DONA DILU*
João
Henriques da Silva
(In
Memoriam 20/09/1901 – 16/4/2003)
Quando Dilu
chegou às Ipueiras em companhia da mãe, já era uma moça de seus presumíveis
catorze anos, vividos na roça, em pleno sertão, trazia no corpo beleza e
feitiço. Morena de olhos verdes, um fruto imaturo que dava vontade de colher
ainda verde. Mas Dilu, embora cobiçada, não dava confiança a ninguém. Saia
sozinha, de casa em casa, procurando trabalho, um emprego doméstico e roupa
para lavar. O pouco que a mãe havia trazido duraria pouco. As donas de casa,
mesmo necessitando de empregada, não a queriam. Não eram nem doidas pra botar
dentro de casa uma coisinha daquela. Por mais honestos que fossem os maridos. O
diabo estava por aí para despertar desejos e ciúmes.
- Não, minha
filha, não estou querendo empregada. Eu mesma dou conta da casa. E Dilu ia indo
de porta em porta sentindo-se cada vez mais desiludida e humilhada. Tudo quanto
conseguira fora roupa para mãe lavar e passar. Voltava para casa com toda a
tristeza do mundo nos olhos.
- Ah. Mãe, aqui
não dá para gente, mãe. Ninguém quer o meu trabalho. Nem perguntam quem eu sou.
Olham para mim e vai logo dizendo, não minha filha. Querem outras moças. Será
que eu tenho alguma coisa diferente delas?
A mãe entendia.
Conhecia muito bem as outras mulheres. Elas tinham medo do corpo e os olhos de
Dilu. Quem por acaso, poderia vê-la, sem ter arrepio.
- Vai, Dilu, vai
tentar mais uma vez, só hoje. Esta lavagemzinha de roupa não dá para se viver.
E lá se foi
novamente Dilu. Penteou o cabelo como gostava de fazer, vestiu o melhor
vestidinho, apertado na cintura, um tanto decotado e mudou de rua. A rua da
gente mais rica. Timidamente bateu à quinta porta. Seu Crispim veio ver quem
era. Chegou à porta e tomou um susto. Não, não era possível o que estava vendo.
Já tinha visto Dilu de longe e ela não lhe tinha mais saído da imaginação. Caia
a sopa no mel.
- O que é que
você deseja mocinha?
- Um trabalho,
meu senhor! Crispim quase perde a fala.
Demorou um pouco
olhando abestalhado o corpo desabrochante de Dilu, o comecinho dos seios
apontando inocentemente no decote e, recuperada a voz, falou para Dilu como se
tivesse derramando pétalas macias sobre ela.
- Espera um
pouco. Vou chamar Margarida.
- Quem está aí
crispim? Pelo jeito e a demora deve ser um desses teus amigos que levam o nosso
dinheiro.
- Que nada,
Margarida. Desta vez (procurou sustentar a voz), é uma mocinha procurando
emprego. Nem olhei bem para ela... Mas chegou a tua vez. Talvez sirva para te
ajudar. Não gosto de te ver trabalhando sozinha na arrumação da casa. Precisa
urgentemente de uma arrumadeira. Dinheiro só serve para isso. Já deves estar enjoada
desse dia a dia, fazendo coisas que não gosto de te ver fazendo. Temos o
bastante para ter mais descanso e mais um pouco de conforto. Vai, vai lá!
Dona Margarida
não desconfiava de Crispim. Sempre lhe havia sido fiel, ótimo companheiro. E
estava encantada com o interesse que ele demonstrara. E se foi pensando.
“Poucas mulheres
tem a sorte de possuir um maridinho como é o meu. Fui uma moça de muita sorte”.
Crispim
mostrou-se indiferente, nem foi lá, acompanhando a mulher. Manhoso...
- Quer alguma
coisa, mocinha?
