JOSEMAR*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/03/2004)
Josemar
era dessas criaturas sumíticas que tinha pena de comer e de vestir. Qualquer
coisa que dependesse de abrir a bolsa para tirar uma moeda, era-lhe tão penoso
que preferia privar-se de tudo aquilo que não fosse absolutamente essencial, de
vida ou morte. E não eram que lhe faltassem os meios para viver bem.
Herdara
o suficiente para usufruir o que havia de melhor e trabalhava como um louco
para acrescer os seus haveres. Para começo de conversa, não dava esmolas nem a
cego nem a aleijado. Não tinha culpa de haverem nascido pobres ou de não
possuírem nada. Era problema de cada um. Que fossem se queixar ao governo ou ao
bispo. Tudo quanto possuía custara o suor de sua família e dele próprio. Se
desse ou acabasse com o que tinha, amanhã ou depois, iriam dizer que era um
vagabundo ou teria desperdiçado até a herança do pai. Não senhor, não tinha
dinheiro não. Cada qual que cuidasse de si, como ele fazia. A mulher e os
filhos dependiam dele e não pretendia morrer sem ter bens para inventário, o
que considerava muito feio. - Fulano morreu e não possuía nem um pinico velho para
deixar pra família. Essa não!
E
então juntava, juntava, comprava mais terras, casas, sim, gostava de comprar
casas, e se pudesse, seria dono de ruas inteiras. E não tinha nada que dar satisfação
a corno nenhum! Quem fosse bonzinho que desse o que tinha. O problema era dele,
e acabou-se. Quando seu vigário pedia para a igreja, festas ou consertos da matriz,
sempre se recusava alegando quer não podia e por trás comentava que santo não
comia, não vestia e portanto para que queriam dinheiro. Como era católico a sua maneira, certa ocasião ofereceu ao
vigário algumas cuias de cal para ajudar na pintura da matriz. Houve até
comentários a respeito. - Está para acontecer alguma coisa, ou seu Josemar fez
alguma promessa!
Como
era um homem considerado ricaço, às vezes pessoas pobres o chamavam para
apadrinhar o filho. Não podia, era crente e o padre não permitia. Ora, era só o que lhe faltava,
comprar camisa de batizado e ter que pagar o batizado. Essa não.
Sua
casa comercial, um bazar, onde vendia de tudo, prosperava sempre, e havia uma
particularidade. Não vendia caro. Queria era vender muito. Calculava uma
porcentagem de lucro e não saia daí. O importante era saber que embolsava os
vinte por cento, seguros. Disto fazia questão serrada. Enquanto outro vendia cinco
e ele vendia cinqüenta e ganhava mais.
A
filha única noivou, casamento para logo. Os irmãos homens, ambos trabalhando na
mercearia, preocupavam-se com o casamento. O noivo, empregado da prefeitura,
era instruído, mas de parcos haveres. A irmã não poderia casar-se como mendiga
e já sabiam como o velho era amarrado de corda. Haviam de armar uma saída,
fosse, como fosse para um casamento condigno. Além disso sabiam que o noivo só
dispunha do magro ordenado, insuficiente que era para manter uma casa. O
primeiro passo seria falar com a mãe e o pai para tomar a altura dos propósitos
paternos. E foi ai que veio a grande surpresa.
-
Vocês o que pensam de mim. Faço economia, não dou nada a malandro, mas para
minha filha, ou melhor, para os meus
filhos, o que tenho é para eles. Almira terá um casamento como ainda não foi
visto nesta cidade. E veio então, a dúvida, se seria faustoso ou não visto pela
pobreza.
-
Em primeiro lugar, meninos. Já estou com a melhor casa reservada para Almira. O
vestido de noiva e o enxoval, disso cuidara tua mãe e quero do melhor. E para
coroar a festa um jantar para quem quiser comparecer. Sou econômico, mas não
sou miserável.
-
E a manutenção da casa?
-
Não esqueci nada.
-
Terá uma boa retirada da casa comercial e o marido deixará o emprego e abrirá
uma loja! Creio que aquilo que vinha fazendo economia já basta para mudarmos de
vida. Quando não se tem nada ou muito pouco, o caminho é poupar, enquanto se é
moço e capaz, para ter conforto na velhice.
