terça-feira, 14 de abril de 2015

NAZIR


NAZIR*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

Nazir desde meninota passou a perceber a vida que sua mãe levava. A princípio achava que tinha muitos pais, o que não acontecia com as outras meninas. E a mãe tão nova ainda, graciosa e moreninha, divertia-se com cada um que chegava. E certo dia, na escola, teve uma rusga com uma colega, que a chamou de filha de mulher da vida. Contou a Alcina e perguntou-lhe o que era mulher da vida.
- Nada não, sinhá tolinha. Invenção de tua colega. Menino diz cada uma...
- Ou, pensei que era coisa ruim, pois a Lena estava falando com raiva.
- Nem ligue pra isso. Vai trocar de roupa e guarda direitinho tua farda. Mas, olha não brigues mais na escola. Podem chamar de outras coisas.
No entanto, aquela coisa ficou na cabeça de Nazir como o gosto de fruta amarga. Para ela a mãe não havia explicado direito. E volta à escola no dia seguinte disposta a falar com alguém que pudesse tirar-lhe a inquietude, procurou, então, a aluna maior e atirou-lhe a pergunta.
- E por que queres saber disso. Quem te mandou perguntar essa coisa. Deixa pra lá que é melhor. Não vale a pena saber.
- Mas eu quero. Disseram isso com uma colega e ela também não sabe o que é. Chega, diz logo, antes que comece a aula.
- Pois bem. Já que insistes, mulher da vida é gente à toa, mulher sem marido e que vive com um e com outro. Mas esquece isso e vai cuidar de tuas lições.
Nazir, então, começou a entender e foi imaginando outras cosas. A mãe não trabalhava. Cuidava apenas de si e do arranjo da casa. Não lhe falava dinheiro e nem as coisas em casa, inclusive perfumes. Havia de prestar mais atenção, escutar melhor as coisas para entender como era na verdade a sua mãe. E daí por diante, na escola, dedicava-se com todo afinco as suas lições para torna-se uma das melhores alunas. Recatava-se durante os recreios e não esquecia a Lena que fugia sempre de perto dela. Em casa, quando saia uma visita, perguntava invariavelmente à mãe, - quem era aquele?
- Um amigo de tua mãe. Porque tantas perguntas. Vai cuidar dos teus deveres, isso sim.
E Nazir tornava-se quase uma mocinha. Não se enganava mais. Estava visto que a mãe era mesmo o que a Lena dissera. E tinha pena dela. Passou a notar, por sua vez, que alguns dos amigos de sua mãe, olhavam para ela cobiçosamente. Alguns até lhe soltavam gracejos, chamando-a de morena bonita, pedacinho de mulher, gracinha e por vezes davam-lhe tapinhas enxeridas.
A mãe fazia que não via. Alcina era sua mãe e nunca lhe falara do pai. Talvez nem soubesse quem era. E foi daí que passou a sentir-se só e temerosa.
E nada mudava na vida de Alcina. Até pelo contrário, esmerava-se mais em manter boa aparência e a não disfarçar como devia os seus encontros. Dava até a entender que aquele seria o caminho da filha. Vida fácil e divertida.
E a cada dia que se passava ia tomando corpo de moça. Maior era o cerco que lhe faziam. A mãe até achava graça e ajudava a alimentar as esperanças dos gaviões.
Nazir, num ambiente tão propício ao despertar dos desejos, começou a ter medo de si mesma. Até quando resistiria aos olhares atrevidos dos que andavam comprando amores. Passou a ter insônias e a esconder-se. Na verdade já servia até de atrativo para Alcina que ia amadurecendo e popularizando-se. Estava em tempo de cuidar-se e defender-se. O seu destino havia de ser outro. Aquela “filha de mulher da vida” ainda doía-lhe e agora muito mais do que antes. Sorrateiramente arrumou suas coisas e ficou-se à espera de uma oportunidade. A chegada de mais um amigo de Alcina precipitou sua decisão. O sujeito chegou a convidá-la para uma conversazinha lá dentro. – “Vamos sinha tola, vais gostar”. Medo de que. A vida é assim mesmo.
- Hoje não, outro dia, está certo?
- Amanhã, concordas?
- Mas não falte. Estarei a sua espera, mesmo que mamãe fique zangada. Estava doidinha para ficar com alguém que eu gostasse. Mas hoje não pode ser. Tenho que me preparar para não lhe decepcionar. Sabia que havia de chegar minha vez.
- Então, até amanhã, gracinha.
- Chegue cedo.
