domingo, 19 de outubro de 2014

ANINHA

ANINHA*


João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)




                A porta ia se abrindo como se estivesse sendo empurrada por uma sombra. E era como se fosse um sonho de Aninha esperando alguém. Dias e dias, ia na pontinha dos pés, na solidão da casa, sondar um e outro lado da rua na esperança de ver Marêncio voltando.
                E nessa ansiedade ia se consumindo lentamente, empalidecendo como uma pétala que se desprendera e se descoloria. Qualquer ruído lá fora, eram os passos de Marêncio chegando, mas tudo não passava de ilusão.
                Quando fugira de casa, Aninha estava certa de que sua felicidade estava unicamente nos braços de Marêncio. Era ele, em sua cega paixão, aquele príncipe encantado dos malvados romances de amor. Não sabia Aninha que a desgraça antes de ser desgraça, tem as asas douradas. E abandonou a casa, a família, para ir-se sem deixar ao menos um bilhete de despedida.
                E agora estava só, com medo da luz, das sombras e da solidão. Por fim desiludiu-se. O abandono dói muito mais do que todas as dores reunidas. Envergonha-se de ter de voltar, de olhar para o rosto do pai, da mãe, dos irmãos. Sim, era melhor sofrer morrer, cometer qualquer desatino.
                Mas dentro dela Marêncio deixara uma semente em formação. Um filho que não tinha culpa de não ter mais um pai. O miserável não queria outra coisa senão beber a água cristalina dos seus encantos. Naturalmente já andaria a enganar uma outra para depois deixa-la sem ao menos despedir-se, como fizera com ela.
                Começou então a odiar Marêncio. Estava certa de que não mais voltaria e a única saída era humilhar-se e tentar uma reconciliação com a família. Mas aí estava a dúvida. E se não mais a quisessem, naquele estado, sob os olhos da sociedade.
                Mas, de uma coisa tinha certeza. Jamais seria uma decaída. Teria que conseguir um trabalho honesto, em casa de família ou em alguma organização comercial. Optou por uma casa de família. Pelo menos teria alguém para condoer-se dela e dar-lhe assistência nos dias em que tivesse de rir e chorar quando chagasse o fruto, de suas ilusões perdidas.
                Ninguém a quis. Era, na opinião de todos, uma moça perdida. Em minha casa, não! Os mesmos preconceitos sociais, a mesma exclusão por fato natural. Aninha desesperou-se e não havia outra opção além daquela de enfrentar a família. Se não fosse aquele filho crescendo lá dentro, já teria tomado uma decisão corajosa.
                Para ela seria um remédio, mas nunca para o filhinho que além de tudo ia nascer sem pai. E tomou o primeiro transporte, enquanto lhe restava alguns níqueis na bolsa. E em sua cidade hospedou-se em casa de uma ex-colega.
                Foi um espanto de alegria. - Aninha, és mesmo tu, Aninha! Tua família está desesperada. Tua mãe não para de lamentar-se. Todos, enfim. E onde está Marêncio? Separastes dele?
                - Nada, menina. Deixou-me sem dizer uma palavra, sem uma razão por mais simples que fosse. Não andou por aqui, por um acaso?
                - Não. Pelo menos não se teve notícia.
                - Pois é. Abandonou-me tão logo lhe disse que estava grávida. Saiu sem dizer para onde, como se fosse ali, por alguns instantes. E vai para mais de um mês. Nem deu uma noticia, sequer. Vi-me só, abandonada, não consegui emprego e antes que não pudesse voltar, destinei-me a vir.
                Agora tenho medo. Fugi como uma louca, dominada por uma paixão doentia. Antes tivesse morrido naquele dia de infelicidade. Hoje só penso em vingança, com minhas próprias mãos. O Marêncio foi a pior criatura que tive sob os meus olhos. Nenhum canalha compara-se a ele. Fingia querer bem. Ia comigo para passeios curtos, não me faltava com seus carinhos, mas tudo fingido. Enjoou do corpo deve ter tido nojo do filho. Pelo menos poderia ter me trazido de volta ou dado uma explicação. Meu ódio é ainda maior por isso. E foram terríveis os dias e as noites de espera. Fui uma ingênua como tantas outras. Desconhecia que os cretinos são os maiores simuladores. São os morcegos da sociedade. Sopram para beber o sangue de suas vitimas. Estou louca para rever a família, mas não tenho coragem. E não sei o que fazer Maria José.