- Sim senhora. Um
emprego, dona. Somos eu só e mamãe. Pobres demais. Já está quase faltando
comida lá em casa. Tenho
pena de mamãe. Vive lavando e passando roupa, mas não dá para nada.
- De onde vocês
vieram?
- De muito longe.
Fugidos de papai. Bebia demais, maltratava a gente. Mamãe não aguentou mais. E
ele nem sabe onde a gente anda. Se souber é capaz de matar a mamãe. Quando
bebe, chega a casa querendo comida, dando na pobre quando não encontra o que
comer. Não trabalha. Mamãe mandou que eu saísse procurando emprego. A senhora
me arranja?
- E o que é que
você sabe fazer?
- Tudo que gente
pobre sabe.
Dona Margarida
lembrou-se da conversa do marido. Estava muito interessado em diminuir as
canseiras. Olhou novamente para os olhos e para o corpo inteiro de Dilu. Viu
aqueles comecinhos de seios rebrotando, aquelas duas coisinhas firmes e
aprumadas forçando o pano da blusa – Já sei. É isto que o malandrão quer. E
depois botar em casa uma mulher mais bonita e atrativa que ela, era uma grande
burrada.
- É, mocinha, por
agora não estamos precisando de empregada. É uma pena, mas não tenho o que
fazer.
E entrou
sentindo-se aliviada. O mal deve ser cortado pela raiz. Confiava no marido, mas
também assim era demais. Botar uma coisinha daquela perto do marido ainda forte
como era, era a mesma coisa que colocar banana perto de macaco. E o diabo está
por aí soltinho da silva. E imaginou: - Eu mesma se fosse homem uma bichinha
dessas não me escapava. O santinho do Crispim quer dar um golpe. Um safadão.
Daqui por diante vou botar os olhos nele... Aquele interesse todo... Sim,
bicho... Vou ver a reação do Crispim. Por aí tirarei minhas conclusões.
Mas Crispim nem
falou no assunto. Calado estava calado ficou. Dona Margarida considerou que
havia feito uma injustiça, julgando mal o marido. Intimamente pediu-lhe
desculpas.
- Crispim, aquela
é uma mocinha da roça que nada sabe de arranjo de casa. Deixa ver se aparece
alguma mais entendida...
Crispim, de
esguelha, passou-lhe o rabo do olho, pois sabia muito bem as suas intenções.
Tinha que descobrir a moradia de Dilu. Teria que falar com a pobre menina. Não
era possível deixa-la abandonada, faltando-lhe até o essencial para comer. Via
então, o mundo como uma coisa mal feita e desorganizada. Uns tinham demais,
outros com o estômago vazio, dormindo com fome e sem esperança para o dia
seguinte. A mulher não pensava nisso. E depois não era nada de mais deixar o
marido dar de vez em quando uma espiada furtiva num corpo doido daquele. Mas as
mulheres ficam logo pensando, maldosamente, como se os homens fossem todos uns
cafajestes.
E Crispim,
esperou que Dilu reaparecesse. E certo dia vai à menina passando com aquela
tristeza de por de sol. Crispim deixou-a distanciasse segui-a de longe. Dilu
entrou num casebre quase em
ruínas. A mãe apareceu à porta e foi logo lhe perguntando: -
Nada?
- Nada mamãe.
Vamos embora daqui. Pode ser que a gente tenha sorte noutro lugar.
- Mas, onde Dilu?
- A gente sai por
aí andando, andando...
Crispim
aproximou-se sem saber o que dizer. Dona Santina poderia pensar que vinha atrás
da filha com más intenções.
- Bom dia!
- Bom dia, meu
senhor. Deseja alguma coisa?
- Sim, minha
senhora. Sua filha esteve em nossa casa, pedindo trabalho. Minha patroa não
quis. Não tinha trabalho para ela. Tive pena da menina. Deveria estar até
passando fome.
- É isso mesmo.