Alcina estava pra lá com um de seus bons amigos, onde continuava ficar por horas esquecidas. Nazir entrou em seu quarto, apanhou suas roupas e o pouco dinheiro que juntara, abriu a porta de trás e saiu apressadamente. Havia de apanhar o primeiro ônibus que saísse, fosse qual fosse o seu destino. Deixara a porta fechada e a chave atirara fora. Daria a impressão que estava dormindo e teria tempo de sumir. Amanheceria longe daquela sujeira. E o cafajeste que queria explorá-la que se danasse. Como poderia haver tanto canalha neste mundo. Então só porque era filha de uma mulher da vida, iria se entregar a um porco qualquer. Miseráveis enganam-se com Nazir.
- Nazir, já é tarde. Olha a escola. Está passando da hora. Vem tomar teu café, menina.
O silêncio era a resposta. Bateu à porta e nada de Nazir responder. Já sei, deve estar com alguém no quarto e, como é a primeira vez. Está envergonhada. E para dar oportunidade a Nazir, falou alto:
– Olha menina, vou à mercearia. Demorarei nas compras. Toma teu café, deixa a porta no trinco ou a chave no pé de rezedá. Boa sorte. Afinal, resolveu-se. Sabia que não seria tão boba de querer resistir. Vida fácil. Se ganha dinheiro deitada e bem acompanhada. Sabia que, sendo filha de gata, tinha que ser gatinha.
Deu tempo ao tempo e encontrou na volta, a casa aberta e a porta de Nazir trancada. Deveriam estar dormindo ainda depois da refrega. O café estava na mesa, intacto. Mais tarde percebeu, ou antes, desconfiou de que a coisa não era como pensava. Bateu novamente à porta. Nem sinal de Nazir. Chamou gente, forçaram a porta e o quarto vazio causou-lhe o primeiro e grande impacto de sua vida. Deveria a tonta, ter fugido com algum dos seus amigos? Se assim fora, ainda bem, apesar de poder ter sido com algum de seus melhores fregueses. Chorava para saber qual havia sido o pilantra... O espertalhão. Menina nova, bonita, com um corpo daquele, era luxo. Bandido, cachorrão. Verificou depois que os seus amigos estavam todos. E da cidade, do seu bairro não faltava ninguém. Não havia mais dúvidas a menina fugira envergonhada com o seu procedimento. E pela primeira vez Alcina chorou de verdade, arrependida do que desejava que a filha fosse: mulher da vida livre. Como era ela. Os homens, daí por diante passaram a ter novo sentido para Alcina. Queria a filha pertinho dela, mas Nazir estava bem distante, não propriamente da mãe, mas da vida que ela, levava. Foram-se os meses e nenhuma notícia. Quando se enjoasse do homem que a levou certamente voltaria.
E foi uma esperança vã. Nazir, empregada em casa de família, freqüentava à noite a escola e procurava esquecer o ambiente onde vivera constrangida, assistindo aquela mudança freqüente de maridos. E aquela gente que convivia com a mãe, numa intimidade suja. Havia de preparar-se para tirá-la daquela vida deprimente. Era possível até que desejasse sair dela, mas sem ter condição. Medo que lhe faltasse comida, quem sabe. Como se iniciara na vida livre, era para Nazir um enigma. Talvez por iniciativa própria e sede precoce de amor ou por ter sido enganada e abandonada. De qualquer forma, com mais tempo diria onde estava e quais eram suas verdadeiras intenções. Gostaria de vê-la e tinha saudades, mas era cedo ainda.
E foi indo assim, até que um dia não resistira mais. Fez-lhe uma carta. Talvez pensasse que havia se perdido com algum malandro, mas se assim era, enganava-se. Continuava a mesma mocinha que saíra de casa. Queria-lhe muito bem, mas percebia que poderia estar causando-lhe tropeços. Que não tivesse cuidado com ela. Estava amparada em casa de boa família, onde nada lhe faltava. Arranjaria um emprego para ela se assim o desejasse. Parecia-lhe que já era tempo de mudar de vida. Talvez já estivesse cansada e enjoada daquelas visitas. Não adiantava esconder-lhe mais nada. Se fora feliz ou infeliz até então não sabia. Para ela, Nazir, considera-a infeliz. Que lhe ouvisse alguma coisa. Mas nunca chegou uma resposta.
Alcina havia se sentido culpada e saia à procura da filha. Não seria mais a Alcina, mulher de vida livre. Chegasse aonde chegasse. Havia caído na vida como quase todas as outras, iludida.
