terça-feira, 14 de abril de 2015

ENJEITADA




ENJEITADA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


Maria das Graças já estava ficando uma mocinha. Até então, não se preocupava muito com sua origem. Só o que sabia ao certo é que Dona Conceição não era sua mãe legítima. Ela mesma o havia dito. Também não era sua parenta. E por que tinha tanto cuidado e tanto zelo com ela, que não lhe deixava faltar às mínimas coisas. Aquela preocupação em desvendar o segredo de sua presença ali se tornava cada vez mais insistente. Como poderia desvendar o mistério que criava raízes dentro dela. Aquele cabelo aloirado, aquela pele fina e aqueles olhos esverdeados, mostravam que não poderia ser da família de dona Conceição. Mas, na verdade e para todos os efeitos, sua mãe era dona Conceição. O mais era por simples curiosidade, pois ninguém a tiraria de onde estava.
            - Diga-me uma coisa, mamãe. Como cheguei aqui. Quem me entregou à senhora?
            - Não sei de nada, além de haveres amanhecido numa cestazinha toda forrada de lençóis de flanela ali na porta de entrada no terraço. Não vinha um bilhete explicando nem pedindo qualquer coisa. E até hoje, minha querida, foi o meu melhor achado, um presente mandado do céu. Pena é que não posso dar-te o conforto que desejaria dar. Agora aproveito para te perguntar uma coisa que sempre me preocupa. Caso aparecesse tua mãe, me deixarias?
            - Nunca faria isto. Se minha mãe legítima aparecesse seria somente para me ver. Ela que me enjeitou é porque não gostava da filha.
            Ah! Meu bem, talvez não fosse por isto. São muito poucas as mães que não amam os filhos. E quem sabe se ela não te vê todos os dias, sem se saber quem é. Tudo é possível.
            - E então por que me abandonaria assim, sem dizer nada, sem deixar um roteiro.
            - És muito nova e possivelmente será difícil compreenderes. Muitas moças, inadvertidamente, por amor ou paixão, ou ainda por outras causas, cometem o erro de se doarem a alguém. E dessa doação vem um filho. A sociedade não perdoaria. Passaria a ser uma transviada ou coisa pior e que jamais se soergueria. Desesperadas, procuram ocultar de qualquer forma o fruto temporão de seus amores. Mas ninguém avalia quanto sofrem e quanto se arrepende. Mas já é tarde de mais. Por isto não devemos prejulgar.
            - Mas eu penso que erro não justifica outro e ainda maior. Pegar um filho e atira-lo às escondidas às portas alheias é um crime que uma boa mãe não comete. E a minha seja lá quem for e porque tenha sido, abandonou-me sem a coragem de deixar pelo menos o nome ou o endereço. Que o ocultasse o seu erro de outra forma. Por isto, não tenho interesse sequer de conhecê-la.
            - Já te falei que são os rigores das convenções sociais.
            - É, então, por que não pensou antes nas exigências sociais. E agora entendo que a boa sorte foi minha de estar sendo criada pela senhora. Como minha mãe, está visto que não poderia ser uma menina tão feliz. Se tivesse temperamento e qualidades para ser uma boa mãe, é obvio que não me teria enjeitado. O melhor mesmo é não conhecê-la. Além disso, para que duas mães, tendo como tenho a melhor deste mundo. E, por favor, se vier me procurar algum dia, enquanto eu for menor de idade, não me entregue. Nem quero saber os motivos de haver me enjeitado e, quando necessitava de me amamentar, não teve coragem de dizer que tinha uma filha, só porque era uma mulher solteira, porque haviam faltado umas gotas de água benta para legalizar o seu ato. É melhor, mãe, não tocarmos mais no assunto, mesmo porque não careço de outra mãe. Sei que tenho lhe dado muito trabalho e muitas preocupações, mas, espere por mim no futuro. Espero saber ser uma filha quando uma mãe precisa de alguém para dar-lhe apoio e o conforto que merece. Deus há de nos ajudar.
            Maria das Graças, concluiu o curso de humanidades, matriculou-se na escola de odontologia. Queria uma profissão liberal, da qual obtivesse o que necessitava para manter-se com dona Conceição. Percebia que ela já estava envelhecendo e ficando cansada de tanto lutar sozinha. É verdade que possuía o seu patrimônio, em casas de alugueres, mas tinha que administrá-lo para conservá-lo. Mais tarde já não seria assim. A velhice pede repouso e tranqüilidade. E ela havia de da-los. Não media esforços nos estudos e cedo se tornou auxiliar e assistente num consultório de dentista. Sabia muito bem que a prática valia tanto ou mais do que a teoria que aprendia. As duas são inseparáveis. Só o que a preocupava, era como adquirir o seu consultório, embora dos mais simples. Até que podia, imaginou, associa-se a outro profissional já instalado. No entanto, dona Conceição andava atenta ao problema. A dedicação de Maria das Graças justificava qualquer sacrifício de sua parte. É, então, amealhava tostão por tostão para dar-lhe de presente um consultório. Só que seria um segredo e uma surpresa.