Já andou a cidade toda. Ninguém a quer. Não sei o que ela tem que tanto
desagrada. É até uma moça vistosa, de boa educação e de respeito. E tenho até
receio de que ela faça uma bobagem. Quando sai para a rua fico assustada. A fome
faz tudo. Muita mocinha tem se perdido por causa disso. Sem roupa com fome, sem
ter esperança de nada, deixa-se arrastar pelo primeiro que lhe promete tudo.
Abusam das coitadas e depois a abandonam. Vão parar nas pontas de rua
trocando-se por qualquer coisa. Sofremos demais. Eu e ela.
- Vem cá Dilu! –
Como é mesmo o nome do senhor?
- Crispim.
Crispim dos Santos.
- Nome
bonito. Dos Santos.
Dilu apareceu e
lembrou-se do rosto do seu Crispim.
- Já vi o senhor.
Falei com sua mulher. Não pôde me dar emprego. Desagrado a todo mundo. Talvez
se fosse uma moça à toa, não me faltasse trabalho. Mas vamos embora daqui. Não
tivemos sorte. Já andamos fugindo com medo de papai. Batia e judiava com a
gente. Mamãe está se cansando e eu não tenho trabalho. Essa gente daqui é
desconfiada.
- Não é não Dilu.
Desculpe-me dona Santina. Santina mesmo, não é? As mulheres têm medo e ciúme da
beleza de Dilu. É isso. Só isso. Quando olham para esse rosto perfeito, esse
corpo desabrochando para o amor. Mas não estou aqui para falar de coisas que
todos sabem. Fiquei preocupado com o destino dessa menina. Gostaria de vê-la
alegre, despreocupada, uma moça feliz. E para que ela possa ser feliz é
necessário que a mamãe sinta-se também feliz. Então, de agora por diante,
desejo ajuda-las. Tenho casa comercial. Dilu à tardinha apareça lá. Quero ficar
fornecendo o que necessitarem até que um dia possam pagar. Tenho tecidos e alimentos,
calçados também. Quero que nada lhe falte.
- Não, não
podemos fazer isso.
- Bem, se não
forem apanhar mandarei trazer. Não pensem que estou interessado na menina. Se
fosse possível ficaria com ela como se fosse minha filha.
Mas na verdade, o
que pretendia era conquistá-la. Por as mãos naquele corpo sadio e bonito, como
quem colhe um fruto sumarento e cheiroso. As noites de insônia perseguiram-no,
como uma alucinação. Dilu não saia de sua memória. Tinha entrado na sua vida
sem ter mais jeito de sair.
- Pois é já me
vou. Fico esperando-a lá. Arranjarei depois um emprego. Aliás, tive agora uma
boa saída. Dona Santina bem que poderia ir se empregar lá em nossa casa. Não
diz que é a mãe de Dilu, Nem fala no nome dela. Pode ir logo hoje, pedir
emprego. A dona Margarida vai aceita-la. Ela gostara de seu trabalho e de sua
companhia. Somente algum tempo depois falará na Dilu. Ela ira então até
perguntar pela menina. Irá também querer conhecê-la.
- Mas a menina
não poderá ficar só. O diabo atenta. O mundo está cheio de malandros e alguns
deles poderão vir aqui atenta-la e, quem sabe até forçá-la.
- Que nada. Ela é
uma moça ajuizada e ninguém se atreverá a isso. Mas antes apareça em nossa casa
de comercio. E ensinou onde era.
- Bem, até breve.
Façam exatamente como estou recomendando. A vida é assim mesmo. A gente tem que
lutar e aceitá-la como ela realmente é. Mais tarde sairão desse casebre. Vou
comprar uma casinha para se mudarem.
À tardinha Dilu
entrou na loja de seu Crispim. Ia como se fosse empurrada pela força de um
destino cruel.
- Boa tarde seu
Crispim. Queria comprar alguma coisa, para pagar depois.