Era ainda uma menina inexperiente e fora facilmente seduzida. No começo ansiava por ser procurada. Mudar de homem era como mudar de blusa ou usar um lenço novo perfumado. Depois já era por necessidade. Habituara-se e deixou-se vencer. Tinha medo da vida lá fora, onde uma mulher de vida livre era uma espécie de doença contagiosa. E, agora, a fuga da filha dera-lhe coragem. O último homem que recebera fora o mesmo que desejara a filha e teve o cinismo de confessar. Estava tudo acertado para o dia seguinte. E Alcina teve repugnância do cafajeste. Nazir havia feito muito bem. Mas tarde seria um trapo igual a ela. Botou-o para fora e desapareceu também. Apalpou-se e sentira nojo de seu próprio corpo, que servira de despejo da lixeira humana. Tomara um banho com sabão da terra e um laxativo, para descarregar as impurezas daquela profissão miserável. Sentia-se mais aliviada. Mas, onde estaria Nazir e como estaria. Talvez em algum bordel onde se refugiavam as infelizes. Voltar, não voltaria mais. E preferia nem encontrar Nazir se estivesse perdida. De cidade em cidade, descrevia aparência da filha na esperança de encontrá-la. E depois de muito andar e sonhar resolveu parar um pouco na cidadezinha de Alecrim, nos brejos paraibanos. Mas precisava ter como manter-se. Pensou, depois de várias tentativas por um emprego, em valer-se da única coisa que sabia fazer sem ter que pedir. Bastaria insinuar-se e responder à cobiça dos malandros. No entanto, faria mais algumas tentativas. E à noite andou de casa em casa se oferecendo. Lembrou-se que Nazir gostava de estudos e ali estava uma escola noturna. Sentou-se ao lado e esperou a saída dos alunos. E nada de Nazir. A professora saiu por último. Aventurou-se a perguntar.
- Nazir. Nazir... Tenho uma vaga lembrança de que uma mocinha morena procurou matricular-se e se não me engano, o nome era Nazir. Não havia mais vaga. Poderá ter se matriculado noutra escola. É ali na rua ao lado esquerdo. Já está fechada.
Nazir pela manhã do dia seguinte saíra de casa para comprar o pão. De volta, em pé, na esquina, estava uma criatura retrato de sua mãe. No entanto, nem era possível imaginar que fosse ela. Mas aquele físico era idêntico e resolvera aproximar-se.
Pensativa, como quem olhava para o infinito, Alcina não a percebera. Nazir não se conteve e gritou-lhe bem pertinho dela: - mamãe Alcina!!!
- És tu Nazir, minha filha? Que felicidade. E confundiram-se, no mesmo pranto, num abraço tão doce, tão terno, tão quente que até se esqueciam de olharem-se. Só depois, uma a frente da outra, passaram momentos de perplexidade sem saberem o que dizer.
- Mãe Alcina...
- Nazir...
- Como veio para aqui, mãe, que não respondeu minha carta e preferiu vir aqui?
- Não, não recebi tua carta. Procuro-te desde a semana de tua fuga. Desses arredores todos, só faltava mesmo vir aqui a Alecrim. Com quem saístes. Quem te carregou. Onde morou?
- Quem me carregou foi o destino. Saí sozinha com ele. Estava sendo tentada à perdição. Um daqueles miseráveis que iam a nossa casa procurava seduzir-me. Para enganá-lo prometi tudo para o dia seguinte, tempo para desaparecer. Trabalho em casa de uma família e sou cuidada como uma filha. Vamos até lá. E o que tens feito de tua vida?
- Ah! Larguei-a de uma vez. Cansei dos amigos, e quando te perdi saí para encontrar-te e salvar-te. Terminou para sempre minha desgraça. Cheguei a pensar algumas vezes que o teu caminho deveria ser também o meu. Vida fácil. Nem posso saber que espécie de demônio me arrastava para essas veredas da vida. Deveria ser naquele tempo uma doente mental. Era como os viciados da embriaguez ou de outro domínio maldito.  Felizmente não seguistes a minha escola. E era justamente isto que eu mais temia encontrar-te no lodo de alguma pensão de mulheres, na ilusão de que ali que se sente prazer e felicidade. Ó que ilusão terrível! Ali não há amor. Há só fingimento. Cada mulher é um depósito de lixo e nada mais. Só se tem amor ao dinheiro que mata a fome das noites indormidas e vazias. A felicidade é um lar, onde dois convivem e se amam.
- Bem, vamos esquecer tudo isto. Estou estudando, não tenho namorado e minha única preocupação era tirar-te daquela vida de humilhação.
