crispim não tem nada com a minha vinda para sua casa.
            - Tenha ou não tenha hoje me paga o novo e o velho.
            - Nossa mãe. Vamos mãe. Vamos depressa antes que o homem chegue.
            - É bom mesmo que se sumam de minha vista.
            - Já estou empregada em casa do padre Pedro. Mas vou lhe dizer uma coisa. Seu Crispim é um homem muito bom. A senhora é quem é uma onça braba. Não sei como ele lhe suporta.
            - Por ali sinhá atrevida. Bichotinha safada.
            - Safada, não. Sou uma moça direita. Vou já contar a seu Crispim. Tomara que ele lhe dê uma surrota. Nós somos pobres, mas somos gente. Deram-lhe as costas e se foram.
            Foram diretas para casa. Certamente que não iriam dizer coisa alguma a seu Crispim.
            Prepararam-se e saíram para a casa de padre Pedro.
            Crispim entrou em casa de peito aberto. De nada suspeitava. Deu pela falta de dona Santina, mas ficou aparentemente indiferente. Aquilo irritou dona Margarida que desconfiou que Crispim soubesse dos acontecimentos. Imaginou então que a bichota houvesse contado. Á hora do almoço resolveu disparar. Crispim levantou-se da mesa. E ela assustou-se. Parou de gritar. Procurou Crispim e não o encontrou. O bicho foi atrás da Dilu, não tenho a menor duvida. Certamente já estão de paleio. Teve vontade de ir procurá-lo. Ficou a tarde toda à espera. Crispim não chegou. À noite foi que chegou e ela sozinha. Arrependia-se da burrada que havia feito. Crispim jantou fora. Conversou até tarde com os amigos. Voltou tranquilamente lá pelas onze horas. Tomou um banho e foi deitar-se.
            Dona Margarida imaginava mais coisas. – O relaxado foi tirar o cheiro de mulher que pegou por aí. Foi para a cama, calada e revoltada com o cinismo de Crispim. Não conseguia conciliar o sono. Encostou-se em Crispim. Ele não se mexeu. Encostou-se mais. Crispim sentia o calor do corpo da mulher, mas não lhe deu atenção. Aquilo lhe parecia uma prova de que havia mesmo andado com outra. E só podia ter sido com a tal da Dilu, a desavergonhada. Tão moça ainda, mas, se podia ver que não prestava pra nada. E corria pelo seu pensamento Crispim acariciando Dilu, aquele corpo jovem e atraente. Na verdade Dilu era tudo quanto um homem podia desejar. Procurava fechar os olhos da imaginação para não ver os dois abraçados e na maior safadeza. Não se conteve mais. Chamou Crispim. – Vem cá, Crispim. Perdoa-me, Crispim. Fiquei com ciúmes, Não queria que aquela coisinha tão bonita ficasse perto de tu, Crispim. Foi só isso. Ciúme, Crispim, ciúme que envenena a gente, Crispim. Tu deves saber que as mulheres geralmente não confiam nas outras. Nos homens é a mesma coisa até se matam.
            Era isso o que Crispim deseja. E convenceu-se que o melhor mesmo era deixa-la ao longe. Também não teria coragem, reconhecia de querer abusar da Dilu, só porque era pobre e castigada pelas outras mulheres. Já lhe doía a consciência. E depois, para dizer a verdade, Dilu nunca lhe dera a menor confiança. Tudo não passava de um sonho, de desejos que o corpo da diabinha despertava. Mas era duro tira-la da imaginação. Além disso, casado com uma criatura que merecia o seu respeito e o seu amor. Tudo isso passou a doer-lhe como um espinho na consciência. E naquela mesma noite fizeram as pazes e se reencontraram. Mesmo assim, na ora do reencontro, quem estava ali não era Margarida sozinha era também Dilu. E procurou esquecer e respeitar a pobre menina.
            No dia seguinte, estourou a notícia. Dilu e a mãe estavam empregadas na casa de padre Pedro. Não podiam acreditar.
– Coitada da menina dentro de pouco tempo estaria na boca do povo. Padre Pedro iria fazer da inocente, o seu breviário. Aquilo não era qualidade de gente. Tinha que ficar de olho nele para proteger Dilu. Mas, como, se o bicho era matreiro e vivia enfurnado e com as unhas escondidas. Tinha que por a cabeça a funcionar, armar uma cilada para tirá-la de lá, antes que já fosse tarde.
– Ah! Padre Pedro manhoso de uma figa. Parecia que estava vendo. Dilu para lá, Dilu para cá. E certamente faria da menina a principal zeladora da igreja. Os três já deviam estar comendo na mesma mesa para abrir-lhe mais o apetite.