Crispim nem
perguntou o que era. Foi embrulhando logo o que bem sabia de necessário a uma casa
que não tem nada. Quilo disso, quilo daquilo. Aliás, nem pesava. Colocou tudo
numa caixa. Dilu sentia-se humilhada e com vontade de chorar. Lembrou-se do pai
que as obrigou a fugir. Bem que poderia estar em sua companhia, morando em sua
casinha e na terra que era sua. E teve pena do pai. Fosse como fosse era seu
pai. Mas agora não tinha mais jeito. Também não suportava mais ver a mãe
sofrer.
- Pronto Dilu.
Leve para casa e volte sempre aqui. O pão venha buscar todos os dias. Não quero
pensar que passam fome. Mas a final Dilu, quem são mesmo vocês. De onde vieram?
- Mamãe me
proibiu de dizer. Nem vale a pena saber. Somente ela poderá lhe falar.
- Dilu, você, uma
moça tão bonita como é não pensou ainda em casar-se? Quem sabe, tudo poderia
melhorar para vocês duas.
- Ora seu
Crispim, quem vai querer uma moça pobre como eu. Ninguém.
- Mas você
precisa ter pelo menos um namorado, alguém que lhe faça agrados. Quem é moço
gosta disso. Pois se eu não fosse casado, casava com você mesmo que fosse à
força. Já pensou viver em companhia de uma coisinha linda como você.
- O senhor gosta
de brincadeira. E soltou-se num sorriso brejeiro. E há quanto tempo não ria.
Nem se lembrava.
Tomou a caixa,
agradeceu, despediu-se e lá se foi sob os olhos famintos de seu Crispim.
- Ah! Diabinha,
se eu te pego. Mas devagar se vai ao longe.
Dona Santina
havia ido à casa de seu Crispim. Dona Margarida gostou de sua aparência e
acertou emprega-la a começar logo no dia seguinte. Crispim sentiu-se vitorioso.
A coisa ia no seu bom caminho. Agora, no seu entender, era só ir avançando devagar,
sorrateiramente.
A terrível
situação de dona Santina obrigava-a a aceitar as insinuações de seu Crispim.
Entretanto, ele que não pensasse em abusar da filha, iludindo-a e explorando à
sua miséria. Ele talvez pensasse que ela não estava a perceber suas intenções
sujas.
Logo ao voltar
abriu os olhos de Dilu. – Olha menina, o bicho pelo que se vê está mal
intencionado. Mas não temos outro jeito senão aceitar por enquanto os seus
oferecimentos. Nada de liberdade com ele. E se dona Margarida suspeitar,
perderei o meu emprego e a nossa vida irá piorando ainda mais.
- Nem se preocupe
mamãe. Pensa que eu já não percebi. Ele já me fez umas perguntas. Fiz que nem ouvia.
Ri dele e ele pensou que estava rindo para ele.
- É mais tu não
conheces ainda as manhas dos cafajestes. Uma conversinha, um presentinho, a mão
no queixinho das moças, um agradozinho daqui e outro dali e quando menos se
espera quer dar o bote final.
- Deixe comigo.
Não se assuste. Para me ver livre dele já tive uma ideia. Só me falta falar com
o padre Pedro. Quem sabe se ele não está querendo empregada. Aí todos vão me
respeitar. Ficarei amparada. Dizem que o padre Pedro é quase um santo.
- Nem, sei Dilu.
O povo fala tanto de empregada de padre... A batina não tira a reima. Duas
criaturas sozinhas numa casa nunca da certo. E de mais uma menina como tu.
- Mãe, é até
pecado falar assim. Vou tentar sempre.
E foi. Padre
Pedro quase teve um estremilique. Não, não era possível ter tanta sorte.
É seu vigário,
até hoje ninguém quis me ajudar. Ninguém se agrada de mim.
- Ora, menina, podes até ficar logo. Mas, como é mesmo
o teu nome?
- Dilu. Deolinda.
Vou primeiro falar com a mamãe. Será que o senhor tem lugar também para ela.
Somos somente nós duas. Ela esta empregada em casa de seu Crispim.