E
é assim que passaremos a viver daqui por diante. Inclusive, não irei, mas
dirigir a casa comercial. Vocês que tomem conta e a façam prosperar. Dará sobradamente
para todos nós. Eu e a mulher iremos viver praticamente dos rendimentos
bancários e outros. Mas nosso bem estar futuro depende de vocês dois. No
entanto irão viver como gente. O que fiz até hoje, numa vida de parcimônia,
tinha esse objetivo. Chegamos onde eu desejava. Só uma coisa recomendo. Não
abram as mãos para vadios.
Igreja
pede demais e não precisa de tanto dinheiro. Ali tudo se paga. Do batizado ao
casamento. O que fazem de graça é a confissão e é o que sai mais caro. Confessam
a troco dos segredos dos paspalhões. As coisas mais íntimas e mais sigilosas
são declaradas aos padres. Coisas que nem os maridos nem os pais sabem. Mas sua
reverendíssima conhece tudo, a título de um perdão sem nenhum valor. Todos
sabem o que eles querem. Pois então, gavetas trancadas. Quem quiser dinheiro
que vai suar e calejar as mãos como nós.
O
casamento de Almira será o marco de nossa mudança radical. Vão ver para que serviu
nossa economia e para que vai ser o dinheiro que pacientemente amealhamos. Sem
a poupança que fizemos, seriamos talvez a vida toda, pobres, sem oportunidade
de ter o conforto que poderemos usufruir daqui para frente, se vocês dirigirem
bem os nossos negócios. Experiência tem
de sobra e certamente não irão querer regredir.
Um
colegial não passa anos na escola, num regime de mesada para depois de formado
ter a vida que desejava? Pois bem assim fomos nós. Estamos saindo da mesada da,
sumiticaria, como diziam por ai. E o que acontece. Os liberais, os bonzinhos,
não juntaram e vão continuar quem sabe até quando, na dura expectativa do
futuro. Precisamos somente de boa saúde e completa harmonia, sem desperdiçar,
está visto. Como iria casar a menina, se estivéssemos como éramos a alguns anos
passados? Só Deus poderia saber e ela, coitadinha. Chamem-na aqui!
E
Almira chegou com ar de preocupação naturalmente pensando no seu humilde
casamento. Tudo seria tão simples, tão moderno que iriam por reparo. E, como
seria seu lar, com aquele pouquinho que o noivo ganhava no empreguinho da
prefeitura. Aquilo lhe doía dia e noite como uma ferida no coração. E ia mais
longe, pensando no passadio, no filhinho que chegasse e até no vestido para ir
á missa e visitar os parentes e amigos. Não podia acreditar que o pai, com
aquele rígido sistema econômico, abrisse a mão para dar-lhe, ao menos o
essencial. E, por isto, era uma noiva triste que sentia necessidade de casar, e
ao mesmo tempo, vontade de desistir. Afinal de contas, Almira tinha medo, mas o
amor empurrava para frente.
Seria
tão bom que o noivo possuísse uma casa para morar e ganhasse o suficiente para
ter uma vida folgada. Mas, não era assim, bem sabia. Poderia ter algumas
economias, mas o arranjo da casa absorveria logo. Por outro lado já lhe tinha
dito que havia ido ao prefeito solicitar uma melhoria de vencimentos, mas sem
resultado positivo. E tinha muita pena de Anselmo, a quem adorava.
Não
adivinhava que as suas angustias estavam saindo como um fantasma em fuga. O pai
lhe narrara tudo que ia fazer. Ela teria um dos mais atraentes casamentos da
cidade, a casa mais nova e melhor já estava reservada, uma retirada normal
estava certa e o Anselmo deixaria a prefeitura e abriria uma casa comercial bem arrumadinha, Almira nem podia acreditar em tanta fortuna. Sorria e chorava ao
mesmo tempo, abraçada com o pai.
