segunda-feira, 27 de outubro de 2014

AS VOLTAS QUE A VIDA DÁ


AS VOLTAS QUE A VIDA DÁ*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


            O mundo seria muito cruel se a vida da gente fosse uma coisa transparente e que se pudesse ver tudo que o coração sente, sem ter como esconder alegrias íntimas, mágoa e segredos.
            Seria assim como uma nudez completa do corpo e do espírito. Uma vida despida de fantasias, e segredos e a realidade esmagando as pessoas. Uma existência sem disfarces, sem mentiras, sem a doçura de sonhos e prazeres irreveláveis.
            Alzira pensava precocemente, ainda uma mocinha, como seria então a vida. E nem sabia bem porque lhe ocorriam essas visões aterradoras. Se Deus fizera o mundo como estava é porque assim é que deveria ser.
Mandaram-na para um internato em colégio de freiras. A mudança do ambiente, afinal, aos poucos, tranqüilizou-a. Tinha era que viver a vida igual às outras moças, sem receio que os seus segredos, as suas dúvidas e os seus desejos não estivessem bem guardados.
            Ansiava, então, que chegassem as férias, voltasse á sua cidade para rever o seu mundo anterior. Talvez fosse bem diferente daquela que a assustava, com a sua impressão de nudez.
            Pura criancice. Mas, por que lhe vieram àquelas idéias malucas, de uma vida sem segredos. Mal sabia que aquelas impressões provinham de suas inclinações secretas. Tinha medo porque já alguma coisa a empurrava para o inconfessável.
            E tornou-se uma moça com desejo ardente de se tornar mulher. E na realidade não tardou sua doação, quando, então, afogou-se sem esperar, numa realidade tão violenta que se sentiu por terra.
            Como lhe havia acontecido o desastre, só poderia ter sido por uma força estranha. E agora que se oferecera, abrira os olhos como quem estava caindo num abismo de onde não poderia sair. E o meio seria esperar o que aconteceria. Humilhada e triste, assustada e trêmula, passou a esperar. Que os poderes do destino a livrasse do pior. Dia após dia esperava os sinais acusadores. E esconderia até quando, se eles esperassem. No meio de tantas duvidas, sobressaltava-se com qualquer vestígio de mal estar. Poderia perder o apetite, ter enjôos e daí pra frente estaria inteiramente aniquilada. Teve sorte, porém. Os meses se foram sem anormalidade. Procurada outras vezes, negara-se de corpo e alma.
            Ninguém mais tocaria no seu corpo. Os meses que passara cheio de apreensões, e o medo apagaram-lhe todos os seus desejos. Poderiam reaparecer maias tarde com esquecimentos de suas desventuras.
            E quando pensava que havia se entregue a quem não poderia ampará-la, dava-lhe calafrios. Só poderia ter sido arte do capeta. Que só se comprazia com a desgraça dos outros. Havia sido criado só, e só para tentar as criaturas e com o poder misterioso de colorir suas artimanhas. Levava as pessoas para o lodo e para lama, como se estivesse esvoaçando entre roseiras e borboletas de asas douradas. E quando satisfazia o seu sadismo de moleque vadio e perverso, largava a vítima com um sorriso cínico. O diabo foi uma criação diabólica. Bichinho envenenado e azougado. Chega sem a gente sentir e nos leva para onde quer.
            Foi assim que levou Alzira para os braços de um marido malandro, sem ela perceber que mergulhava numa aventura. Suas primeiras idéias de nudez espiritual só poderiam ter sido insinuação do capeta.
            E aquela insegurança em que havia vivido, quem poderia ter sido, senão ele. Não era possível que ainda voltasse a segui-la.
            Resolveu, então, defender-se, protegendo-se contra qualquer tentação. E o certo seria internar-se num convento, onde as portas deveriam estar sempre fechadas, para o bichote descarado...
            Por segurança maior, poria uma medalha de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. E Alzira, entrou no convento, numa segunda feira de maio. E no primeiro domingo foi se confessar, caindo na inocência de contar o que lhe havia acontecido. Viera para o convento por desilusão, como uma criatura arrependida e que desejava penitenciar-se. Foi a sua perdição. O padreca fez-lhe mil perguntas indiscretas, até certificar-se da viabilidade de fazer algumas incursões pelas terras proibidas.
            - Não te esqueça, minha menina, de voltares á confissão. Quero deixar-te livre de pecados e santificada. Não pressentia que o diabo ainda a andava rodando novamente.
