quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

ABIGAIL


A B I G A I L*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
                       
Nunca foi fácil viver em cidade pequena sem fuxicada. Uns vivem com os olhos em cima dos outros farejando qualquer coisa para alimentar as fofocas. E a turma de choque já era por demais conhecida e temida. Que se saiba, só escapavam mesmo os santos da capela e isto mesmo com exceção do coitado do Santo Antonio que nem sempre podia fazer o milagre de casar certas bruxas desenganadas pela feiura e pela ação prolongada do tempo. Coisa mesmo sem jeito.
Abigail, mulher nova, atraente e espevitada; de vida livre. Andava na visada, como se fosse sempre uma  novidade: uma ameaça, um pedaço de mau caminho. Procurava defender-se, mas a fiscalização não lhe dava tréguas. Abigail, no entanto, tomara uma decisão de enfrentar qualquer tempestade que surgisse. Ela mesma não corria atrás de ninguém.
Recebia os que a procuravam sem perguntar se eram solteiros ou casados. Isso era problema de cada um. Considerava-se um bem público e dizia mais das vezes que uma cidade sem mulheres da vida, não é cidade moderna e nem próspera. O número de conquistas entre as famílias era grande e inevitável. Moças que eram enganadas, mulheres casadas desviadas, separações, desquites, uns por cima dos outros. A turma, não tendo onde descarregar a “consciência” apelava  para o ambiente familiar.
Era ela, por tanto, um bem público, de maior importância. Só os cegos não enxergavam isto. Por outro lado era uma profissional do amor, a profissão mais bela deste mundo. E  era justamente por isto que tanto lhe procuravam.  Não tinha, pois, culpa nenhuma. Falavam dela por despeito por não saberem o quanto se sacrificava para dar felicidade e prazer a uma cidade inteira.
Pela madrugada Abigail acordou pensando na vida que levava no meio daquela gente ingrata e que tanto se preocupava com os seus amores livres. Era coisa dela, não estava tirando pedaço de ninguém. A porta de sua casa estava aberta e lá entrava quem desejava. Ganhava sua vida com os encantos que Deus lhe dera e se as outras não faziam o mesmo é porque tinham uma forma de vida diferente e não as censurava.  E nem tinha razão para fazê-lo. Preferia esquecer essas coisas, mas não a deixavam de vista como se fosse a pessoa mais importante de Pau Torto.
E se fosse; cada um que se cuidasse, pois estava destinada a rebolar-se mais, e a torna-se uma maior atração. Se a fizeram com um corpo apetitoso, se era uma mulher cheirosa, se fazia com os homens o que as outras não faziam, ora meu Deus, é porque já a haviam modelado para ser atraente e feiticeira.
Esperava que parassem com os reparos que lhe faziam, pois do contrário iria a rua balançar o corpo ostensivamente e em desafio.
Mostraria o que é mulher bonita que pode se dar a qualquer um, sem limitações impostas pelos preconceitos sociais. Ora esta. Então queriam proibi-la de viver sem seguir sua vocação natural. Não fazia  escândalos, não conquistava filho nem marido de ninguém. Vestia-se como uma mulher honesta, sem artifícios exagerados.
        Não andava mostrando o corpo nem suas intimidades. E porque então a consideravam, uma  indesejada.
Quem quisesse conhecê-la na intimidade que fosse a sua casa. Na rua, não, sempre fora recatado e decente. Isso de balançar o corpo era o jeito de andar e somente via quem olhava para ela.
Fora  uma mulher desejada e amada, é porque possuía carne e espírito para isto. Se lhe deram um sorriso brejeiro e uma maneira de olhar convidativo e provocante, não tinha a menor culpa. E qual é a mulher bonita que não gosta de ser vista. Tinha saliências e curvas que davam apetite, então nada mais natural do que se tornar agradável, mostrando-as.
Era como uma despensa cheia de manjares finos e apetitosos. O jeito mesmo seria não tomar conhecimento do que dissessem a seu respeito, mas como procuravam tirar-lhe o pão de todos os dias e denegrir sua reputação de puta que só fazia mesmo dar alegria à população da cidade, teria que reagir, embora sem ofensas a ninguém.
E Abigail  passou a vestir-se mais atrativamente; saia mais justa, um decote um pouco mais acentuado, boca mais vermelha e andar mais insinuante. Era para dar o que falar e matar a gana dos maldizentes. Ia de loja em loja, não perdia missas, enchia as ruas com a sua presença convidativa e retornava a casa, ao quarto de espera no qual fazia suas doações com requintes de concupiscência. Botava para quebrar.