-
Sei que curtistes muitos dias amargos. Tua mãe e teus irmãos também. De mim,
nem quero falar. Mas chegou nossa libertação. As sombras do passado acabaram de
se dissipar. Havia de ser assim. Antes tarde do que nunca; entendestes. Fui
tido como cauíra, usurário e outros adjetivos, mas, a Deus querer, amanheceu
para sempre, o nosso dia. Irás ter o casamento que mereces e a nos a satisfação
de te ver feliz. Vai, conta tu mesma á tua mãe, embora ela não acredite, depois
de tanta espera e de tanta mesquinharia de minha parte. Mas era tudo calculado,
tudo medido, contado e pensado. Deus te abençoe e a todos nós. Toma nota desta
data. E não esqueças de falar com teu noivo e de dizer-lhe que marque a data do
casório. Isto é, com tempo para todos os arranjos que teremos de fazer. Quero
que nem o teu noivo te reconheça no altar... E não te esqueças também de dizer-lhe
que venha falar comigo. É uma excelente pessoa e quero ao mesmo tempo, mandar
que mobile, contigo, a casa onde irão viver. Ele pode, aliás, ir logo se preparando
para deixar a prefeitura. Não quero um genro meu naquela penúria. E, como é,
está confiante?
-
Ah! Papai, como se pode ser assim tão bom!...Sempre confiei que um dia nossa
vida iria mudar.
Anselmo
não desejava ser tão pesado ao sogro. Poderia tomar conta da nova casa
comercial, mas apenas como uma espécie de gerente. Na verdade era pouco
remunerado, mas também havia feito suas economias. De tostão em tostão, formara
seu pé de meia, do qual só ele mesmo sabia. Não era grande coisa, mas, no
entanto, para ele significava uma fortuna. O fato é que não teve para onde
fugir. O sogro não o queria como gerente. A loja seria uma parte do que mais
tarde pertenceria a filha. Cabia a Anselmo desenvolve-la, fazê-la crescer,
juntar dinheiro e viver bem. Era somente isto que desejava.
E
o certo é que três anos depois de casado, Anselmo poderia considerar-se um
homem independente. Para seu lugar na prefeitura logrou a nomeação de um amigo
mais necessitado do que ele e que vivia de um pequeno artesanato, apesar dos
seus conhecimentos e do seu grau de instrução.
Após
o casamento, á cidadezinha não falava noutra coisa. A não ser na transformação
radical da família de Josemar. Só poderia ter sido um milagre. De outra forma
não se poderia entender um salto tão brusco. De sovina que era passar para um
bonachão daquele, só mesmo os poderes de Deus. Teriam força para fazê-lo. E o
Padre da freguesia viu abrir-se uma clareira. Inventou de proceder reforma aos
altares e no teto da igreja. Pedia sua ajuda.
-
Pois não e ofereceu ao pároco, desta feita, dois sacos de cimento. - Dinheiro
não tinha. O cimento saia da casa comercial e era mais prático. Pelo menos
poupava ao trabalho de ir comprar e mesmo assim, houve uma tentativa de pegar alguns
cobres para despesas de mão de obra. - Nada disso. Cada um dá o que pode. Se
não serve, ficaremos como estava.
-
Mas, seu Josemar, o senhor gastou tanto com o casamento de sua filha, como não
pode dar uma contribuiçãozinha maior e em moeda corrente.
-
Ah! Meu amigo, quem da o que tem a lhe faltar vem. Levei muitos e muitos anos
me privando de muitas coisas para alcançar o degrau onde hoje estamos. Nunca
ninguém foi nos perguntar se precisamos de alguma coisa. O que faziam era
chamar-me de sovina, cauíra, miserável. Um homem rico vivendo como pobretão
cauíra. Era assim que me tratavam. Não sabiam que estava me preparando para uma
vida melhor. Não enriqueci, mas tenho de que viver folgado. Amo minha família.
Quem quiser que faça o mesmo. Mas afinal de contas, não devo nada a ninguém e
censure-me quem quiser. Pouco me importa que me tratem como antes. Não devo,
durmo sem preocupações, minha família tem o que quer, não exploro ninguém,
sempre vendi mais barato, sofremos, mas não fizemos mal a ninguém. O que é meu,
adquirido com o meu suor e sacrifício da família, não sai assim à toa. Comecei
puxando uma cachorra e nunca o senhor teve uma palavra de estímulo, de
encorajamento. O senhor mesmo, cheio das granas jamais me facilitou nada. Eu
era o pão duro, cauíra. Muitos outros, dadivosos estão ai se arrastando. Não
falo com orgulho não, confio é no meu trabalho e em minha coragem. Minha
família hoje vive zelada à custa de grandes sacrifícios iniciais. E pra que o
senhor quer dinheiro, se não tem família, não tem um lar, como os outros.
