segunda-feira, 20 de outubro de 2014

APOLINÁRIO

APOLINÁRIO


João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


            O sitio Dois Riachos, era uma bola do ouro. Terras férteis, muita água, um trecho de mata com madeiras de lei, poucas declividades e com um clima agradável.          A família de Apolinário vivia ali há muitos anos e não pensava em sair. As colheitas propiciavam-lhe uma vida tranqüila e para quem não era ambicioso bastava. No entanto, Apolinário não havia nascido para a vida do campo e muito menos para o trabalho.
            Sua propensão era viver na cidade ocupando-se em qualquer coisa que não lhe marcasse as mãos de calo ou lhe aferventasse o juízo. Era uma boa vida. E como não encontrava uma saída para justificar-se, preferiu fugir e deixar um bilhete lacônico dizendo para onde ia e que não se preocupassem com ele. Iria procurar trabalho e viver de acordo com sua inclinação. Não se acostumava com a rotina da roça.
            - É isto mesmo, mulher, deixa o rapazinho seguir sua vocação.
            - Mas tenho medo que passe fome, não tenha onde dormir ou venha a se tornar um marginal.
            - Ora, Zélia, pensa pelo lado bom, mulher. Poderá ter tudo isso, melhor do que aqui. Pelo menos é o que ele julga, a vontade foi dele e se não encontrar o que deseja e sonha, brevemente estará de volta, arrependido e humilhado. Já te falei mulher, deixa o Apolinário pra lá. Aposto como não irá se perder. Não quer continuar agarrado na barra da tua saia.
            - Nem de tuas calças, também. Mas tenho saudades e aqueles receios de que falei.
            Apolinário bateu ceca e meca para encontrar o que queria. Um lugar onde pudesse viver sem fazer força. Logicamente não seria fácil viver como ele desejava. No entanto, a persistência abriu-lhe uma porta. Porta da casa de D. Albertina da Conceição, senhora já de muita idade e sem uma pessoa que lhe fizesse os mandados e ajudasse no arranjo diário da casa. Mulher franzina, nem alta nem baixa, com muita saúde e bastante dinheiro para ter uma vida folgada. Enjoava-se, todavia, de ter que fazer compras e de ter que andar sozinha, inclusive para a igreja. Apolinário parecia-lhe a pessoa que ela procurava. Menino simpático, de cor trigueira e olhos vivos. Havia-se cansado de dar empregos a mocinhas que frequentemente a deixavam sós pelos namorados. Explicou seriamente a Apolinário que o queria como companhia. Se não gostasse deste jeito, poderia desistir. Só sairás com o meu conhecimento; pago tanto por mês e terás comida e dormida a vontade. Era isto, exatamente o que Apolinário queria. Pequenos serviços, sem canseira, cama macia e alimentação farta. Agora a boa vida dependeria dele. Andar certinho, chegando a tempo, sem desculpas. Procurava adivinhar os pensamentos de D. Albertina, acompanha-la com dignidade, guardando o devido respeito.
            A intimidade poderia causar excessiva liberdade e originar problemas. O certo mesmo era guardar a necessária distância. Que os gestos, as manifestações de agrado partissem dela! Mesmo assim não se aproveitaria para ir além dos limites de sua condição de empregado ou serviçal. E dava-se muito bem com essa conduta.
            Mas certo dia D. Albertina chamou-o para pertinho de si.