            E confiava nas auras sagradas do convento. A cada confissão a que se submetia, o confessor fazia nova perguntas sobre seu passado oculto.
            - Ora, Alzira, irmã Alzira, fazer o que fizestes involuntariamente ou não, jamais foi pecado. Isso é uma lei natural. Deus havia dito: “Crescei e multiplicai-vos” È isto que toda pessoa sensata deve fazer, mesmo que não chegue a se multiplicar. Seria um pecado maior, fugir aos preceitos da religião. Não te assustes, pois, com essas tolices. Pecado é outra coisa muito diferente. Pecado por exemplo, era contrariar as leis naturais e os mandamentos da igreja. E a igreja não proibia certas relações, tanto assim que fazia casamentos, permitindo a união entre corpos. Vai tranqüila, minha filha, pois não mereces nem a mais teve penitência.
            E Alzira ficou convencida que não havia feito nada de mau. Era uma noviça, sem compromissos religiosos sérios.
            Simulou-se doente e bateu asas do convento. Iria se casar o mais depressa possível, embora temesse essa resolução logo no início. E saía com a convicção que o padre Abdias queria era lanchá-la.
            Isto sim, seria um pecado contra o natural. Padre não tinha responsabilidade de família e poderia muito bem deixá-la sobrando para o resto da vida. Escapara do primeiro assalto, mas o segundo era duvidoso.
            Padre Abdias quando soube da fuga, teve um estremeção. Pois não era, já se considerava com a maçã nos dentes. “Bichinha esperta”. Também demorei muito na pregação. Da próxima darei logo o bote. E não esquecia o rosto e os gestos da noviça Alzira. A insatisfação o transtornava como se fosse marinheiro de primeira viagem. O certo é que notou que não era mais assim. Era, sim, uma paixão brutal. Certificara-se de que Alzira não voltaria mais. Noites de insônia e dias sem entender o breviário, atormentavam-no.
            Era o diabo daquela batina e a burrice de quem proibia padre de se casar. A menina percebera com certeza os seus avanços e nem era uma inexperiente. Preparou a bolsa de viagem e deu no pé para Serrote Alto.
            Alzira não poderia mais sair de sua vida, mesmo que arrancasse os botões da batina e atasse fogo de baixo para cima. Isto no último caso de não conseguir convencê-la a voltar para o convento. Desejava pelo menos vê-la sempre e empregar toda sua arte confessionária. Chegou a Serrote Alto e hospedou-se em casa do vigário. Seu velho amigo e ex-professor de teologia. Tinha dúvidas se deveria pedir-lhe conselhos. Pareci-lhe que não deveria ocultar o seu desapontamento e sua paixão por Alzira. E terminou confessando o seu estado de espírito, sua resolução.
            - Muito bem. Compreendo a tua situação. Não serias o primeiro a correr atrás de uma mulher e mandar urtigas a batina. No entanto, deves neste caso recuar, se é que se trata da menina Alzira Serra, que acaba de deixar o convento. Em primeiro lugar, se ela fugiu do convento é porque não se interessa por ti. Segundo, a família Serra não daria consentimento. Não podes imaginar o zelo que tem pela moça, única mulher do casal. Alem disso, tanto o pai como os irmãos, não são flores que se cheire. É muito mais fácil íris para o cemitério do que para o altar. E não serias o primeiro, nem segundo, nem o terceiro por motivos banais. Todavia a decisão é tua. Somente tua. Mesmo deixando a batina. Basta saberem que um padre está enamorado dela. E mais nada. Caso pretendas insistir, muda-te logo da casa paroquial. Não pretendo envolver-me com aquela gente.
            - Mais a minha paixão por Alzira é maior do que o medo. Creio que irei me arriscar.
            - Antes, porém, encomendas o caixão e contrata o enterro. E não contes com o meu acompanhamento. Aqui em Serrote Alto, foi onde o diabo perdeu as esporas e não encontrou mais. E sabes de uma coisa curta e certa, muda-te logo da minha casa. Talvez baste que a menina Alzira te veja e conte a família. Certamente já fugiu do convento por tua causa. Inclusive, já estou sentindo o cheiro de defunto e não tolero nem cheiro de vela acesa.
            Padre Abdias teve que se mudar. Havia, pelo menos que ver Alzira. Iria a todas as missas, que ela deveria assistir. E logo no segundo dia, domingo, lá estava perto do altar. Padre Abdias mudou de posição, procurando oportunidade de ser visto.
