ENJEITADA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
Maria das Graças já estava ficando
uma mocinha. Até então, não se preocupava muito com sua origem. Só o que sabia
ao certo é que Dona Conceição não era sua mãe legítima. Ela mesma o havia dito.
Também não era sua parenta. E por que tinha tanto cuidado e tanto zelo com ela,
que não lhe deixava faltar às mínimas coisas. Aquela preocupação em desvendar o
segredo de sua presença ali se tornava cada vez mais insistente. Como poderia desvendar
o mistério que criava raízes dentro dela. Aquele cabelo aloirado, aquela pele
fina e aqueles olhos esverdeados, mostravam que não poderia ser da família de
dona Conceição. Mas, na verdade e para todos os efeitos, sua mãe era dona
Conceição. O mais era por simples curiosidade, pois ninguém a tiraria de onde
estava.
- Diga-me uma coisa, mamãe. Como
cheguei aqui. Quem me entregou à senhora?
- Não sei de nada, além de haveres
amanhecido numa cestazinha toda forrada de lençóis de flanela ali na porta de
entrada no terraço. Não vinha um bilhete explicando nem pedindo qualquer coisa.
E até hoje, minha querida, foi o meu melhor achado, um presente mandado do céu.
Pena é que não posso dar-te o conforto que desejaria dar. Agora aproveito para
te perguntar uma coisa que sempre me preocupa. Caso aparecesse tua mãe, me
deixarias?
- Nunca faria isto. Se minha mãe
legítima aparecesse seria somente para me ver. Ela que me enjeitou é porque não
gostava da filha.
Ah! Meu bem, talvez não fosse por
isto. São muito poucas as mães que não amam os filhos. E quem sabe se ela não
te vê todos os dias, sem se saber quem é. Tudo é possível.
- E então por que me abandonaria
assim, sem dizer nada, sem deixar um roteiro.
- És muito nova e possivelmente será
difícil compreenderes. Muitas moças, inadvertidamente, por amor ou paixão, ou
ainda por outras causas, cometem o erro de se doarem a alguém. E dessa doação
vem um filho. A sociedade não perdoaria. Passaria a ser uma transviada ou coisa
pior e que jamais se soergueria. Desesperadas, procuram ocultar de qualquer
forma o fruto temporão de seus amores. Mas ninguém avalia quanto sofrem e
quanto se arrepende. Mas já é tarde de mais. Por isto não devemos prejulgar.
- Mas eu penso que erro não
justifica outro e ainda maior. Pegar um filho e atira-lo às escondidas às
portas alheias é um crime que uma boa mãe não comete. E a minha seja lá quem
for e porque tenha sido, abandonou-me sem a coragem de deixar pelo menos o nome
ou o endereço. Que o ocultasse o seu erro de outra forma. Por isto, não tenho
interesse sequer de conhecê-la.
- Já te falei que são os rigores das
convenções sociais.
- É, então, por que não pensou antes
nas exigências sociais. E agora entendo que a boa sorte foi minha de estar
sendo criada pela senhora. Como minha mãe, está visto que não poderia ser uma
menina tão feliz. Se tivesse temperamento e qualidades para ser uma boa mãe, é obvio
que não me teria enjeitado. O melhor mesmo é não conhecê-la. Além disso, para
que duas mães, tendo como tenho a melhor deste mundo. E, por favor, se vier me
procurar algum dia, enquanto eu for menor de idade, não me entregue. Nem quero
saber os motivos de haver me enjeitado e, quando necessitava de me amamentar,
não teve coragem de dizer que tinha uma filha, só porque era uma mulher
solteira, porque haviam faltado umas gotas de água benta para legalizar o seu
ato. É melhor, mãe, não tocarmos mais no assunto, mesmo porque não careço de
outra mãe. Sei que tenho lhe dado muito trabalho e muitas preocupações, mas,
espere por mim no futuro. Espero saber ser uma filha quando uma mãe precisa de
alguém para dar-lhe apoio e o conforto que merece. Deus há de nos ajudar.