- Certamente. Mas
tomem cuidado. O seu Crispim não tem boa fama. Aqui em Ipueiras, todos sabem. A
cara é de santo, mas o resto não vale nada. Bem não quero entrar na vida dos
outros.
Dilu não se
conteve. Passou logo pela casa de seu Crispim.
Dona Margarida
foi recebê-la.
- Tu de novo
mocinha. Já te disse que não tenho emprego.
- Não minha
senhora, quero é falar com a mamãe.
- Espere e a
Santina é tua mãe?
- É sim!
- Pois, então, vou
chamá-la. E saiu resmungando. Isso deve ter sido coisa preparada pelo crispim.
O bicho é mesmo descarado. Hoje acerto os ponteiros com aquele cachorrão.
- Olhe dona
Santina. Aí tem uma mocinha esperando pela senhora.
- Quem? Não
conheço ninguém.
- É sua filha. E
vou logo usar de franqueza. Não quero essa menina aqui. Estava gostando tanto da senhora, mas agora
perdi o gosto.
- Mas dona
Margarida, a Dilu é uma moça direita e boazinha.
- Sim, pode ser.
Mas meu marido não é. E sabe de uma coisa curta e certa. Vá com a sua Dilu.
Vamos fazer as contas. Está aqui a vinte e três dias. Vou buscar o seu dinheiro
e muito obrigada. É uma pena, mas é isso mesmo. O Crispim vai me pagar. Vou
esperá-lo para o almoço.
- Pelo amor de
Deus, dona Margarida seu Crispim não tem nada com a minha vinda para sua casa.
- Tenha ou não
tenha hoje me paga o novo e o velho.
- Nossa mãe.
Vamos mãe. Vamos depressa antes que o homem chegue.
- É bom mesmo que
se sumam de minha vista.
- Já estou
empregada em casa do padre Pedro. Mas vou lhe dizer uma coisa. Seu Crispim é um
homem muito bom. A senhora é quem é uma onça braba. Não sei como ele lhe
suporta.
- Por ali sinhá
atrevida. Bichotinha safada.
- Safada, não.
Sou uma moça direita. Vou já contar a seu Crispim. Tomara que ele lhe dê uma
surrota. Nós somos pobres, mas somos gente. Deram-lhe as costas e se foram.
Foram diretas
para casa. Certamente que não iriam dizer coisa alguma a seu Crispim.
Prepararam-se e
saíram para a casa de padre Pedro.
Crispim entrou em
casa de peito aberto. De nada suspeitava. Deu pela falta de dona Santina, mas
ficou aparentemente indiferente. Aquilo irritou dona Margarida que desconfiou
que Crispim soubesse dos acontecimentos. Imaginou então que a bichota houvesse
contado. Á hora do almoço resolveu disparar. Crispim levantou-se da mesa. E ela
assustou-se. Parou de gritar. Procurou Crispim e não o encontrou. O bicho foi
atrás da Dilu, não tenho a menor duvida. Certamente já estão de paleio. Teve
vontade de ir procurá-lo. Ficou a tarde toda à espera. Crispim não chegou. À
noite foi que chegou e ela sozinha. Arrependia-se da burrada que havia feito.
Crispim jantou fora. Conversou até tarde com os amigos. Voltou tranquilamente
lá pelas onze horas. Tomou um banho e foi deitar-se.
Dona Margarida
imaginava mais coisas. – O relaxado foi tirar o cheiro de mulher que pegou por
aí. Foi para a cama, calada e revoltada com o cinismo de Crispim. Não conseguia
conciliar o sono. Encostou-se em Crispim. Ele não se mexeu. Encostou-se mais. Crispim
sentia o calor do corpo da mulher, mas não lhe deu atenção. Aquilo lhe parecia
uma prova de que havia mesmo andado com outra. E só podia ter sido com a tal da
Dilu, a desavergonhada. Tão moça ainda, mas, se podia ver que não prestava pra
nada. E corria pelo seu pensamento Crispim acariciando Dilu, aquele corpo jovem
e atraente. Na verdade Dilu era tudo quanto um homem podia desejar. Procurava
fechar os olhos da imaginação para não ver os dois abraçados e na maior safadeza.