            E Alzira, surpreendentemente o avistou com um sorriso apaixonado. Foi o bastante. Alzira deixou repentinamente a igreja, um mau sinal.
            Padre Abdias a seguiu. Ela andava apressada na direção de sua casa. Padre Abdias sentiu cheiro de velório e mal teve tempo de enfiar as roupas na mala e pagar o hotel.
            - Mas, para onde vai o senhor? Hoje não é dia de transporte e aqui não tem carro de aluguel.
            - Não, vou atender um convite do vigário. Censurou-me por estar em hotel.
            A verdade é que o padre Abdias viajou a pé, esticando os passos, com a maleta na mão. Quando avistava ao longe, alguém que vinha na mesma direção, desviava caminho.
            Afinal, desapareceu da vida de Alzira. Alzira apenas não queria vê-lo.
            Não dissera a família. Não tinha dúvida, entretanto, que o capeta não largava de pregar-lhe susto. Para uma moça bonita e quase rica como era não faltava pretendente. Mas acontecia que muitos tinham medo da família Serra, o que dificultava a aproximação. A iniciativa deveria partir dela, pelo menos em facilitar os entendimentos com a família.
            Todavia, Alzira que não desejava iludir ninguém. Tivera o seu caso secreto, do qual escapara e não seria justo deixar de revelá-lo ao escolhido. E ai estava o problema. Sempre o diabo estava metido com sua vida. Deus a livrasse de ter o seu segredo desvendado. Conhecia a família que possuía. Pensara até em esperar para ver se o Almiro enviuvava e então lhe cobraria a dívida. Mas ao mesmo tempo refletia que o havia enganado e, por tanto não poderia prestar para uma união definitiva.
            A solução seria mesmo o convento, mas excluía essa alternativa por causa dos padres Abdias. Para onde fosse deveria ter um á sua espreita. Havia criado ojeriza. Ficar sem se casar seria a sua maior frustração. Somente o santo de sua devoção poderia dar um jeito. E apegou-se a São Mateus, sem deixar de lado Santo Antônio a quem agradava com fitas e velas. O meio seria esperar o milagre. Não seria possível que apegada com dois santos fortes, o diabo viesse ainda meter-se no meio.
            Suas agonias começavam a apertá-la. Foi quando então, apareceu o Ambrósio, viúvo ainda enxuto e sem filhos. Para viver com certo conforto, não necessitava da família Serra.
            Conceituado e merecendo o respeito de todos, Ambrósio seguiu em frente e era dos poucos que não temiam os Serra. Alzira aderiu e quando a coisa já estava bem avançada, chamou as falas. Casaria, mas havia uma condição que era aceitá-la como ela era.
            - Olha menina, eu preferia até que já fosse viúva, mesmo porque uma moça tem pouca experiência do que seja um casamento, e uma vida a dois.
            - Mas não é nada disso. Eu nasci diferente das outras moças. Uma anormalidade anatômica. Não tenho aquele sinal de virgindade, devo confessar-lhe para evitar futura dúvidas.
            - Ora, Alzira, aquilo é uma insignificância. Tanto faz, como tanto fez. A pureza de uma mulher não pode ser colocada, onde colocam. É uma estupidez social. O que importa é o respeito mútuo do casal. A boa compreensão, o bom viver. Não quero continuar só. A minha solidão é muito maior do que qualquer sinal de virgindade. Se me aceitas e tens certeza de que serás feliz comigo, vamos falar com teus pais.
            - Conhece bem meu pai e meus dois manos.
            - Eles também me conhecem. Não sabe o ditado, que balas trocadas não doem...
            - Pois é. Só tenho medo é de uma coisa. Um arrependimento teu, posteriormente.
            - Nunca e nunca. Acho que o senhor é o esposo que eu sempre sonhava.
            - Prepara o espírito de tua família. Ouve a reação e me digas. Se não favorável, casaremos fugidos, caso te decidas.
            - Mas lá em casa só tem feras. Qualquer desagrado vão logo aos extremos.
            - Isto para mim é boato. Formiga sabe que roça corta.
 Alzira conversou em casa com sua mãe.
            - Mas queres te casar com um viúvo e logo aquele, metido a brabo. Irá querer te manobrar e o resultado já podes sabe qual é.
            - Resultado nenhum. Serão eles por eles.
            - Serra. Alzira resolveu se casar e já escolheu o pretendente.
            - E quem é o meu desafeto?
            - É o viúvo Ambrósio. A menina que ser casar e a escolha será dela e foi bem feita. Se fosse um cafajeste, então, a coisa mudaria de figura. Só porque o homem também é macho, isto não. Será mais um durão na família. E por acaso, tua filha é também uma flor que se cheire, neste particular. Braba e decidida como é. Quem conhece bem Alzira sou eu. Caso não concordarmos é capaz de casar fugida. Muito pior, portanto!
            - Fugida!
            - E por que não? Não conheces a força que uma mulher tem quando gosta de alguém.
            - Torceria a orelha dos dois.
            - De quem, do Ambrósio? Que engano esse teu. Bem sabes de uma coisa, deixa a menina casar. É melhor que ficar encalhada, nervosa, desiludida e amuada. E queres um genro melhor do que o Ambrósio? Essa não: homem de bem, honesto e não tem medo de tua família. Alzira já poderia ter casado com outro se não fosse o medo que tem de ti e teus filhos. Ninguém teve coragem até hoje de se aproximar da gente.
            - Digas a ela que pode trazer o Ambrósio aqui. Mas não me venha com farrabambas... Darei o consentimento se bem entender e não com medo daquele porréia...
            - Fala baixo, senão irá, perder a fama.
- Lá me vens com tolices. Vamos casar a menina. Chama-a aqui.
            E no dia seguinte já estavam noivos. Alzira havia escapado do cerco do capeta.
            Casou sob as vistas dos curiosos, que achava, que somente uma moça desiludida poderia casar-se com um viúvo daquele, já acima dos quarenta e metido a cavalo do cão. No entanto, tornou-se o casal mais feliz da cidade. Inseparáveis nos passeios, nas festas religiosas e em casa num mar de rosas.
            Mas não faltaram outros comentários. A cidade estava cada vez mais cercada, com a junção das duas famílias terríveis, cada uma com um rosário de crimes e atentados.
            Mas, aconteceu justamente o contrário. Aumentou o respeito da população. E de certa forma o medo de represálias e nada mais aconteceu de grave no Serrote Alto. Alzira não teve filhos. Era estéril. Tinha porém, uma diferença a cobrar do patife que lhe causara tantas tribulações, que ela antes atribuía ao pobre e inocente capeta. Estudava uma saída sigilosa, quando o destino encarregou-se da tarefa. Zeferino, que lhe havia enganado, entrevou de reumatismo articular e sem cura. Paralítico, arrasado, ficou a pagar-lhe com juros dobrados, o mal que lhe havia causado.
            E certo dia foi com o marido visitá-lo, só para certificar que não era mais de nada.
            - É isto mesmo seu Zeferino. Conforme-se com as artes do capeta. Isto passa. Passa logo. Enquanto há vida, há esperança. Talvez esteja pagando pelo que tenha feito antes. Mais é bom que se cuide. Conheci um que morreu de fome. A paralisia atacou a garganta e a língua. Nem água bebia. O senhor pelo menos ainda se mexe, o que é uma grande sorte.
            - Ah! Antes tivesse morrido logo.
Ao saírem, a mulher de Zeferino fez suas queixas. - Era bem melhor mesmo que houvesse morrido. Tem dado trabalhão dos diabos. Também não se perdia grande coisa. Aquilo sempre foi um ordinário. Não parava em casa. A mulher era para cuidar da casa. As outras eram que tinham valor. Se morresse seria um grande alivio.
- Concordo, disse Alzira. Mais vaso ruim custa a quebrar.
- Tem nada não. Dou um jeito nele. Não agüento mais aquele aleijado, devorador de mulheres. Sempre foi um patife. Fez-me sofrer muito e agora fica a dar-me essa trabalheira dos diabos. Pensa que não sei o que aconteceu contigo? Sei criatura. O bicho falava dormindo e mesmo acompanhava os passos dele. Tive muita vontade de contar a teu pai. Não o fiz para não estragar tua vida.
- Então, por favor, continuas a guardar segredo para não me fazeres infeliz.
- Fica sem cuidado. Minha questão é com ele. Precisa sofrer mais. No tempo certo, convido-te para o enterro. O chaõzinho dele está preparado. Um chãozinho ótimo para entrevado...
E vinte e oito dias depois, Alzira foi convidada.                          
14-03-1986
*Este conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.


            

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