– Salafrário... Certamente mandou o sacristão convence-las. A miséria abre as portas aos espertalhões. E não era somente a Dilu. Dona Santina, uma mulher ainda nova e bem vistosa, deveria estar também na mira do reverendo. Embora as duas não parecessem fáceis. Usaria de artimanhas e artifícios. Agrados e mais agrados, mandando uma sair outra ficar, falando em solidão, em tristeza e da vida de um homem que vive só. Até o modo de falar, adocicando as palavras, passando discos na velha vitrola, com canções repassadas de amor e saudades. Vestidos novos, sapatos da moda, perfumes. As coisas começam assim. Poderia até insinuar que tinha medo de dormir sozinho, naquele casarão, motivar comentários das duas.
– Coitado do padre Pedro, minha filha. Viver só, comer sozinho, dormir só... Uma vida de santo. Pelo menos agora tem nossa companhia.
            Dilu, ou Dilu... Vem cá menina. Adoro cafuné. A velha que trabalha aqui me viciou nisso. Penteava, alisava meus cabelos e dava cafunés que me faziam cochilar e adormecer.
Seu Crispim resolveu dar uma espiada e fazer as primeiras sondagens. Atirou-se para a casa do padre Pedro. Tinha intimidade com o sabidão. Subiu os degraus e foi logo apreciando a cena dos dois. Dilu penteando e alisando os cabelos do descaradão. Era assim que ia amaciando a menina. O padre de olhos fechados deliciava-se com aquele alisado prometedor.
            Crispim pigarreou. Dilu o avistou. Foi saindo apresada. Padre Pedro percebeu e deu com a cara de Crispim. Mandou-o entrar. Crispim foi logo dizendo que tinha vindo fazer-lhe uma visita, aliás, atrasada.
            - Eu também tenho saído muito pouco. As obrigações religiosas e caseiras tomam todo o meu tempo. Somente agora passarei a descansar mais um pouco. Tenho boa cozinheira e uma arrumadeira que cuidam bem das minhas coisas. Foi muita sorte senhor Crispim. Sabe aqui como é. Não é tão fácil conseguir gente de confiança e de respeito, como convém á casa de um vigário.
            - Está de parabéns, padre Pedro. Dona Santina estava em nossa casa. Aliás, ela tem uma filha, a Dilu, moça muito interessante. Uma bela menina.
            - Pois é. Santina e Dilu. Duas criaturas virtuosas. Assistem a missa com devoção, rezam antes das refeições e cuidam bem do vigário. Depois de mais alguma conversa, Crispim despediu-se.
– Tenho que dar um jeito, salvar a Dilu. O sabidão está começando a arrepiar a menina. Começa com aquela intimidade e o resto vem depois. A saída seria arranjar um casamento para Dilu. Tira-la das unhas de padre Pedro. Aquele padreca vai perder o pulo do gato. Não foi para Crispim, também não será para o padreca. Vestiu bem o seu empregado, sujeito moço, sadio, de boa aparência, forneceu-lhe dinheiro e mandou-o conquistar a Dilu. Estava liberado do balcão, para lhe sobrar tempo. Não faltava a missa, acompanhava os passos da Dilu, procurando insinuar-se. Dilu notava a presença de Abílio. Já o conhecia de longe. Agradava-lhe vê-lo, sempre limpo e alegre, a desafiá-la. Certo dia Abílio aproximou-se. Cumprimentou-a e Dilu sorriu, estava começando o namoro. Despediram-se já à porta da casa de padre Pedro. Aí oculto, padre Pedro observava o encontro. Quase tem um desmaio. Dilu entrou casa adentro mais leve e mais palpitante. Padre Pedro notou a diferença. Chamou Dilu – Vem cá menina. Cadê os cafunés de seu vigário.
            - Agora mesmo padre Pedro.
            Os cafunés já não eram os mesmos. O contato das mãos de Dilu já não tinha o mesmo calor. Padre Pedro percebia que o pensamento de Dilu anda longe. Abriu o breviário, tentou ler. Fechou-o. Não entendia nada.
            - Olha Dilu, porque demoraste tanto hoje?
            - Só um pouquinho mais. Saio pouco e fiquei olhando as ruas.
            - Parece que te vi acompanhada, toma cuidado, menina. Sei que as moças gostam de um namorinho, o que não faz mal. Mas tu és ainda muito jovem, uma criança inexperiente. Toma cuidado. O que está te faltando em casa do padre? E depois Deus me livre de perder estes teus cafunés. Sinto-me tão feliz quando alisam estes meus cabelos que nunca sentiram carinhos. Não te apresses.
            - Não padre Pedro, é apenas um conhecido lá da casa de seu Crispim, da mercearia, onde a gente comprava umas coisinhas, quando tinha algum dinheiro.