            - Senta-te aqui, Apolinário. Quero falar-te. Sabes que vivo só e te dei emprego para me fazeres companhia. No entanto, percebo que vives um tanto distanciado. Quero que seja uma pessoa da família. Não um filho, mas um amigo fiel. E vou dizer-te: Sou sozinha, uma mulher nesta idade, sem filhos, sem irmãos, sem parentes próximos. Tenho minhas amizades, mas falta-me quem se aproxime mais de mim, ouça minhas confidencias, e, além disso, tenha para quem deixar o pouco que tenho. Portanto, se me fores sempre leal e amigo, deres-me a assistência que necessito, serás o herdeiro dos meus bens. Farei testamento no qual ficarão especificados as condições e pelas quais tudo te pertencerá. Não verás o testamento e, assim, terás que te guiares por ti mesmo. Certamente que não terás nenhuma obrigação de continuares comigo. Talvez estejas cansado de mim. De um jovem para uma velha como eu há uma distancia muito grande. E não quero exigir de ti qualquer sacrifício. Vejas bem. A decisão será tua.
            - Ah! Meu Deus, jamais poderia ser tão feliz de outra forma. É pena que não queira ser minha segunda mãe. Nunca poderia me queixar do destino ou do meu anjo da guarda. Sempre fui menino pobre e sem ambição. É certo que em casa, apesar disso, não me faltava o essencial, mas fervilhava dentro de mim o desejo de sair, conhecer outro mundo, tentar a vida de outra forma. Enquanto meus irmãos trabalhavam ajudando meu pai, pensava que aquele não era meu ambiente. Quem me chamava eu não sabia. Mas agora sei. Era a Senhora que me buscava sem me conhecer. Era uma coisa que tinha de ser. É Pena que talvez não seja a pessoa certa que procurava.
            - Por que, então. Desde que te conheci e estás em minha companhia parece que nunca mais me faltou nada. Teria muito desgosto se me deixastes. O que pretendo é que não te enjoes de mim. Isto encurtaria meus dias de vida e me sentiria perdida. Não te quero pelos trabalhos que fazes para mim. É pela tua presença e pela confiança que tenho em ti. Só o saber que não estou sozinha e que tenho por quem chamar com quem conversar e a quem contar confiantemente as coisas de minha vida, enche-me de conforto moral. Nunca soubeste o que é estar só, ouvindo apenas ruído do mundo lá fora. Parece tudo tão estranho tão distante que nos assusta. Não tive filhos. Durante vários e vários anos considerava isto uma dádiva do céu. Algumas amigas pareciam até ter inveja de mim. Filhos davam muitas preocupações. Tinha meu marido, o Gaspar que me dava tudo e isto me bastava. Mas, que ilusão, a minha. Gaspar Deus levou sem me dizer nada. Pegou-me de surpresa. Quando abri os olhos estava só, como uma criatura no meio de um deserto, sem ter a menor noção dos pontos cardeais da vida. Olhava para um lado, olhava para outro e tudo era mesmo um deserto. Não tinha ninguém a meu lado para me ver, ou me amparar. E continuei assim. E por que. Porque não me deram um filho apesar de tanto tempo de casada. Aquilo que me parecia um prêmio enquanto era uma moça e estava ao lado de meu marido, passa a ser o meu desalento. E certamente chorei porque nunca tive que me chamasse de “mamãe”. Quando se é moça, o mundo é um marido, cheio de ilusões, de vaidades, de doces esperanças, mais vai mudando inteiramente com a idade. São etapas da vida. Mudam os sentimentos, os desejos são outros, as ilusões vão se apagando e, principalmente, as vaidades desaparecem. Pequeninas coisas eram bastante para nos mudar de conduta, e só e só pela vaidade de moço. Hoje, isto é, com o tempo, a gente vai perdendo esses pruridos de mocidade e se identificando com a realidade, enxergando o mundo como ele realmente é. Não há quem possa com a ação do tempo. E, alias, geralmente não se lhe dá o valor que tem. Imagina se as pessoas tivessem de morrer com as mesmas ilusões da mocidade. Mas o tempo vai adaptando a gente para o final. Vai amortecendo-nos aos poucos, como se nós fossemos, aos poucos, nos desprendendo da vida. E muitos chegam até á caduquice, ao esquecimento desejando até ir-se o mais breve possível. Há pessoas jovens, que se suicidam, mas não é nem por loucura, nem por coragem. É por uma profunda depressão mental. A pessoa sente-se desiludido, abandonado, vencido e vai caindo, caindo até tentar contra sua própria vida. Doido não se mata. É corajoso, enfrenta qualquer situação. A humilhação ou o desespero também podem conduzir ao desatino.