Maria das Graças queimava as pestanas e suava no consultório. Obturações, extrações e tratamentos especiais já eram de seu pleno conhecimento, quando estava preste a concluir o curso. O pouco que recebia, ia para o fundo da gaveta. Privava-se até de pequenas coisas que ambicionava. Não lhe faltava o essencial, e já era muito. Elegeram-na oradora da turma. Sim, tinha facilidade de falar. Um desembaraço extraordinário em se comunicar.
            O diretor da escola até já pensava em convidá-la para professor-adjunto, especialmente de gabinete. Tudo mostrava que seria uma excelente auxiliar. E até aquela dentição perfeita que lhe ornava a boca pequena e corada, seria um exemplo da importância de uma boca bem cuidada. E como possuía dentes perfeitos, podia sorrir com naturalidade e beleza. Sua presença em qualquer ambiente chamava a atenção. Mais pela simpatia do que pelas linhas do rosto e a forma do corpo, o que não que dizer que não fossem atraentes. Muitos rapazes suspiravam por Maria das Graças. Mas ela não tinha ainda tempo de vê-los. Antes de tudo, sua santa mãe e sua profissão por concluir. Depois, talvez tivesse tempo pra tudo.
Dona Conceição registrara Maria das Graças como filha. Não tinha para quem deixar os seus bens. O vigário da freguesia já havia até sugerido doa-los ao patrimônio da Igreja que reverteria os rendimentos em obras pias.
- Não seu vigário. Impossível. Tenho uma filha a quem dá-los. E depois a igreja é rica e nem sabe o que fazer de suas riquezas. Dizem que o Vaticano, só de obras de arte e dinheiro, tem além do imaginável. E também não dá nada a ninguém, pois nunca se ouviu dizer que um padre ou um papa desse uma esmola. Sou católica, tenho muito pouco, mas crio e educo uma filha adotiva. Padre nem casar se casam para não ter responsabilidade de família. Desculpe-me lhe ser tão franca, mas tinha que ser. Não se vê um padre com calos nas mãos, nem dor de cabeça ou dor nas canelas. É tudo sadio, bem alimentado, sem cultivar um pezinho de cenoura para criar um coelho. Agora, pedir é só quem sabe.
- Bem, pensei que a senhora teria que desaparecer um dia e não ter para quem deixar os seus bens e a igreja se encarregariam disso.
- Obrigado pela sua santa preocupação. Tenho minha Maria das Graças que cuidará de mim e dos meus bens. Ela está a concluir o curso de cirurgião dentista e é uma excelente moça. Não sabe quem são os seus pais legítimos e que às vezes minha desconfiança vai mais longe do que eu queria.
- Como assim?
- Quem sabe se não tem a infelicidade de ser filha de algum reverendo. É tão misteriosa sua origem que dar o que pensar.
- Nossa Senhora. Não cometa um sacrilégio, dona Conceição. A senhora, uma mulher tão aproximada da Igreja com essas idéias tão absurdas.
- O senhor sabe que a cidade inteira lhe conhece...
- Maldade dessa gente desocupada, dona Conceição. Só maldade.
- Pelo sim e pelo não, resguardo-me. E até logo padre, Suvela.
- Como?
- Sim senhor, padre Suvela, o apelido que lhe botaram.
- Mas não me pareço com Suvela.
- Bem, não é por isso não. É por outra coisa. Entenda como quiser.
Maria das Graças formou-se e recebeu como presente o seu consultório.
- Mas, mãe, porque tamanho sacrifício. Não merecia tanto. Compraria quando pudesse. Já tenho um dinheirinho guardado para isto. E vou entregar-lhe. Não é muito, mas ajuda na compra.
- Guarde-o para tuas despesas. Sabes que não preciso de mais do que tenho. Minha ambição é apenas ver-te feliz, Maria das Graças. Tu não poderás nem hoje, nem amanhã, avaliar o bem que me fizeram, colocando-te em minha porta. Daí para cá se acabou minha solidão. Tua presença foi como um foco luminoso que se acendeu dentro desta casa e de minha vida. Não sabes o que é dormir e acordar sozinha. E espero que não te aconteça. Minha companhia era unicamente o silêncio, essa coisa fria e muda que fica espiando para a gente a noite toda com aqueles olhos de mágoa e tristeza. Quando se vive só é como se estivesse num mundo sem cores e sem horizontes. A gente se afunda em meditação e não enxerga outra coisa se não sombras e uma espécie de caminho atravessando um interminável deserto. Não me casei e nem tive amores. Fui uma moça sem sorte. Sempre esperava por alguém que nunca chegava e nem chegou. E o tempo nunca se preocupou com isto. Ia passando indiferente a tudo como se eu não fosse uma pessoa igual às outras, também capaz de amar. Tornei-me uma solteirona marcada por profundos desenganos. Procurei socorrer-me beijando os altares, valendo-me de Santo Antonio e não fiz outra coisa além de perder o meu tempo. E o tempo nunca se preocupou com a minha desdita, até que envelheci para o amor. Olha Maria das Graças, o tempo não espera por ninguém. Atrasa-se, perde-se o transporte.