            Passaram-se os dias, os meses. Abílio foi à casa de padre Pedro acompanhado de seu Crispim. E foi seu Crispim quem falou. – Queremos, se o senhor permite, falar com dona Santina.
            - Alguma novidade, seu Crispim?
            - Mais ou menos.
            - Dilu, ou Dilu. Chama dona Santina, menina.
             Dona Santina não demorou.
            - Boa tarde. Às suas ordens padre Pedro.
            - Estes senhores querem te falar.
            - Sim dona Santina. Aqui o Abílio vem lhe pedir Dilu em casamento. É um bom moço, bem empregado, casa para morar e da boa família e bons costumes.
            - Dilu nunca me falou nisso. E o que dizes Dilu? Quer mesmo te casar com o senhor Abílio?
            - Querer, quero. Mas se mamãe e padre Pedro consentirem.
            - De mim, sim. Padre Pedro resolve.
            - Isto é um casamento muito sério. E não tenho experiência de casamento. Olhou para Dilu com ar de reprovação. Dilu assustou-se. A mãe poderia perder o emprego.
            É melhor deixar a menina pensar calmamente. Refletir no que vai fazer. Conversar com dona Santina. Nada de precipitações. Voltem depois, não é Dilu?
            - Do jeito que o senhor quiser padre Pedro. Sou uma tola.
            Padre Pedro ganhava terreno.
            - Não adianta esperar. Dá logo o bote. Tira a menina e leva para a casa do compadre Simeão. Será teu padrinho de casamento. Quero ver a cara do padre, celebrando teu casamento, combina com a menina e procura tira-la urgentemente da casa daquele sabidão. Não merece a menor confiança.
            Abílio andava preocupado com o interesse e a impertinência do seu Cipriano. Aquilo deveria ter água no bico. Casamento arranjado pelo patrão dava para desconfiar. Por que aquele interesse todo. Abílio procurou encontra-se com a Dilu. Disse-lhe do seu desejo de casar-se com ela. Mas não queria morar mais ali. Se ela concordasse, ela e dona Santina, iriam morar noutra cidade. Tinha suas economias e abriria um comercio qualquer noutra cidade.
            - E o padre Pedro? Recebeu tão bem a gente.
            De lá se escreve para seu Cipriano e para seu vigário. O amor vale esse sacrifício.
            - Vou falar com mamãe, está certo. Se ela não concordar, nada feito. E contou a dona Santina o propósito e o convite de Abílio.
            - Não, minha filha. Não farás essa doidice. Não quero deixar o padre Pedro. Ele não merece isso. Também não concordo em fugires com ele. Aparecerá outro noivo. Aquele foi encomendado.
            - Mãe acha?
            - Acho sim. Aquilo é artimanha de seu Cipriano. Eu vejo como ele te olha, querendo te devorar. Não te esqueças que já sofremos demais com um casamento errado. Espera mais, se puderes.
            Um ano depois aconteceu o imprevisto. Padre Pedro desapareceu da cidade. Ele, Dilu e dona Santina. A chave da casa paroquial ficou com o sacristão. Em cima da cômoda estava a batina de padre Pedro.
            Crispim entrou em casa furioso. – Está aí, Margarida, o que você fez. Tirou a batina do padre Pedro. Não quis dona Santina aqui, com medo da Dilu e virou a cabeça de seu vigário. Sumiu com as duas.
            - Ora Crispim e foi só isso. Bobagem. Agora me dizes por que esta tão preocupado. Não é parente de padre Pedro, nada tens a ver com dona Santina e Dilu. Ciúme não é? Pois fizeram muito bem. Toma vergonha nessa cara, bicho. Pensas que não sei de tuas patifarias. Dona Santina contou-me tudo. Mandou o Abílio conquistar a Dilu para tirá-la da casa do padre Pedro e deixa-la perto de te. Por que não te vais também. Vou mandar rezar uma missa de ação de graças para os três.
            - O que é isto, Margarida. Juro que tudo é fofoca, minha nega.
            - Olha, Crispim vou marcar a hora de chegares em casa. Tu não és de nada, Crispim, pois se eu fosse homem a Dilu não me escaparia. Eu mesma nunca tinha visto uma doidice daquela. Só mesmo um basbaque como tu, perde um petisco daquele. É mesmo uma vergonha ter um marido da tua qualidade. Vai, te prepara que vou te chupar até os ossos.

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
             


           
           
           

           
           
           

           


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