Não se conteve mais. Chamou Crispim. – Vem cá, Crispim. Perdoa-me, Crispim.
Fiquei com ciúmes, Não queria que aquela coisinha tão bonita ficasse perto de
tu, Crispim. Foi só isso. Ciúme, Crispim, ciúme que envenena a gente, Crispim.
Tu deves saber que as mulheres geralmente não confiam nas outras. Nos homens é
a mesma coisa até se matam.
Era isso o que
Crispim deseja. E convenceu-se que o melhor mesmo era deixa-la ao longe. Também
não teria coragem, reconhecia de querer abusar da Dilu, só porque era pobre e castigada
pelas outras mulheres. Já lhe doía a consciência. E depois, para dizer a
verdade, Dilu nunca lhe dera a menor confiança. Tudo não passava de um sonho,
de desejos que o corpo da diabinha despertava. Mas era duro tira-la da
imaginação. Além disso, casado com uma criatura que merecia o seu respeito e o
seu amor. Tudo isso passou a doer-lhe como um espinho na consciência. E naquela
mesma noite fizeram as pazes e se reencontraram. Mesmo assim, na ora do
reencontro, quem estava ali não era Margarida sozinha era também Dilu. E
procurou esquecer e respeitar a pobre menina.
No dia seguinte,
estourou a notícia. Dilu e a mãe estavam empregadas na casa de padre Pedro. Não
podiam acreditar.
– Coitada da
menina dentro de pouco tempo estaria na boca do povo. Padre Pedro iria fazer da
inocente, o seu breviário. Aquilo não era qualidade de gente. Tinha que ficar
de olho nele para proteger Dilu. Mas, como, se o bicho era matreiro e vivia
enfurnado e com as unhas escondidas. Tinha que por a cabeça a funcionar, armar
uma cilada para tirá-la de lá, antes que já fosse tarde.
– Ah! Padre
Pedro manhoso de uma figa. Parecia que estava vendo. Dilu para lá, Dilu para
cá. E certamente faria da menina a principal zeladora da igreja. Os três já
deviam estar comendo na mesma mesa para abrir-lhe mais o apetite.
–
Salafrário... Certamente mandou o sacristão convence-las. A miséria abre as
portas aos espertalhões. E não era somente a Dilu. Dona Santina, uma mulher
ainda nova e bem vistosa, deveria estar também na mira do reverendo. Embora as
duas não parecessem fáceis. Usaria de artimanhas e artifícios. Agrados e mais
agrados, mandando uma sair outra ficar, falando em solidão, em tristeza e da vida
de um homem que vive só. Até o modo de falar, adocicando as palavras, passando
discos na velha vitrola, com canções repassadas de amor e saudades. Vestidos
novos, sapatos da moda, perfumes. As coisas começam assim. Poderia até insinuar
que tinha medo de dormir sozinho, naquele casarão, motivar comentários das
duas.
– Coitado do
padre Pedro, minha filha. Viver só, comer sozinho, dormir só... Uma vida de
santo. Pelo menos agora tem nossa companhia.
Dilu, ou Dilu...
Vem cá menina. Adoro cafuné. A velha que trabalha aqui me viciou nisso.
Penteava, alisava meus cabelos e dava cafunés que me faziam cochilar e
adormecer.
Seu Crispim
resolveu dar uma espiada e fazer as primeiras sondagens. Atirou-se para a casa
do padre Pedro. Tinha intimidade com o sabidão. Subiu os degraus e foi logo
apreciando a cena dos dois. Dilu penteando e alisando os cabelos do descaradão.
Era assim que ia amaciando a menina. O padre de olhos fechados deliciava-se com
aquele alisado prometedor.