                - Ficarás comigo o tempo que quiseres. Somos somente eu e mamãe. Não temos problemas financeiros, bem sabes. E sempre foi minha boa amiga. Chorei muito quando sobe de tua fuga com aquele irresponsável. Não acreditava que fostes tão ingênua para te enganares com ele. Mas tudo aconteceu. Tua família sofreu demais e ainda sofre. Eras a única filha e o tesouro de tua casa. Tua falta foi como se houvesse caído à única rosa da roseira. Darei um jeito de avisar a tua família, se assim o quiseres. Não direi que estás comigo, mas sim, que tive noticias tuas. Verei a reação então te orientarás. Direi qual é o teu estado.
                - Sim minha querida amiga. Mas antes de tudo, vou me esforçar para arranjar um trabalho. Hás de me ajudar nisso. Não quero que me reencontrem na penúria em que vivo. Poderá ser que não me aceitem de volta e minha decepção será maior. Alias, é o que mereço. Saí de casa sem deixar um bilhete sequer, me despedindo. Parecia que não tinha pai, nem mãe, nem irmãos. Estava completamente cega.
                E por que fugi. Não havia razão. Foi um estado de loucura. O infame do Marêncio me convenceu facilmente. Atrai-me como uma voragem. Ateou fogo dentro de mim. Dominou-me e nem sei o que teria feito a mais se me exigisse. Queimava-me o corpo com os seus olhos e arrastava-me para o abismo.
                Meu anjo da guarda abandonou-me. Tornei-me simplesmente um poço de desejos. A mente não funciona. Deveria estar hipnotizada. Casaríamos-nos e diante de nós abrir-se-ia um mundo cor de rosa, caminhos floridos e o amor seria a palavra mágica. Eu estava na idade dos sonhos. Depois do idílio, retornaríamos a casa para festejar nossa felicidade. E aqui estou eu, minha doce amiga, presa numa cruel realidade. Trago de volta somente ódio e desejo de vingança. E terei de me vingar. Para te ser sincera, só não odeio este filho porque não é possível odiar aquilo que se gerou dentro da gente, num momento de amor. Mas gostaria de esquecer a herança daquele monstro. Muita gente ainda pensa que cada um tem o domínio de si próprio. Puro engano. Fui subjugada, dominada como uma criança que se engana com um brinquedinho colorido e barato. Cada um peça a Deus para não ser ludibriado. Uma força maior contra a menor. Mas nem adianta estar me maldizendo. Fui apenas uma criança infeliz. Nem sequer procurei aconselhar-me com os amigos. Todas estariam erradas. O cego não sabe onde pisa. Pode ser numa alcatifa e pode ser num atoleiro, uma lama podre.
                Maria José, depois de muito esforço, obteve um emprego para Aninha. Escritório de uma empresa comercial. Já era uma solução. Daí para diante dependeria dela. Aninha queria ver a mãe, em primeiro lugar. Seria mais compreensiva. Preocupava-a o que poderia acontecer. E, nesta dúvida, ia protelando.
                Mas aconteceu o inesperado. Dona Fulgência, amiga da família de Aninha, tinha certeza que a tinha visto. Não poderia ser outra. E procurou a sua família. Queria falar com dona Francisquinha. E conversa vai, conversa vem, até que, pedindo desculpas, perguntou por Aninha, se tivera dela alguma noticia.
                - Nada, dona Fulgência. Abriu-se o chão. Nem gosto de lembrar. Cá em casa não se fala. É sempre um motivo de mágua. O miserável iludiu a coitada e quem sabe onde está e como vive. Esta dúvida nos martiriza. Queríamos saber mesmo que ela não se lembre da gente. Sabe. É filha. Supões-se que vive bem. Só suposição que vive bem. Poderá também está sofrendo e a gente sem poder ajudá-la. O destino é, às vezes, cruel demais. Que Deus a ampare. Não perdemos, entretanto, a esperança de reencontrá-la. Não nos chega a menor informação. Todas as tentativas são em vão. O que nos consola é que um dia vem sempre depois de outro.
                - Pois ouça dona Francisquinha! E se eu lhe disser que vi a Aninha hoje.
                - A senhora deve esta brincando e o assunto é muito sério. Com essas coisas não se brinca.
                - Poderei estar equivocada. Não me aproximei dela, mas poderia até jurar que é ela mesma, a menos que existam duas pessoas totalmente iguais.
                - Onde, criatura de Nosso Senhor?
                - Fala, fala logo. Estou ansiosa. E como está ela?
                - De boa aparência. Vi-a na rua. Sei onde ela entrou. Deve trabalhar lá. Entrou na Empresa Cordeiro & Cordeiro. Apenas a segui de longe.
                - Esperei e ela não retornou.
                - Vamos lá agora mesmo dona Fulgência. Vou chamar meu marido. Deve ser um engano.