Maria das Graças, concluiu o curso
de humanidades, matriculou-se na escola de odontologia. Queria uma profissão
liberal, da qual obtivesse o que necessitava para manter-se com dona Conceição.
Percebia que ela já estava envelhecendo e ficando cansada de tanto lutar
sozinha. É verdade que possuía o seu patrimônio, em casas de alugueres, mas
tinha que administrá-lo para conservá-lo. Mais tarde já não seria assim. A
velhice pede repouso e tranqüilidade. E ela havia de da-los. Não media esforços
nos estudos e cedo se tornou auxiliar e assistente num consultório de dentista.
Sabia muito bem que a prática valia tanto ou mais do que a teoria que aprendia.
As duas são inseparáveis. Só o que a preocupava, era como adquirir o seu
consultório, embora dos mais simples. Até que podia, imaginou, associa-se a outro
profissional já instalado. No entanto, dona Conceição andava atenta ao
problema. A dedicação de Maria das Graças justificava qualquer sacrifício de
sua parte. É, então, amealhava tostão por tostão para dar-lhe de presente um
consultório. Só que seria um segredo e uma surpresa.
Maria das Graças queimava as
pestanas e suava no consultório. Obturações, extrações e tratamentos especiais
já eram de seu pleno conhecimento, quando estava preste a concluir o curso. O
pouco que recebia, ia para o fundo da gaveta. Privava-se até de pequenas coisas
que ambicionava. Não lhe faltava o essencial, e já era muito. Elegeram-na oradora
da turma. Sim, tinha facilidade de falar. Um desembaraço extraordinário em se
comunicar.
O
diretor da escola até já pensava em convidá-la para professor-adjunto,
especialmente de gabinete. Tudo mostrava que seria uma excelente auxiliar. E
até aquela dentição perfeita que lhe ornava a boca pequena e corada, seria um
exemplo da importância de uma boca bem cuidada. E como possuía dentes
perfeitos, podia sorrir com naturalidade e beleza. Sua presença em qualquer
ambiente chamava a atenção. Mais pela simpatia do que pelas linhas do rosto e a
forma do corpo, o que não que dizer que não fossem atraentes. Muitos rapazes
suspiravam por Maria das Graças. Mas ela não tinha ainda tempo de vê-los. Antes
de tudo, sua santa mãe e sua profissão por concluir. Depois, talvez tivesse
tempo pra tudo.
Dona Conceição registrara Maria das
Graças como filha. Não tinha para quem deixar os seus bens. O vigário da
freguesia já havia até sugerido doa-los ao patrimônio da Igreja que reverteria
os rendimentos em obras pias.
- Não seu vigário. Impossível. Tenho
uma filha a quem dá-los. E depois a igreja é rica e nem sabe o que fazer de
suas riquezas. Dizem que o Vaticano, só de obras de arte e dinheiro, tem além
do imaginável. E também não dá nada a ninguém, pois nunca se ouviu dizer que um
padre ou um papa desse uma esmola. Sou católica, tenho muito pouco, mas crio e
educo uma filha adotiva. Padre nem casar se casam para não ter responsabilidade
de família. Desculpe-me lhe ser tão franca, mas tinha que ser. Não se vê um
padre com calos nas mãos, nem dor de cabeça ou dor nas canelas. É tudo sadio,
bem alimentado, sem cultivar um pezinho de cenoura para criar um coelho. Agora,
pedir é só quem sabe.
- Bem, pensei que a senhora teria
que desaparecer um dia e não ter para quem deixar os seus bens e a igreja se encarregariam
disso.
- Obrigado pela sua santa
preocupação. Tenho minha Maria das Graças que cuidará de mim e dos meus bens.
Ela está a concluir o curso de cirurgião dentista e é uma excelente moça. Não
sabe quem são os seus pais legítimos e que às vezes minha desconfiança vai mais
longe do que eu queria.
- Como assim?