-
Para a igreja, é lógico.
-
Já sabia que esta seria a resposta. Bem, o que me interessa é minha família e
meus negócios. A igreja é como o senhor e o padre não sou eu. Cada um que vá viver
do seu trabalho. Espero é que nos deixem na santa paz do Senhor e na certeza de
que não temos nada para dar.
-
A caridade manda que se dê um pouco do que tem aos necessitados.
-
Sim, uma velhinha, um velhinho desamparados, sempre ajudei! A vadio e boa vida,
não darei jamais. Sei o quanto nos custou o que hoje temos. Pimenta nos olhos
dos outros não arde. E por que o senhor não distribui o que tem.
-
Como se já ando pedindo!
-
E onde foi que pedir já foi uma profissão. Por que não vai ensinar, abrir um colégio,
ou uma casa de negócios. Não é possível que a igreja proíba. Só se vê isto no
catolicismo. Os protestantes e outras seitas fazem suas pregações mas tem
outras atividades. Embora também arrecadem dos bestas.
-
Dispenso os seus dois sacos de cimento. Quero só o que é dado de boa vontade.
-
E o senhor pensa que alguém lhe dá de boa vontade. Dão com medo do purgatório e
do inferno. Ora essa. Tire essas duas coisas do caminho do céu e ninguém lhe
dará um níquel, seu vigário.
-
Ora, você só conversa bobagem. Precisa mudar de convicção. Quem dá aos pobres,
empresta a Deus.
-
Deus não precisa de empréstimo de ninguém. Tudo isso é lambança, Deus tem tudo
para dar. É inútil querer convencer um homem como eu que sofreu o diabo para
chegar onde estou. Tinha até pena de minha família. Passando precariamente
cheia de restrições, enquanto eu estava com os olhos no futuro. E lá fora, as
más línguas não me poupavam. Castigavam-me como se eu fosse um vil. Agora dispenso
as bajulações, os agrados que bem sei, são todos falsos e interesseiros. Mudei
apenas de regime de vida para dar o conforto à família e a mim mesmo. No mais
continuo o mesmo. E, a Deus querer, continuaremos reforçando o patrimônio. Querer, Deus quer, pois sempre ajudou
a quem é honesto e trabalha. Viu, que belo casamento o de minha filha? E é bom
que olhe para o Anselmo, humilde empregado da prefeitura, hoje sólido, livre,
com um bonito lar, um homem de bem.
Meus sacrifícios serviram para dar-lhe
condições de vida condigna. Meus dois filhos, nem se fala, são dois homens
lutadores, econômicos, sérios, e afortunados. Todos passaram comigo, não
privações, mas restrições, talvez pensassem que eu iria ser o mesmo por toda
vida. No entanto, hoje reconhecem que eu estava agindo com prudência e tino.
Passados
alguns dias reuniu a família. Com a intenção de pedir-lhe desculpas pelos rigores
de sua economia e explicar-lhes os seus planos: - Seriamos pobres toda vida e
justamente quando fossem maiores as nossas necessidades. Na velhice, nos atos
mais importantes de nossa vida. E sofreríamos muito mais e eu, provavelmente
seria visto como um incapaz. E agora, pergunto–lhes se estava certo ou errado?
-
Ora, nem se comenta. Certíssimo. Nós não teríamos tido uma decisão tão
salvadora como esta. Não iremos pensar assim, no futuro.
-
Fiz o que todo estrangeiro faz quando chega ao Brasil. Começa quase sem nada,
não gasta o que consegue e anos depois estão ricos, mangando da gente. Segui
apenas o exemplo dessa gente. E, pelo que vejo, de hoje em diante poderemos
ter, sem sacrifícios, o que desejarmos. Mas não esqueçam o antigo ditado: “a
economia é à base da prosperidade”.
-
Sabe papai, - disseram-lhes os filhos: - vá descansar e deixe o resto por nossa
conta. Já estamos, pensando em comprar uma fazendola, criar gado, produzir
legumes e frutas para casa.
-
Oh! Comprem, que eu tomo conta. Sempre sonhei com a vida sadia do campo.
Em, 15/07/1985
*O conto pertence ao livro “Vidas
Nordestinas”, no prelo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário