domingo, 12 de abril de 2015

FORTUNATA

 FORTUNATA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Fortunata enviuvara e ficara apenas com a casinha onde moravam. No dia seguinte, depois do enterro sentia a realidade puxando-lhe as orelhas. Antes não pensara no que lhe poderia acontecer. E nem tinha porque pensar. O seu Juca era aparentemente um homem para viver mais do que ela. Forte como um leão bem nutrido e não se queixava de nada. A morte chegou de surpresa, sem um aí, sem um trejeito. Afinal já estava enterrado, debaixo de sete palmos de terra e mais o abaulado da cova.
            Pensava no destino e não entendia como se apagava uma vida assim tão depressa, sem a menor consideração a quem ficava sem qualquer arrimo e inteiramente só. E pensar que vivia tão bem, sem uma queixa, sem um lamento. O Juca era o seu pão de cada dia, que, pouco ou muito nunca faltava. Homem sem vícios, religioso, honesto e inofensivo. Enquanto isso, o coronel Teodoro, rico, prepotente, perseguidor e violento estava aí bem vivo e cada vez mais perverso. Não sofria uma ave Maria de penitência. Se o diabo o levasse não deixaria falta nem saudades. Seria um alívio. No entanto, o Juca, bom como era, apagou-se num instante, deixando-a sem ter ao menos o pão do dia seguinte que sairia de seu trabalho. Era mesmo um contrassenso. Lembrou-se então do velho ditado – Deus dá a roupa conforme o frio. Havia de se mexer sem perda de tempo. E foi pelas casas, pedindo roupa para lavar e passar ou qualquer outro trabalho que lhe desse o sustento. E foi assim que recomeçou a vida. Dia e noite ensaboando a roupa sua e das outras, às vezes mal cheirosa e imunda, mas daquela sujeira é que teria de sair o pão de cada dia. Mas jurava que havia de sair daquela profissão tão baixa e mesquinha. Já não suportava mais aquele azedume de roupas sujas. E que nojo lhe causava as roupas íntimas, quase sempre com os sinais de porcaria. Conversava com as amigas, pedia-lhes pareceres, até que de certa feita encontrou-se com a preta velha Eudócia, já encostada e vivendo sob os cuidados da filha.
            - Ora Fortunata, quem sabe se não será melhor passar a ser curandeira, fabricar garrafadas e outras meizinhas com ervas do mato e do quintal. Há tanta doença por aí cada uma mais feia do que a outra. E quem é que não deseja se curar.
            - Ora dona Eudócia. Não entendo nada disso, além dos chás que sempre tomava para o estômago, cólicas e gripes. Isto mesmo, assim por cima.
            - Não te preocupes, conheço coisas maravilhosas. Aprendi com minha mãe e vivi muito tempo disso. São remédios que se não curam também não matam ninguém, mas pelo menos alivia. Os médicos também muitas vezes não curam e quanto mais à doença dura, melhor pra eles.
            - É, pode até dar certo. Não suporto mais lavar certas qualidades de roupas contaminadas de porcarias das outras. Creia que há vezes que nem posso comer tal o nojo que me fica. Deveriam lava em casa mesmo certas coisas. Mas não, a lavadeira que se ate.
            - Pois olha. Vem cá e irei te ensinar o remédio para tudo. Agora, terás que guardar segredo. Não se ensina a seu ninguém e nem se conta nada sobre os tratamentos. Sigilo total. Sabes escrever, não é, pois tragas um caderno e lápis para tomar as notas. Como se prepara cada meizinha, para que servem e como tratar. As dietas são muito importantes. Tomar remédio sem dieta não vale de nada. E prepara-te. Vai logo plantando no teu quintal as ervas que vou recomendar. O mais irás comprando nas feiras ou arranjando por aí. Agora te pergunto se queres também remédio para botar menino pra fora.
            - Isto não. É muito perigoso.
            - Então, nestes casos manda pra cá. Da-se um jeito. O que não se pode deixar uma criatura embaraçada. Há mulheres que ainda não devem ter filho. Sabes como é.
            - Não tenho coragem. É perigoso. Cada um que enfrente corajosamente suas situações.
            A verdade é que Fortunata não parou na aprendizagem e, veladamente, divulgava a natureza de seu trabalho. Especializou-se em doenças reumáticas, dores encruzadas e mulheres aparentemente estéreis. Rezas contra espinhela caída, moleira mole, ventre caído e doidice. O quintal encheu-se de ervas que cuidava com o maior zelo. Cascas de árvores e certas sementes tinham que adquirir fora, coco, casca de angico, de João mole, raízes de catolé, romã, lima de umbigo aroeira e mulungu. Sementes de embira e muitas outras. Raramente preparava meizinhas com uma só espécie. Era sempre uma composição de várias coisas milagrosas. Possuía, conforme o receituário, panelas novas para certos xaropes e garrafadas. Panelas usadas não serviam para alguns medicamentos.