- Quem sabe se não tem a
infelicidade de ser filha de algum reverendo. É tão misteriosa sua origem que
dar o que pensar.
- Nossa Senhora. Não cometa um
sacrilégio, dona Conceição. A senhora, uma mulher tão aproximada da Igreja com
essas idéias tão absurdas.
- O senhor sabe que a cidade inteira
lhe conhece...
- Maldade dessa gente desocupada,
dona Conceição. Só maldade.
- Pelo sim e pelo não, resguardo-me.
E até logo padre, Suvela.
- Como?
- Sim senhor, padre Suvela, o
apelido que lhe botaram.
- Mas não me pareço com Suvela.
- Bem, não é por isso não. É por
outra coisa. Entenda como quiser.
Maria das Graças formou-se e recebeu
como presente o seu consultório.
- Mas, mãe, porque tamanho
sacrifício. Não merecia tanto. Compraria quando pudesse. Já tenho um
dinheirinho guardado para isto. E vou entregar-lhe. Não é muito, mas ajuda na
compra.
- Guarde-o para tuas despesas. Sabes
que não preciso de mais do que tenho. Minha ambição é apenas ver-te feliz,
Maria das Graças. Tu não poderás nem hoje, nem amanhã, avaliar o bem que me
fizeram, colocando-te em minha porta. Daí para cá se acabou minha solidão. Tua
presença foi como um foco luminoso que se acendeu dentro desta casa e de minha
vida. Não sabes o que é dormir e acordar sozinha. E espero que não te aconteça.
Minha companhia era unicamente o silêncio, essa coisa fria e muda que fica espiando
para a gente a noite toda com aqueles olhos de mágoa e tristeza. Quando se vive
só é como se estivesse num mundo sem cores e sem horizontes. A gente se afunda
em meditação e não enxerga outra coisa se não sombras e uma espécie de caminho
atravessando um interminável deserto. Não me casei e nem tive amores. Fui uma
moça sem sorte. Sempre esperava por alguém que nunca chegava e nem chegou. E o
tempo nunca se preocupou com isto. Ia passando indiferente a tudo como se eu
não fosse uma pessoa igual às outras, também capaz de amar. Tornei-me uma
solteirona marcada por profundos desenganos. Procurei socorrer-me beijando os
altares, valendo-me de Santo Antonio e não fiz outra coisa além de perder o meu
tempo. E o tempo nunca se preocupou com a minha desdita, até que envelheci para
o amor. Olha Maria das Graças, o tempo não espera por ninguém. Atrasa-se, perde-se
o transporte.
Maria das Graças instalou
consultório. De mãos leves e suaves, não tardou a ter uma boa clientela. Uma
coisa, entretanto, chamava-lhe atenção. Uma cliente, ao seu julgamento,
fantasiava dores de dente e era a mais assídua em seu consultório. E observava
que, por mais que procurasse disfarçar, não tirava os olhos dela. Além disso,
demorava-se o quanto podia. Trazia-lhe presentes e não perdoava uma rosa para o
jarro do gabinete. Havia, sem dúvida, um mistério naquelas freqüentes visitas,
já de bastante intimidade. E aqueles traços fisionômicos parecidos com os dela
despertavam-lhe ainda maior suspeita.
Conversou a respeito com dona
Conceição. E dona Conceição assustou-se. Intimamente tinha quase certeza de que
só poderia ser a mãe legítima de Maria das Graças. Desejava por isto, vê-la,
conhece-la. Foi ao consultório naquele dia não falhava. Dona Conceição esperou.
Teve um desapontamento. A cliente assídua era não nem mais nem menos do que uma
antiga conhecida e de quem se havia separado havia tempo. Não poderia ser outra
a mãe de Maria das graças. Também não se casara e vivia na mesma solidão que
ela já havia vivido. Teve pena da moça. Pobre coitada. À saída do consultório,
acompanhou-a. Recordaram alguma coisa do passado e chegaram onde dona Conceição
desejava. Falar sobre Maria das Graças. Foi então que viu correrem duas
lágrimas solitárias pelo rosto triste de Ana Maria.