Crispim pigarreou.
Dilu o avistou. Foi saindo apresada. Padre Pedro percebeu e deu com a cara de
Crispim. Mandou-o entrar. Crispim foi logo dizendo que tinha vindo fazer-lhe
uma visita, aliás, atrasada.
- Eu também tenho
saído muito pouco. As obrigações religiosas e caseiras tomam todo o meu tempo.
Somente agora passarei a descansar mais um pouco. Tenho boa cozinheira e uma
arrumadeira que cuidam bem das minhas coisas. Foi muita sorte senhor Crispim.
Sabe aqui como é. Não é tão fácil conseguir gente de confiança e de respeito,
como convém á casa de um vigário.
- Está de
parabéns, padre Pedro. Dona Santina estava em nossa casa. Aliás, ela tem uma
filha, a Dilu, moça muito interessante. Uma bela menina.
- Pois é. Santina
e Dilu. Duas criaturas virtuosas. Assistem a missa com devoção, rezam antes das
refeições e cuidam bem do vigário. Depois de mais alguma conversa, Crispim
despediu-se.
– Tenho que
dar um jeito, salvar a Dilu. O sabidão está começando a arrepiar a menina.
Começa com aquela intimidade e o resto vem depois. A saída seria arranjar um
casamento para Dilu. Tira-la das unhas de padre Pedro. Aquele padreca vai
perder o pulo do gato. Não foi para Crispim, também não será para o padreca.
Vestiu bem o seu empregado, sujeito moço, sadio, de boa aparência, forneceu-lhe
dinheiro e mandou-o conquistar a Dilu. Estava liberado do balcão, para lhe
sobrar tempo. Não faltava a missa, acompanhava os passos da Dilu, procurando
insinuar-se. Dilu notava a presença de Abílio. Já o conhecia de longe. Agradava-lhe
vê-lo, sempre limpo e alegre, a desafiá-la. Certo dia Abílio aproximou-se.
Cumprimentou-a e Dilu sorriu, estava começando o namoro. Despediram-se já à
porta da casa de padre Pedro. Aí oculto, padre Pedro observava o encontro.
Quase tem um desmaio. Dilu entrou casa adentro mais leve e mais palpitante.
Padre Pedro notou a diferença. Chamou Dilu – Vem cá menina. Cadê os cafunés de
seu vigário.
- Agora mesmo
padre Pedro.
Os cafunés já não
eram os mesmos. O contato das mãos de Dilu já não tinha o mesmo calor. Padre
Pedro percebia que o pensamento de Dilu anda longe. Abriu o breviário, tentou
ler. Fechou-o. Não entendia nada.
- Olha Dilu,
porque demoraste tanto hoje?
- Só um pouquinho
mais. Saio pouco e fiquei olhando as ruas.
- Parece que te
vi acompanhada, toma cuidado, menina. Sei que as moças gostam de um namorinho,
o que não faz mal. Mas tu és ainda muito jovem, uma criança inexperiente. Toma
cuidado. O que está te faltando em casa do padre? E depois Deus me livre de
perder estes teus cafunés. Sinto-me tão feliz quando alisam estes meus cabelos
que nunca sentiram carinhos. Não te apresses.
- Não padre Pedro,
é apenas um conhecido lá da casa de seu Crispim, da mercearia, onde a gente
comprava umas coisinhas, quando tinha algum dinheiro.
Passaram-se os
dias, os meses. Abílio foi à casa de padre Pedro acompanhado de seu Crispim. E
foi seu Crispim quem falou. – Queremos, se o senhor permite, falar com dona
Santina.
- Alguma
novidade, seu Crispim?
- Mais ou menos.
- Dilu, ou Dilu.
Chama dona Santina, menina.
Dona Santina não demorou.
- Boa tarde. Às
suas ordens padre Pedro.
- Estes senhores
querem te falar.