            A humilhação é anticristã e anti-humana. Nunca humilhe ninguém Apolinário, especialmente às pessoas pobres e desvalidas. Não há nada que possa doer mais. Quando não se pode dar uma esmola a quem nos pede, fala-se com humildade, com doçura, como que fala a um bom amigo. Pedir já é uma humilhação e sabe lá o que é um velhinho, uma criança pedir por que está com fome. Nem sabe e espero que jamais venhas, a saber. Quem tem e nega uma esmola a quem realmente precisa Apolinário, não tem coração ou não tem medo do tempo, do amanhã, do que nos aguarda nesta vida de incertezas, com o tempo nos seguindo, sem esperar por ninguém. Quando eu era uma mocinha e me casei, não tinha a menor noção dessas coisas parecia que minha felicidade era eterna. Tudo um sonho dourado. Mas o tempo que não perdoa ninguém foi indo, indo, carregando em cima da gente, perdi meu marido, meus parentes mais próximos e terminei só como me encontrastes. E pensas que o tempo se satisfaz com isso! Vai caminhando, me alquebrando dia a dia, me consumindo. E faz com todas as mesmíssimas coisas. Não quero te assustar. Quero é advertir-te. Podes confiar em todo mundo, mas não confies neste monstro, mudo impassível e incansável e que não quer saber de quem vai, nem de quem fica. A marcha é a mesma em cima de novos e velhos. Muitos param no caminho mesmo sem que estejam cansados. E o tempo nem olha para traz para ver quem caiu quem ficou.
            Inventaram o relógio para marcar o tempo e a vida da gente. Mas o tempo não quer saber disso. E continua, dia e noite devorando tudo. Felizes os que conseguem envelhecer. Se as pessoas nascem e crescem e as sementes germinam pouco, nada lhe interessa. Não para nem nos dias de enterro:
            Esconjuro-te, safadório!
            Pois é, Apolinário ficará comigo se quiseres. Gostaria que sim. Mas talvez não te agrade a companhia de uma criatura que o tempo tem se encarregado de envelhecer e tem medo da solidão.
            Mas vamos deixar o tempo para lá, que ninguém pode com ele. Ficarás comigo se quiseres, é certo, mas gostaria disso, foi uma fortuna encontrar-te.
            - Bem. E aonde iria eu se encontrei tudo quanto desejava. Seria um ingrato e um tolo ao mesmo tempo. O que tem feito por mim, jamais poderei saldar. Quanto à oferta que me faz, é coisa a parte. De mim mesmo a recusarei. Nem tenho merecimento e seria um pobre de espírito se tivesse de ficar ao seu lado visando qualquer recompensa maior do que essa que tenho recebido. Tudo o mais será generosidade de quem me tem feito tanto bem. No entanto, a senhora mesma falou que a gente vai mudando com o tempo. Certamente mudarei também. Não para deixá-la, mas por outras razões naturais. Já estou ficando um homem e começo a sentir que algo está acontecendo comigo. E se amanhã pretendesse me casar. Tenho guardado quase tudo que recebi até hoje. Além disso, começo a gostar de uma mocinha que me parece gostar também de mim.
            - Para, para aí. Não deve dizer mais nada. Sempre pensei também nessa possibilidade. Se não te havia falado é porque te via ainda tão moço. Mas, isto seria o complemento de minha vida. Ter também ao meu lado uma mulher que tivesse filhos para alegrar a vida de uma velha que não teve a sorte de tê-los. Casar-te-ás quando quiseres e eu passarei a ser tua hospede nesta casa. Não digo que te apresses, mas qualquer dia é dia para realizares este teu belo sonho. Quero apenas que seja uma moça que me compreenda e se torne para mim, uma boa filha. Só isto. Decerto não lhes faltará nada, inclusive minha maior afeição.