Com pouco a freguesia misteriosa já era grande e o dinheiro ia entrando milagrosamente. Dona Fortunata foi largando a lavagem de roupas, sobretudo daquelas casas de onde vinham roupas emporcalhadas. Quem quisesse fazer suas coisas que se cuidasse, não ela. Nem precisava vê-las. De longe sentia o cheiro de coisa feia, das safadezas íntimas.
Poucos remédios poderiam ser preparados por antecipação. Quase tudo havia de ser feito na hora. Era muito importante, o colorido das mezinhas. Dona Eudócia lhe ensinara tim tim por tim tim. Remédios claros, cor natural, não impressionavam. As tinturas tinham grande poder curativo. Coisa parecida com água de pote não sortia bons efeitos. Os banhos aromáticos eram milagrosos e tiravam certos malefício e coisas botadas. Contra doidice, banhos repetidos de entrecasca de mulungu eram calmantes fabulosos. Três ou quatro banhos quentes tiravam qualquer furor. Para sujeitos frios, aí então, fazia verdadeiros milagres. As mulheres que se aguentassem. A dona Eudócia sempre tinha coisa nova para certas complicações. Fortunata enchia seus cadernos de apontamentos, registrando cuidadosamente os efeitos, e as dosagens. Sim, as dosagens.
Muita gente, quase a maioria não tinha nada, além de impressão de doenças e nervosismo. Não seria o remédio que iria curar essa gente nervosa ou impressionada, e sim o mistério do tratamento. Era muito importante exagerar as situações, fazer do nada alguma coisa ou do pouco muito. Mas nas mãos de dona Fortunata, não valeria nada. Poderia voltar tranqüilo. Sua medicação não deixaria nem mais rastro de doença. Fosse a médico se quisesse e não antes de seu tratamento. Tinha ervas milagrosa. Bastaria que não lhe escondessem as coisas. Ela seria reservada ao extremo.
Quando lhe apareceu o primeiro caso de aborto, mandou-o para dona Eudócia. Não cuidaria desses casos. Os seus poderes não contrariariam a vontade de Deus. Para que pegou filho. Poderia dar remédio para evitar não para botá-los fora. Nem sabia nada a respeito. Curaria de tuberculose e lepra a dor de dente, mas, mulher prenha não era com ela. Outra coisa era evitar. Se quiserem dar os seus saltos da meia noite, que fossem antes. Aí sim, poderia se divertir à vontade. E não cobrava demais, nem sairia uma palavra de sua boca. Guardaria segredo absoluto. Também não precisa dizer o nome do santo.
Fortunata já não dava mais vencimento à clientela. Admirava-se, todavia, do número das amizades e relações clandestinas. Quanta gente transviada, meu Deus, admirava-se ela. Quem haveria de dizer. Em todo caso não era de sua conta, e resolvera ir cobrando mais caro. E valia muito bem. Que se divertissem à vontade. Preferia não ganhar aquele dinheiro, mas a turma gostava da folia e não tinha como evitar. O que a admirava era da facilidade com que a procuravam. Não havia dúvida de que elas eram solidárias. E havia umas que não tinha preventivo que chagasse...
Dona Fortunata não lavava mais roupa. Deixara de passar sabão nas sujeiras alheias. Seu negócio agora era curar. O que não faziam em hospital nenhum era botar para fora os amores dos outros. Quem gostou de gerar, que goste de criar.
E certo dia apareceu-lhe seu Gorgonho com uma doença braba, dessas que só saem na talhadeira e no martelo. Murchava para apodrecer e cair os pedaços.
- Minha nossa Senhora, homem. Como chegastes a este estado. Isso é doença do mundo e ao que parece não é uma só. Tenho visto muito cristão arruinado, mas desse jeito só o tal do Lázaro, da história da Bíblia. Juntar tanta coisa assim só por castigo. Mas em todo caso vou preparar-te uma garrafada explosiva e isto mesmo depois de fazer umas consultas para reforçá-la. Para botares isto tudo pra fora, irá tomar a garrafada “rabo de tatu”. Se não der jeito nessa gafieira, podes perder a última esperança. Ela é a última palavra. Um verdadeiro saca-rolha, ante-sifilítica. Mas prepara-te para dançar o coco. Ela vai bulir até com os ossos e as unhas dos pés. É bom numerar os ossos para colocá-los depois no lugar.
- Mas dona Fortunata, não será melhor morrer logo de uma vez. Preparar-me uma garrafada com erva de rato e mata garrote. Assim ficarei aliviado de uma vez.
- Que nada, homem, onde há vida há esperança. Preparo a garrafada – “enterro” que é tiro e queda -, mas quero é ver-te curadinho da silva. Gordo e corado. Não tens mais uma gota de sangue. Nas veias só tens mesmo água sifilítica, amarelada e insossa. Em todo caso, vou te curar. Tenho raízes muito poderosas. Já curei casos piores.
- Piores do que o meu?