Fazia questão de que lhe tirassem a roupa e fossem aos poucos  descobrindo os seus encantos de mulher que sabia mais do que ninguém simular um amor de perdição.
Quem a procurava uma vez ficava preso aos seus encantos. Ela própria não sentia prazer nenhum, mais primava em ser uma boa profissional.
Precisava de dinheiro e elevou a tabela, inflacionando o mercado dos amores.
Quando sabia que o amante era liberal, deixava a seu critério a gratificação e redobrava as caricias. Ia tudo as mil maravilhas, quando lhe vem o imprevisto. Surge-lhe o Abreu, cheio de grana, viúvo ainda em boa forma e lhe propõe sair da vida pública, ficar somente para ele, dar-lhe-ia conforto, amor e somente com uma condição: não receber mais ninguém, tornar-se uma mulher recatada, uma verdadeira dona de casa.
- Mas seu Abreu como ficará os meus amigos, sobretudo aqueles que não têm em casa, o amor que lhes dou. Coitados, gente com uma mulher turrona, sem graça, ciumenta e que recebe o marido por obrigação, matrimonial. Gente que vem aqui para se sentir feliz e conhecer como se pode morrer de amores.
Bem sabe como fica quem anda comigo. É como quem fecha os olhos e sonha o sonho mais lindo do mundo, e acorda no paraíso, com Eva ao seu lado, sem ao menos uma folha de parreira escondendo o fruto proibido.
Sabe bem o que é uma mulher sadia, bonitona, pernuda, envolvente, satânica, não sabe?
 Ninguém resiste e termina desmaiando como quem se embriaga com o verdadeiro néctar dos Deuses. Pois não é? Caso eu os abandone, poderão até tentar contra alguém, no caso, o senhor, por ciúmes. Creia que minha  felicidade consiste em fazer os outros felizes. Esta é  minha religião.
Quem se encontra comigo, esquece, ao menos por alguns momentos, o que a vida tem de desagradável. Divido-me para ser amorosa, só para isto, apagar tristezas, satisfazer desejos e ter a satisfação de ver que saem com saudades de mim. Sou como uma fruta vermelha e doce que todo passarinho gosta de beliscar. Venha cá quantas vezes quiser ou se sentir angustiado. Tenho remédio para todas as doenças. Uma mulher bonita, atraente, lhe dará a mesma coisa que eu. Tudo consiste em saber encontrá-la. Perdoe-me, portanto, não poder aceitar sua  proposta.
Quero  seguir minha vocação de mulher a quem Deus deu encantos para doá-los a quem precisa de carinhos e amor. E não é isto tão belo?      
- Mas, pense no seu futuro, em sua velhice quando chegar. Nessa fase ninguém mais a frequentará.
 – Nem eles, nem o senhor. Quando uma mulher como eu perde os encantos, atiram no lixo. Mas por isto mesmo estou me preparando para o futuro. Espero que a velhice não me castigue de surpresa. Já a espero como quem espera pessoa amiga e que não vai depender de ninguém.
Terei talvez, afetos de alguns companheiros. O senhor mesmo talvez fuja de mim.
- Não, Abigail, você seria minha boa e amável companheira nessa fase crítica da vida. Amortecida minhas paixões amorosas, veria a amizade gerada  pela convivência. É isto que acontece com  as pessoas que se amam de verdade. Jamais iria te abandonar ou esquecer-me de ti. Reflita, pois e me darás uma resposta. Seria muito desagradável ver-te depois sozinha curtindo uma terrível solidão.
- Dei  prazer e amor a tanta gente, que naquela fase talvez alguém venha a se lembra de mim, embora não tenha certeza disso. Tenho quase certeza de que com algum tempo, os homens fariam comigo o que fazem com as outras mulheres. Casam-se, enchem-se de ciúmes ou tornam-se indiferentes e vão buscar lá fora o amor de outras. E nesses casos seria melhor estar só.
Quantos virão aqui me procurar e  até tendo em casa belas mulheres. E quem sabe se cumprem com os seus deveres de esposo e de donos de casa. Queixa-se que não tem dinheiro e não tem, porque gastam com as mariposas. Mulheres que não amam nada  além do dinheiro que recebeu. Mas, afinal de contas, vou pensar em sua proposta, sem qualquer compromisso.
Passam-se os dias e Abigail sempre indecisa. Era um sinal  para o pretendente que pensava em perdê-la. Seu coração apaixonado já começava a esvaziar-se, até que  Abigail deu-lhe uma vaga esperança.
- Espere mais um pouco, enquanto vou despedir-me dos amigos que tanto me querem.
E foi indo assim, até que Abigail, lembrando-se da velhice que fatalmente chegaria, teve medo da solidão, fechou a casa e foi viver com Abreu.
           
Em 10/07/1986  
           
*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
                                                         
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  

Nenhum comentário:

Postar um comentário