            Apolinário completara sua felicidade. Tinha que se derreter para corresponder a tanta generosidade. Teria que ir visitar a família, mostrar-se dos pés á cabeça, ser abençoado pelos pais e abraçar os irmãos. Bem que alguma coisa lhe dizia que o seu futuro estava mais adiante. Se houvesse permanecido estaria igualzinho aos outros, trabalhando na roça, de mãos calejadas e sem perspectiva.
Contou tudo de sua vida e começou a ajudar a família, mandando-lhe mensalmente um pouco de seus rendimentos.
- É muito pouco, minha gente, mas um tostão em cima do outro vai formando uma pilha de moedas. Quem sabe se mais cedo ou mais tarde terei mais para somar é boa vontade de ajudá-los. Quem tem pouco, não pode dar muito. Mas a boa vontade faz do pouco muito. Era bom que fossem um dia conhecer minha segunda mãe. Dá-me muito mais do que posso dar-lhe em trabalho e carinho. Sabem o que é uma santa. Pois bem é ela. Mesmo assim morro de saudades daqui. Não há nada mais doce do que a família. Pais, mãe, irmãos. Fazem faltas em todo lugar onde não estão. Todos os dias, fico absorto olhando pros lados de cá, com vontade de beijar, abraçar, ouvi-los falar, gesticular. E antevejo tudo isto na imaginação. Mas, agora, tenho uma surpresa para dizer-lhes. Estou me preparando para casar.
            - Já, tão mocinho ainda, Apolinário.
            - É sim. Minha segunda mãe falou-me disso. Adoraria ter uma mulher em sua companhia. E não posso deixar de atender o seu desejo. Dar-me-á tudo.
            - E a moça?
            - Ah! Faz muito tempo que nos gostamos. Miudinha engraçada e viva. Por isto estou muito feliz. E quero que me dêem licença para noivar e casar. E aí então, Apolinário terá alcançado um de seus maiores desejos, fazendo exatamente o que minha protetora quer: uma moça em sua companhia e, sobretudo um filho para alegrar a casa e sua existência.
            - Ora, casa-te quando desejares. Só temos um receio, é que essa moça venha a perturbar o teu sossego e de tua segunda mãe.
            - Vai não, vai não. É uma pessoa tão simples, tão desambiciosa que dá gosto. Imaginem que não é uma moça pobre como eu e me quer tanto quanto eu a ela. Os pais possuem uma farmaciazinha e vivem bem. E além disso lá em casa não lhe faltará nada. Mas, se houver qualquer desentendimento ou desagrado, tomo casa e passarei o dia com a minha benfeitora. Mas isto não irá acontecer. Uma e outra se harmonizarão muito bem.
            Apolinário já ia voltar. Fazia os preparativos quando o pai o chamou.
            - Olha, terás que levar alguma coisa para tua segunda mãe. Laranjas mimo-do-céu, um cacho de bananas e inhames. Uma pessoa assim merece agrado.
            - Lá não falta nada.
            - Não é que falte Apolinário. O que vale é a lembrança, o presente. Estas pequenas coisas cativam as pessoas.
            - É mesmo. Não me ocorria este sentido das coisas. É vivendo e aprendendo.
            - Veras como ela vai adorar. Não se deve somente receber. Ás vezes um punhado que se dá vale muito mais do que um celeiro cheio.
            Apolinário entrou em casa como se estivesse enfiando as mãos vazias num tesouro. Levava as bênçãos dos pais e os abraços dos manos e recolhia-se á mais prazenteira sombra do teto que o acolhera nas suas horas de receios e dúvidas. Dona felicidade entrara abraçada com ele. Ninguém poderia ser mais feliz. Duas mães carinhosas, uma noiva á sua espera e mais tarde os sorrisos de uma criança a chamá-lo papai. Que bom.

Em 30.07.86


*Este conto pertence ao livro Vidas Nordestinas, no prelo.

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