- Sim senhor. Curei um que havia caído até o cabelo e os dentes. Os olhos já estavam cinzentos e a boca nem abria direito. Só se vendo.
- Então cuide logo, enquanto ainda estou em pé e não estou fedendo...
- Volta depois de amanhã. Estará preparada.
Gorgonho saiu com medo. Mas não tinha apelo. Já havia tomado todo o estoque de Elixir 914, sem resultado. O médico não tinha mais o que receitar. E também pouco se incomodava que levasse a breca. Estava habituado a essas coisas. A morte era um desfecho inevitável. Quem não morria hoje, teria que ir amanhã e mais um dia ou um mês, era a mesma coisa. O padre precisa ganhar os cobres da missa de defunto, o sacristão o toque de sinal e o coveiro estava lá de braços abertos para recebê-lo e cobrar o enterro. Tudo organizado e todos precisando viver. Se o cabra não bate a caçoleta, irá faltar pão pra muita gente.
Gorgonho bebeu a garrafada. Um troço meio amargo, meio adocicado ou que, afinal, não sabia que gosto tinha. Bebeu, deitou-se na cama de tratamento de dona Fortunata e esperou a revolução. A bicha andava lá por dentro como um formigueiro assanhado. Depois veio o destempero. Cada erva tinha sua função específica. Umas cuidavam da lavagem interna para jogar fora os detritos e impurezas, outras ativavam a circulação, umas fortaleciam o organismo e as principais quebravam no porrete a cabeça dos bacilos. Faziam o policiamento. Eram sete dias de resguardo e sete copos pelos beiços da xaropada milagrosa.
- Como se sente seu Gorgonho.
- Mas leve, com mais apetite, com mais coragem. Parece até que a temperatura está mais alta.
- É o sangue que está reaparecendo. Bom sinal. Qualquer alteração corra aqui.
- E quanto lhe devo?
- Paga quando estiver curado e dará o que achar que mereço.
Gorgonho desapareceu. Cumpria rigorosamente a dieta. A cor foi voltando e a reinação também... Mas não era nem besta pra cair noutra. Voltou a trabalhar. Com disposição. A carne foi juntando-se à ossada. E nem tinha mais dúvidas. Estava curado. Voltou à casa de dona Fortunata.
- O que deseja o senhor?
- Espere não me reconhece?
- Tenho uma vaga impressão de que já lhe vi, mas pode ter sido alguém parecido.
- Não é possível, dona Fortunata. Sou Gorgonho da garrafada. Voltei a ser o que era.
- Tão rápido assim!
- Um verdadeiro milagre. Desta vez o padre e o sacristão perderam a vez e o coveiro que vá enterra outro.
- Mas é incrível. Aquele cadáver é mesmo o senhor, com essa simpatia toda? Curado e gordinho assim. Francamente não esperava tão logo assim e nem essa transformação. Puxa diabo. Quando cair noutra já sabe. As portas estão abertas. Nem precisa bater. É só entrar.
- Bem, vim para lhe pagar e agradecer. A senhora me ressuscitou. Quase que encomendava o caixão e o enterro para não dar trabalho a meus semelhantes. Tenho pouca coisa e não tenho mais porque as “mariposas” devorarem uma parte e ainda me deixarem naquele estado de miséria, praticamente, um defunto. Vou, por isso, doar-lhe metade do que tenho metade dos lucros de minha bodega de secos e molhados. Não será muita coisa, mas dá pra quebrar o galho. Na verdade, mais de dois terços lhe pertence e lhe devo.
- Não posso aceitar. Trabalhei dentro de minha profissão. Cumpri somente minha obrigação. Poderia ter errado e ter assistido o seu enterro, sabe disso. Logo, o preço é normal para casos graves.
E Fortunata não tirava os olhos de cima de Gorgonho e com certa ansiedade. Dava muito bem para notar.
- Então fale.
- Estou um tanto transtornada. E sabe por que, porque desejaria fazer um teste, tirar a prova dos nove para certificar-me se realmente estava totalmente curado.
- Ceio que está me entendendo. Sou uma mulher ainda nova e vigorosa graças às minhas garrafadas. Não custa fazermos um teste. Entra pra cá.
- Mas...
- Nada de, mas, nem de acanhamentos. Afinal não tenho o direito de verificar uma cura. Sim, senhor. É certo que tenho, pois do contrário, isto é, se a cura não foi completa, terei que reforçar a garrafada.
E lá se foram para o exame final. Passada a prova, dona Fortunata sentenciou: Estás vendo aí. Terei é que abrandar a garrafada. Caso no próximo exame a coisa ainda esteja assim, iras tomar um bom calmante.
- Sabe de uma coisa, dona Fortunata, nós damos certinho. Bem que poderíamos viver juntos Que acha?
- Topo. Mas vás tomar casca de mulungu.
- Mas isto é para doido.
- Doido ou gente furiosa...

Em 25.3.1986
*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.



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