                - É difícil haver me equivocado. Isto é impossível, Francisquinha. Não iremos lá. Mandaremos uma pessoa que possa reconhecê-la. Vou eu mesma, se confiarem.
                - Está bem, vá. Informe-se primeiro do Senhor Cordeiro, procure falar com ele, caso seja ela mesma, traga todas as informações.
                - Bom dia Sr. Cordeiro. Desculpe-me, mas desejo saber se trabalha aqui uma moça, a Aninha Santiago.
                - Parece que sim. Está aqui há pouco tempo. Uma ótima empregada. Deseja falar-lhe? Vou mandar chamá-la.
                - É a senhora, dona Fulgência?
                - Eu em carne e osso.
                - Como soube que eu estava aqui?
                - Vi-a na rua, entrando nesta casa.
                - Falou alguma coisa com minha família?
                - Nada. Por enquanto, nada e só falarei se me autorizar.
                - E como estão papai e mamãe, e os manos?
                - Todos bem e todos tristes desde que você saiu.
                Aninha começou a chorar.
                - Porque não me procurou?
                - Tenho vergonha de aparecer neste estado e depois que fugi sem deixar noticias do meu destino. O ordinário do Marêncio abandonou-me logo. Só aproveitou de mim. Um canalha. Estou em casa de uma amiga e ansiosa para ver os meus. Tenho medo de que não me queiram ver. Mereço isto, pelo que fiz.
                Fui uma tonta e uma ingrata. E isto é que mais me dói. Vi-me desamparada e tive que voltar. Arranjei este trabalho e estou me mantendo e esperando um filho: cinco meses, já. Não sei o que será de mim.
                Dona Fulgência, depois de se certificar de tudo, inclusive dos desejos de Aninha, voltou a falar com dona Francisquinha.
                - É ela mesma. Trabalha em Cordeiro e Cordeiro. Está louca para vê-los, mas está envergonhada. Não sabe como irão recebê-la. Faz pena. Chorou como uma garotinha perdida. Não sabe o que faça. Está morando com a Maria José. Faz mais de um mês. É a mesma criatura. Apenas com o olhar de uma pessoa espantada, assim como quem anoitece no meio de um caminho desconhecido.
                Diz que foi enganada pelo Marêncio que a levou prometendo voltar logo para casar. Está grávida. O bicho sumiu logo que soube disso. Um canalha. Ela quer encontrá-la para vingar-se. Diz que o matará seja quando for.
                Não pelo que ela sofreu, mas pela ingratidão com a família. Ele a cegou e a enlouqueceu. Ficou fora de si, completamente dominada e fugiu.
Não sabe como poderá vê-los depois de tudo que aconteceu. Pede que a perdoem, mesmo que não queiram mais vê-la. Fiquei de voltar para dizer-lhe alguma coisa. Á noite em casa de Maria José.
                - Ora! Vou para lá espera-la. Iremos todos. Não lhe diga nada. É uma surpresa. Quem é que pode esquecer uma filha, Dona Fulgência. Muito obrigado. Queremos que nos acompanhe, mesmo para levar-nos até lá e amenizar o impacto.
                Antes das seis e meia, Aninha empurrou a porta. Entrou pensando no encontro com Dona Fulgência. O que iria acontecer. Àquelas horas já deviam saber onde ela estava. Entrou pela saleta e parou embevecida. Não era possível. Toda família ali a sua espera. Não teve outra emoção maior em toda a sua vida. Valeu-se dos olhos e, parada, começou a chorar. E foi então aquela revoada. Cada um que a quisesse abraçar primeiro. E por fim, choravam todos.
                - Bem, minha gente. Sei que choram de alegria, mas vamos parar, disse Maria José. Fique ai e conversem à vontade. Matem as saudades e enxuguem os olhos. E depois do longo colóquio, Aninha acompanhava, para casa, aqueles que jamais a haviam esquecido.
                Aninha reencontrou com a felicidade. E, intimamente, jurava vingar-se. Ninguém havia de saber, mas o ordinário do Marêncio, não enganaria mais ninguém. E meses depois correu a notícia: O Marêncio, que já andava com outra, inocente, aparecera, com três tiros e de olho virado. O irmão de Aninha contara-lhe, em segredo, como havia sido. Ouvi-te que teria de ti vingar.
                - A tarefa era minha. Acovardou-se e chorou. Aumentou o meu ódio. Dei-lhe um passaporte para o inferno.
                - Obrigado, mano. Merecia mais do que isso. Outras estão livres daquele canalha. Meus parabéns. Abraçou o mano e olhou-o com um sorriso feliz.


*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

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