- Há! Minha Nazir. Humilhação, sim. Recebe-se gente que nos causa nojo e ódio. Sujeitos antipáticos e sujos. Gente que nem paga e ainda ameaça. Como aquela vida muitas e muitas vezes nos embrulha o estômago. O que se faz por dinheiro é assim. E parece que aqueles que mais a gente detesta, são os que mais nos freqüentam. E o pior é ter que parecer alegre e amorosa. Sim, minha filha, até isso. Fingir e aparentar que se deseja e se ama. As vezes que pensava em ver-te na vida fácil tem sido minha maior condenação. Mas já te disse, só poderia ser por arte do diabo, sujo. Acordei quando me vi sem tua presença e caíram-me lágrimas que ainda hoje me queimam. Corri à tua procura para poupar-te. Casarás um dia, mas será por amor. E procura separar paixão de amor. A paixão é sempre o caminho da perdição ou de nossa condenação. A paixão é simplesmente uma atração material, carnal. E comumente logo nos decepciona e nos martiriza. Fui a única transviada de minha família. Apaixonei-me por um cafajeste que minha família repelia. Cai e tive que fugir e perder-me para sempre. Ainda hoje tenho vergonha de revê-la. E quanto isto me dói. E doerá sempre.
- Sim, sei. Mas um dia iremos ao seu encontro. O tempo ajuda a esquecer. Talvez tenha os teus parentes um desejo imenso de te ver. Saber como estão. Iremos. Está certo?
- Seria uma felicidade tão grande que nem quero pensar. E quem sabe se meus pais ainda existem. Deus queira que sim, para não ser ainda mais castigada.
- E por que não abandonou aquela vida antes, não procurou um trabalho decente?
- Tornara-me uma criatura vencida, medrosa. Não tinha mais coragem para nada. É difícil explicar como o vício deprime tanto a gente. Pensa-se em sair, mas se vai se permanece, sobretudo quando se tem uma profissão fácil que só nos custa o sacrifício momentâneo de aceitar. Parece que um demônio ardiloso tomou conta da gente. É como um abismo que nos atrai.
Foste tu quem me salvou. Mas agora que estás novamente ao meu lado, tenho forças para resistir. Verás.
- Vamos, vamos. Tua vida passada morreu aqui. Não se fala mais nela e procures esquecê-la e amaldiçoá-la. Por um triz não caí também. Várias vezes senti certa atração. Mas meu espírito venceu certas coisas que o corpo desejava.
Quando via sumires acompanhada com um e com outro, sentia duas coisas, ora atração, ora repugnância. E quando fui assediada, percebi que o miserável pretendia fazer de mim outra Alcina. Para iludir, prometi. Era tempo marcado para fugir. Um sujeito que não me agradava e que além de tudo, era teu amigo. Tive vontade de cuspi-lhe na cara dele e dos outros que tentavam a mesma coisa.
Aquela é a casa onde vivo desde então. Casa de gente fina, gente boa e amiga. Tentarei arranjar-te trabalho. E se permitirem ficara comigo, no mesmo quarto. Quem sabe. Mesmo só pela comida e pousada. Talvez lavando roupa e passando à ferro. É pesado, mas será o caminho da recuperação. Está certo.
- É o que desejo e procuro.
- Pois é. Acabou-se a vida fácil.
- Está aqui é mamãe Alcina. Sempre teve uma vida de sacrifícios. Veio me ver e tem vontade de ficar comigo. Irei arranjar-lhe um trabalho.
- Muito bem. Deve estar muito contente em rever, esta jóia de moça que é sua filha, dizia dona Gertrudes, por ora ou até quando puder irá ficando aqui. Dormirá com Nazir. E por que não apareceu antes?
- Ah! Não tinha meios e sabia que Nazir estava bem amparada. E nem sei como agradecer-lhe. Nazir sempre foi uma menina obediente e boa. Aliás, uma mãe sempre diz isto dos filhos, mas Nazir é um caso especial, a não ser que tenha mudado.
- De forma nenhuma. São as mãos e os pés desta casa. Creia que depois que nos apareceu quase me tornei uma ociosa. Não deixa nada para a dona da casa fazer. Estou ficando uma preguiçosa, já pensou. Meu marido, o Claudio a adora. Logo não temos filho e Nazir chegou para substituí-los. Nunca uma coisa deu tão certa. E agora chegou a mãe para aliviar o trabalho. Assim terá mais tempo para estudar e até ajudar na loja, nos dias de feira, nas horas de aperto. Aliás, já tem feito isso. Uma excelente vendedora. Vou acertar com o Claudio se ele concordar e a senhora quiser ficará no arranjo da casa e Nazir nos estudos e na loja. Mas depende somente da senhora.
- Ora dona Gertrudes, isto até me parece um sonho, o melhor sonho de minha vida.