- Confessa-me uma coisa, Ana Maria.
Por que vais com tanta freqüência ao consultório de Maria das graças. Há ao que
parecesse muita afinidade entre as duas.
- Sei que a senhora é capaz de
guardar um grande segredo. Maria das Graças é minha filha. Nunca deixei de
vê-la ao longe. Deixei-a em sua casa, pela confiança que tinha na senhora. Mas
pode ficar certa de uma coisa, não quero tomar para mim e tenho medo que ela
venha, a saber, e não me aceite. Só Deus sabe como a deixei em sua porta. Chorei
dias e mais dias como se estivesse me desfazendo em pranto. Estive
ausente daqui durante a gravidez aparente. Voltei quando ela já estava em meus
braços. Medo da sociedade, covardia, fraqueza minha. Tenho amargurado todo esse
tempo. Contentava-me ir sempre vê-la, mas doía-me tanto.
- Afinal, criatura, pode me dizer
quem é o pai de Maria das graças?
- Nunca, tão monstruoso é o segredo.
Aumentaria minha vergonha e minha desgraça.
- Mas nem a mim que sou a segunda
mãe. A coisa é tão feia assim que nem a mim podes revelar.
- Mesmo se tivesse a coragem de
contar-lhe, não iria acreditar, pois é mesmo inacreditável. Ninguém pode ter
caído tanto quanto eu.
- Não deve mais haver segredo entre
nós duas.
Ana Maria ficou como se estivesse
parada no tempo e no espaço. Inteiramente consumida. E agora que estava casada,
com dois filhos, temia muito mais o escândalo. Será que poderia confiar tanto em dona Conceição ?
Seria, talvez, arriscar demais.
- Vê bem Ana Maria. Se for capaz de
guardar um segredo, também o serei. Amo Maria das Graças e eu nada poderia
contribuir para torná-la infeliz.
- Mas é tão humilhante, dona
Conceição.
- Quem foi afinal. Desembucha de uma
vez.
- Pois bem, mas juras que ficará para
sempre entre nós. Foi o padre. Iludiu-me no confessionário. Levou tempo, mas
venceu-me. Parece até que me hipnotizou. E um dia saí do confessionário para
perder-me. Convenceu-me e orientou-me com se estivesse me abrindo às portas do
Paraíso. Eu já andava fora de mim. Iria sentir um prazer maior do que o prazer
do melhor sonho da minha vida. Era o que toda mulher em minha idade deveria
buscar para sentir-se feliz. Fui com ele como se fosse indo nas asas de um
anjinho do Paraíso. E tudo se passou tão subitamente e tão estranhamente que me
pareceu que havia cumprido o mais belo ato de minha vida. E voltei várias vezes
para acabar de perder-me. Quando me senti mãe, largou-me como quem atira um
punhado de cinzas ao vento. E ainda ameaçou-me. Diante de qualquer revelação
diria que eu o procurei e conquistei, fazendo-o cometer um sacrilégio. Nunca
mais fui a uma missa, para não vê-lo. E enquanto eu sofria, corria atrás de
outras inocentes.
- Já cismava disso. E foi melhor
teres ficado em
silêncio. Ninguém deixaria de acreditar num sacerdote para
acreditar em ti, em mim ou em qualquer outra. Mas deixa que ele vai nos pagar.
Sei como fazê-lo. Apenas guardes silêncio, silêncio total.
E com menos de dois meses, padre
Suvela estava no hospital. Havia-lhe-lhe cortado de um golpe suas
“preciosidades”. E com dez dias os sinos da igreja anunciavam defunto.
- Quem terá morrido mamãe?
- Uma pena, minha querida. Foi o
padre Frazão. Um santo homem. A estas horas já está gozando as auras do
Paraíso. Santo, bom e honesto...
*O
conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”. No prelo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário