quarta-feira, 8 de outubro de 2014

A VELHA FAZENDA




A VELHA FAZENDA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam – 20/09/1901 – 16/04/2003)


Os Pereiros, uma velha fazenda do alto da Borborema, nos Cariris Velhos, andava a beira da decadência. O proprietário, seu Adelino, já envelhecido e cansado, percebia aquele começo de ruína, sem forças para uma reação. Os filhos casaram-se, tomaram o seu destino e pareciam indiferentes com o que acontecia, e, com a sorte do pai.
Dona Santa sua esposa e a única filha solteira, a Marilda, sentiam naquele abandono, o fim de suas esperanças. Nada poderiam exigir de Adelino, exausto de tantas lutas para construir tudo aquilo e que seria a segurança para a velhice do casal.
          Os filhos aconselhavam vender todos os bens, pôr o dinheiro a juros nos bancos ou em casa comerciais e viverem dos rendimentos. Tinham suas ocupações definidas e permanentes, não podendo dar assistência à fazenda dos pais e da irmã.
          Marilda via naquela saída dos irmãos, o desprezo pela fazenda e até pela velhice dos pais. Mas não ficaria assim. Haveriam de ver o quanto valeria uma mulher decidida a uma reação. Poderiam ficar certos de que os seus pais iriam ter a velhice que mereciam. E não recorreria aos irmãos ingratos e egoístas. Nem sabia Marilda, como poderiam ser filhos do mesmo pai e da mesma mãe. E não precisaria virar homem para dirigir a fazenda e fazê-la prosperar. A tomaria desmoronada e a levantaria à golpes de raciocínio e de esforços. Bastaria que o pai concordasse ou pelo menos aceitasse sua cooperação.
         - Papai, nossa fazenda não está indo bem. O senhor não tem mais a força necessária para conduzi-la como fazia antes. E não quero permitir que tudo quanto o senhor fez com redobrados esforços resvale para o fundo do vale. Deixe-me que tome conta e recupere o seu patrimônio. Seu e de mamãe.
          - Seu também, minha filha. No entanto, será uma tarefa grande demais para uma moça. Toma meu conselho. Casa-te e vai viver tua vida, como fizeram teus irmãos. Eu e Santa estamos do meio para o fim. Com qualquer coisa passaremos. Não temos mais muitas ilusões. Quando se chega a nossa idade, os horizontes da vida vão encurtando. Quer-se apenas tranqüilidade e não creio que os teus irmãos, a esta altura de nossa vida, nos deixem passar privações. E mesmo num caso extremo venderemos a fazenda e teremos o suficiente para ir até o fim.
          - Sei, sei, papai, mas não é isto que quero. O que pretendo é conservar e valorizar o seu trabalho. Desejo que o senhor e mamãe vejam tudo florescente, alegre, e próspero. Os campos zelados, a vacaria no curral, a bezerrada no pátio, o milho verde na mesa. As melancias vermelhas e doces deliciando o paladar. Aquelas melancias de que o senhor sempre gostou. Quero que os seus desejos sejam atendidos, e que nunca chegue a se lamentar que no seu tempo era assim e assim... Nunca! Meus irmãos irão ver que não se precisa vender a fazenda para viver.
          - Mas, filha, será sacrifício grande demais. Já te disse, casa-te e aproveita tua juventude.
          - Nunca faria isto. Meu lugar é aqui ao seu lado. Poderia me casar e continuar morando em casa, mas sei lá se o meu marido não iria perturbar-lhes a vida. Deixe-me fazer uma experiência. Basta que me de a orientação necessária, quando consultá-lo. Estou decidida e espero que tenha êxito.
- Sempre acompanharei o seu trabalho diário.
- Decerto será necessário vender algumas rezes para começar a restauração. Remontar cercas, cuidar das aguadas, tratarem das pastagens, e dos gados. Confie em mim e verá que não lhe decepcionarei.
         - Está bem. Faço tua vontade. Mas não te esforces demais. Além disso, não podemos, no momento, fazer grandes despesas. Tem-se que ser parcimonioso. Lembra-te que Roma não se fez num dia.
         - Irei atacando por prioridades. Aquilo que for mais urgente para melhorar os rebanhos, que andam por ai um tanto abandonados. A vacaria terá que vir ao curral, o leite será transformado em queijo e manteiga, o rebanho de cabras precisa ser mais bem tratado e bem assim as ovelhas. Teremos que mudar o vaqueiro ou encostá-lo caso não se decida ao trabalho.
           Marilda montou no russinho e foi percorrer os quatro cantos da propriedade. Reviu os rebanhos, as cercas, as pastagens. Como medida preliminar, mandou reunir a bicharada aos currais e apriscos. No dia seguinte relacionou todos. Era necessário saber o que existia e suas condições de trato. Era uma medida que se impunha. Saber o que tinha e como estava. As pastagens já decaiam e a fome crítica se avizinhava. Eram indispensáveis sérias precauções e medida de previdência. Fechar os vários cercados para a economia dos pastos. Prender os animais com deficiências para um tratamento especial. Uma turma executava sistematicamente os reparos de cercas e cancelas. Outra realizava a limpeza das aguadas. E o vaqueiro não poderia se afastar do campo, no trato dos animais carecidos de zelo. Duas semanas depois, já um pote e meio de leite entrava na cozinha para o queijo e a manteiga de garrafa. Tudo aquilo parecia um sonho maravilhoso.
Os irmãos de Marilda sofreram um desapontamento, pelo menos aparente. Era um impacto em sua indiferença pelo patrimônio dos pais. Pretenderam, então, dar uma demão a irmã, que recusou alegando que cada um tinha suas ocupações e não desejava prejudicá-los. Deixassem com ela. Sentiram que a recusa era proposital. Reconheceram que haviam sido injustos com os pais. E um ano depois já andavam enciumados com a irmã.
          Marilda vendera todos os animais de descarte, deixando os rebanhos limpos e escolhidos. Comprara um reprodutor de boa raça e a bezerrada que iria nascer seria para causar inveja. E na verdade, mais um ano e meio decorridos ninguém os tinha mais valorizado. Não se tirava leite sem deixar a parte da bezerrada e nunca se pegava no peito de uma vaca cujo leite só dava mesmo para alimentar bem o bezerro. Não queria que a “doença da cuia” atrofiasse as novas crias, bezerro quer não come e não mama, não se desenvolve, era evidente. Dos rebanhos de cabras e ovelhas, ficou somente o que havia de melhor e cada um deles teve também reprodutores selecionados e raciados. Os cercados bem cuidados conservavam os pastos. Os plantios de palma forrageira se expandiam, assegurando a nutrição dos animais no verão. Das roças, ou melhor, das colheitas de algodão mocó, o caroço voltava para a fazenda. Causava admiração e gosto, ver como Marilda conduzia a fazenda. A manutenção da casa era uma de suas maiores preocupações. Queria e conseguia dar aos pais um conforto e uma tranqüilidade que não tiveram antes. Cadeiras de balanço novas para os dois, no terraço, colchões de lã de barriguda e quanta coisa julgasse confortável para o casal.
          - Minha filha, -  diziam, -  para que tudo isso. Já se possuía o bastante.
          - Que nada! Por aí virá mais. Tudo que se tem é do papai e da mamãe. O dinheiro está aí e não esperem que só eu me lembre de adquirir as coisas. Comprem o que quiserem, é lógico. Se eu pudesse adivinhar, não lhe faltaria nada, e por isto peço que, pelo menos me lembrem. Papai pode querer mudar de cigarro, por exemplo, e mamãe um pó de arroz ou um perfume diferente. Não tem que deixar nada para ninguém. Todos os filhos estão economicamente muito bem. Para mim só desejo o que já me pertence. O meu gado aumenta de ano para ano.
          - Olha Marilda, de cada dois bezerros, cabritos ou borregas que nascerem um, será teu. Fazemos questão disso. Será nossa meeira enquanto formos vivos.
          - Não, papai. É demais, e isto poderá despertar a ciumada dos manos, dos seus genros e noras.
          - Nada disso. Se soubermos que alguém se manifestou contrário, passo tudo para teu nome e por escritura de compra e venda. E alias, é o que deveríamos fazer. Pensas que estamos esquecidos quando abandonaram a fazenda e nos aconselharam vendê-la para sobrevivermos. Nunca esquecemos tal indiferença. O pai e a mãe já estavam sendo pesados e incomodo.
          - Não será necessário não, pai. Não irei precisar de tanto. E quero aproveitar a boa ocasião para dar-lhe conhecimento de uma novidade, talvez a maior de todas. Estou me enfeitando para casar.
          - Casar, casar!... Não será brincadeira, Marilda, Marilda. Isto tem sido nossa também maior preocupação.
         - Mais não tenha cuidado, pois continuarei na direção da fazenda e com mais força ainda. Só quero uma coisa que é permitirem fazer minha casa aqui ao lado, pegadinha.
         -Ah! Esta, não. Terás de morar conosco, dê no que der. Ou então que será de nos dois, sem a tua presença, Marilda.
         - Preciso então, explicar isto ao meu futuro noivo. Não pretendia incomodá-los com pessoa estranha dentro de casa, inclusive, de filhos se vierem. Quebraria a tranqüilidade, a paz, o sossego da casa.
          - Ora, Marilda, será maior a alegria e a segurança. Além disso, esta casa será tua. Seremos teus inquilinos.
          E deram boas risadas.
         - Está aí, Marilda, completaste nossa alegria de viver. Não nos conformávamos em ver-te solteira, fugindo à regra geral, só e só para nos fazeres companhia. Mas, afinal de contas, quem será o felizardo, esse teu príncipe encantado, de quem tens guardado tamanho segredo.
          - Ah! Papai é simplesmente o meu primo e seu afilhado, o Josias. Se estiver errada, aconselhe-me e perdoem-me. É uma afeição antiga, do tempo do colégio do professor Chiquinho.
          - Ora, Marilda, onde iríamos encontrar melhor pretendente para nossa filha. Deus abençoe vocês e desde já tomem conta da fazenda e desses dois velhinhos que tiveram a felicidade de lhe ter como um raio de sol a iluminar e aquecer-lhes a vida. E sabe qual será o nosso presente? Iremos construir, segundo teus desejos, uma casa nova e mais alegre aqui juntinhos ligados por porta interna. O velho ditado é muito certo: Quem casa, quer casa.
          Abraçaram os três, ternamente.


*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

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