- Sim dona
Santina. Aqui o Abílio vem lhe pedir Dilu em casamento. É um bom moço, bem empregado,
casa para morar e da boa família e bons costumes.
- Dilu nunca me
falou nisso. E o que dizes Dilu? Quer mesmo te casar com o senhor Abílio?
- Querer, quero.
Mas se mamãe e padre Pedro consentirem.
- De mim, sim.
Padre Pedro resolve.
- Isto é um
casamento muito sério. E não tenho experiência de casamento. Olhou para Dilu
com ar de reprovação. Dilu assustou-se. A mãe poderia perder o emprego.
É melhor deixar a
menina pensar calmamente. Refletir no que vai fazer. Conversar com dona
Santina. Nada de precipitações. Voltem depois, não é Dilu?
- Do jeito que o
senhor quiser padre Pedro. Sou uma tola.
Padre Pedro
ganhava terreno.
- Não adianta
esperar. Dá logo o bote. Tira a menina e leva para a casa do compadre Simeão.
Será teu padrinho de casamento. Quero ver a cara do padre, celebrando teu
casamento, combina com a menina e procura tira-la urgentemente da casa daquele
sabidão. Não merece a menor confiança.
Abílio andava
preocupado com o interesse e a impertinência do seu Cipriano. Aquilo deveria
ter água no bico. Casamento arranjado pelo patrão dava para desconfiar. Por que
aquele interesse todo. Abílio procurou encontra-se com a Dilu. Disse-lhe do seu
desejo de casar-se com ela. Mas não queria morar mais ali. Se ela concordasse,
ela e dona Santina, iriam morar noutra cidade. Tinha suas economias e abriria
um comercio qualquer noutra cidade.
- E o padre
Pedro? Recebeu tão bem a gente.
De lá se escreve
para seu Cipriano e para seu vigário. O amor vale esse sacrifício.
- Vou falar com
mamãe, está certo. Se ela não concordar, nada feito. E contou a dona Santina o
propósito e o convite de Abílio.
- Não, minha
filha. Não farás essa doidice. Não quero deixar o padre Pedro. Ele não merece
isso. Também não concordo em fugires com ele. Aparecerá outro noivo. Aquele foi
encomendado.
- Mãe acha?
- Acho sim.
Aquilo é artimanha de seu Cipriano. Eu vejo como ele te olha, querendo te
devorar. Não te esqueças que já sofremos demais com um casamento errado. Espera
mais, se puderes.
Um ano depois
aconteceu o imprevisto. Padre Pedro desapareceu da cidade. Ele, Dilu e dona
Santina. A chave da casa paroquial ficou com o sacristão. Em cima da cômoda estava
a batina de padre Pedro.
Crispim entrou em
casa furioso. – Está aí, Margarida, o que você fez. Tirou a batina do padre
Pedro. Não quis dona Santina aqui, com medo da Dilu e virou a cabeça de seu
vigário. Sumiu com as duas.
- Ora Crispim e
foi só isso. Bobagem. Agora me dizes por que esta tão preocupado. Não é parente
de padre Pedro, nada tens a ver com dona Santina e Dilu. Ciúme não é? Pois
fizeram muito bem. Toma vergonha nessa cara, bicho. Pensas que não sei de tuas
patifarias. Dona Santina contou-me tudo. Mandou o Abílio conquistar a Dilu para
tirá-la da casa do padre Pedro e deixa-la perto de te. Por que não te vais
também. Vou mandar rezar uma missa de ação de graças para os três.
- O que é isto,
Margarida. Juro que tudo é fofoca, minha nega.
- Olha, Crispim
vou marcar a hora de chegares em
casa. Tu não és de nada, Crispim, pois se eu fosse homem a
Dilu não me escaparia. Eu mesma nunca tinha visto uma doidice daquela. Só mesmo
um basbaque como tu, perde um petisco daquele. É mesmo uma vergonha ter um
marido da tua qualidade. Vai, te prepara que vou te chupar até os ossos.
*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
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