Maria das Graças instalou consultório. De mãos leves e suaves, não tardou a ter uma boa clientela. Uma coisa, entretanto, chamava-lhe atenção. Uma cliente, ao seu julgamento, fantasiava dores de dente e era a mais assídua em seu consultório. E observava que, por mais que procurasse disfarçar, não tirava os olhos dela. Além disso, demorava-se o quanto podia. Trazia-lhe presentes e não perdoava uma rosa para o jarro do gabinete. Havia, sem dúvida, um mistério naquelas freqüentes visitas, já de bastante intimidade. E aqueles traços fisionômicos parecidos com os dela despertavam-lhe ainda maior suspeita.
Conversou a respeito com dona Conceição. E dona Conceição assustou-se. Intimamente tinha quase certeza de que só poderia ser a mãe legítima de Maria das Graças. Desejava por isto, vê-la, conhece-la. Foi ao consultório naquele dia não falhava. Dona Conceição esperou. Teve um desapontamento. A cliente assídua era não nem mais nem menos do que uma antiga conhecida e de quem se havia separado havia tempo. Não poderia ser outra a mãe de Maria das graças. Também não se casara e vivia na mesma solidão que ela já havia vivido. Teve pena da moça. Pobre coitada. À saída do consultório, acompanhou-a. Recordaram alguma coisa do passado e chegaram onde dona Conceição desejava. Falar sobre Maria das Graças. Foi então que viu correrem duas lágrimas solitárias pelo rosto triste de Ana Maria.
- Confessa-me uma coisa, Ana Maria. Por que vais com tanta freqüência ao consultório de Maria das graças. Há ao que parecesse muita afinidade entre as duas.
- Sei que a senhora é capaz de guardar um grande segredo. Maria das Graças é minha filha. Nunca deixei de vê-la ao longe. Deixei-a em sua casa, pela confiança que tinha na senhora. Mas pode ficar certa de uma coisa, não quero tomar para mim e tenho medo que ela venha, a saber, e não me aceite. Só Deus sabe como a deixei em sua porta. Chorei dias e mais dias como se estivesse me desfazendo em pranto. Estive ausente daqui durante a gravidez aparente. Voltei quando ela já estava em meus braços. Medo da sociedade, covardia, fraqueza minha. Tenho amargurado todo esse tempo. Contentava-me ir sempre vê-la, mas doía-me tanto.
- Afinal, criatura, pode me dizer quem é o pai de Maria das graças?
- Nunca, tão monstruoso é o segredo. Aumentaria minha vergonha e minha desgraça.
- Mas nem a mim que sou a segunda mãe. A coisa é tão feia assim que nem a mim podes revelar.
- Mesmo se tivesse a coragem de contar-lhe, não iria acreditar, pois é mesmo inacreditável. Ninguém pode ter caído tanto quanto eu.
- Não deve mais haver segredo entre nós duas.
Ana Maria ficou como se estivesse parada no tempo e no espaço. Inteiramente consumida. E agora que estava casada, com dois filhos, temia muito mais o escândalo. Será que poderia confiar tanto em dona Conceição? Seria, talvez, arriscar demais.
- Vê bem Ana Maria. Se for capaz de guardar um segredo, também o serei. Amo Maria das Graças e eu nada poderia contribuir para torná-la infeliz.
- Mas é tão humilhante, dona Conceição.
- Quem foi afinal. Desembucha de uma vez.
- Pois bem, mas juras que ficará para sempre entre nós. Foi o padre. Iludiu-me no confessionário. Levou tempo, mas venceu-me. Parece até que me hipnotizou. E um dia saí do confessionário para perder-me. Convenceu-me e orientou-me com se estivesse me abrindo às portas do Paraíso. Eu já andava fora de mim. Iria sentir um prazer maior do que o prazer do melhor sonho da minha vida. Era o que toda mulher em minha idade deveria buscar para sentir-se feliz. Fui com ele como se fosse indo nas asas de um anjinho do Paraíso. E tudo se passou tão subitamente e tão estranhamente que me pareceu que havia cumprido o mais belo ato de minha vida. E voltei várias vezes para acabar de perder-me. Quando me senti mãe, largou-me como quem atira um punhado de cinzas ao vento. E ainda ameaçou-me. Diante de qualquer revelação diria que eu o procurei e conquistei, fazendo-o cometer um sacrilégio. Nunca mais fui a uma missa, para não vê-lo. E enquanto eu sofria, corria atrás de outras inocentes.
- Já cismava disso. E foi melhor teres ficado em silêncio. Ninguém deixaria de acreditar num sacerdote para acreditar em ti, em mim ou em qualquer outra. Mas deixa que ele vai nos pagar. Sei como fazê-lo. Apenas guardes silêncio, silêncio total.
E com menos de dois meses, padre Suvela estava no hospital. Havia-lhe-lhe cortado de um golpe suas “preciosidades”. E com dez dias os sinos da igreja anunciavam defunto.
- Quem terá morrido mamãe?
- Uma pena, minha querida. Foi o padre Frazão. Um santo homem. A estas horas já está gozando as auras do Paraíso. Santo, bom e honesto...

*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”. No prelo.





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