E Alcina ficou. Esmerava-se em arranjo da casa, na lavagem de roupa e no passar ferro sem deixar uma ruga. Nos punhos e colarinhos. Nazir, depois de mostrar como fazer ao gosto de dona Gertrudes, passou para a loja, sem esquecer os seus livros. E para melhor servir, fez o curso de contabilidade. Já não era mais necessário um contador. Tudo certinho, correto, caprichado.
Alcina, no entanto, tinha uma preocupação e um ressentimento. Sua vida anterior assustara a filha em relação a amores. Não desejava que ela virasse titia. Mas também não dizia nada. Um dia, no seu tempo certo, despertaria. O seu pesar era ter sido a causadora, com sua vida de mulher livre. Matara os sonhos da filha. E foi indo até que certo dia Nazir chegou à casa toda risonha, com uma alegria fora de seu normal. Dona Alcina pensou: - tem coelho na horta. E limitava-se a observar a menina. Notava que se esmerava mais no penteado, no vestir e até no jeito de andar. Não tinha mais dúvida. Aquela faceirice toda era coisa ou travessura do amor. O bichinho estava bulindo com a menina. Nazir solfejava canções alegres sem se aperceber de sua própria alegria. O receio que Alcina tinha era de que fosse algum malandro farejando a filha. Esquecia-se de que Nazir tinha uma formação moral sólida e vigilante. Alcina esperava.
- Mãe, vem cá, mãe. Quero te dizer uma coisa e nem sei como começar. É tão difícil.
- Não deves ter acanhamento diante de tua mãe. Não sou mais aquela criatura sem vontade, sem noção da realidade, aquela que misturava o certo e o errado e tomava, por desgraça, sempre os piores caminhos. Confia em tua mãe, a quem ensinastes a viver.
- Pois é mãe. Tenho um namorado. Sinto-me com se me tivessem aberto uma porta para a casa de dona felicidade.
- E quem será esse felizardo.
- O José, empregado da loja há mais de oito anos. Pessoa de toda confiança do senhor Claudio.
- Mas será mesmo quem tu pensas menina. Não te vás pela aparência. Não quero que tenhas uma desilusão. Depois do casamento é que vem a realidade.
- Sei, mas, o comportamento do José é respeitoso. Tem sua casinha e já não é uma criança. Está se preparando para o casamento, fazendo o arranjo da casa. Tenho certeza de que me ama. E a prova disso é que não me toca, nem me dirigi palavras convidativas. Conversamos apenas. Se fosse mal intencionado procuraria avançar o sinal.
- Não te esqueças que és uma moça pobre. E gostam de abusar dessas criaturas assim.
- Bem, se não der certo, voltarei ao que era. Não tenho medo do mundo nem da vida.
- Vou rezar por ti e pelo José. E aconselho-te uma coisa. Não abandones o teu trabalho. De mim não sairei de onde estou. Basta poder ver-te sempre e alegre.
- Já falastes com o senhor Claudino e dona Gertrudes. Eles são teus pais de adoção.
- Ainda não, mas falarei hoje à noite.
- Caso digam não, obedeças cegamente.
Aquela noite foi decisiva para Nazir.
- E então, Nazir?
- Foram de pleno acordo, mas sob uma condição: não deixar a loja. Vão me oferecer todo o enxoval e o casamento será aqui em casa. Adiantaram que o José já estava em tempo de se casar, para poder cuidar dos filhos. E será que irei ter filhos?
- É provável. Depende do amor dos dois. Mas bastará um casalzinho. Como desejei ter o meu lar, mesmo modesto, com uma mesinha, quatro cadeiras e onde guardar minhas coisas. Não tive essa sorte. Minha maior felicidade, agora, é saber que irás ter um, minha Nazir. Sim, uma casinha tua, abençoada por Deus. Um lar, um lar, como sonhei tanto com essa felicidade. Mas não há de ser nada. Hoje sou feliz pela convivência e pelo ambiente em que estou. Já não deixa de ser um grande alivio para quem pertencia a todos e não tinha nada. Quero que me deixes ajudar no arranjo de tua casa. Sentir pelo menos o prazer, sentir a doçura de uma casa de família, o lar de minha filha, a quem quase perdi. Não te peço perdão porque sei que já me perdoastes. Hoje, Nazir, sou uma mulher com vontade própria, sei o que devo fazer, uma Alcina que não se vende não se dá e tem a paz de espírito que lhe faltava. Aquela outra se apagou, não mais existe. Caminhemos juntas pelos novos caminhos que tu abriste.

Em, 24.3.1986.
*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”. No prelo.







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