quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

DOIDICE



DOIDICE*

João Henriques da Silva
(In Memoriam – 20/09/1901 – 16/04/2003)


Dr. Sabino, por causa de mulher ficou com o juízo fraco. Antes disso, era um sujeito completamente normal. Desejava as mulheres, mas, não tinha coragem de abordá-las, até que num dia apaixonou-se desesperadamente por uma mulher casada que não lhe saia do juízo. Moça, bonita e, sobretudo honesta. Além de não lhe dar a menor confiança, Sabino tinha medo do marido a ponto de não querer nem vê-lo. Assustava-se até quando ouvia pronunciar o seu nome.
            Fincava-se nas esquinas para vê-la passar. E como ficava só na imaginação, os pensamentos foram se acumulando no juízo e baralhou tudo. Abestalhado, perdeu a noção do tempo e a família preocupada mandou interna-lo para tratamento. Mas não melhorava, mesmo porque desconheciam a causa primordial. Como não se recuperava, mandaram-no de volta. Sabino não era propriamente um doido. Apenas um abilolado por paixão recolhida.
 Depois da volta, os amigos encarregaram-se de fazê-lo mudar de convivência e desconfiado de que poderia ser algum problema íntimo, algum vício depressivo, resolveu levá-lo a uma pensão de mulheres e fazê-lo sair com uma. E depois de uma demora excessiva, Sabino apareceu calmo e tranqüilo sem qualquer sinal de perturbação mental. Lúcido, lúcido, rizonho e gratificado. Fez questão de saldar a conta, não permitindo que alguém enfiasse a mão no bolso. – Esta não, a despesa é exclusivamente minha. Vocês me ensinaram a viver. Pois não foi, companheiros. Andava metido no inferno de uma paixão e, agora, estou flutuando num lago azul no meio dos cisnes. Um santo remédio.
 Mas o diabo é que Sabino pensou que teria de tomar todo o remédio do laboratório da pensão de D. Eva. E enfincou-se nele direto. E como não era lá muito forte, foi enfraquecendo dia a dia, até quer birutou de novo. Fiou-se apenas no gosto do remédio sem cuidar de seus efeitos colaterais. E o pior é que não enjoava. Mudava de frasco e achava que cada um era melhor do que o outro. De tanto usá-lo caiu numa depressão tal que já não tinha mais força para beber.
E certo dia Sabino desapareceu. Foi encontrá-lo em casa, espichado numa cama, pálido, magro, desiludido.
            - O que é isto, Sabino!
            - Doente, muito doente, completamente leso.
            - Foi alguma comida?
            - Foi e não foi, pois tomei como remédio. Creio que exagerei na dosagem. Era um frasco por dia e até dois e três.
            - E qual?
            - Saúde da mulher, vidro grande. Mas o bicho caiu na fraqueza. Também o diabo desses laboratórios fabrica um remédio saboroso de mais, que da vontade de engolir o frasco. Queixo-me também da D. Eva. Todos os dias me apresentavam com embalagens diferentes. E assim, em vez de me fortificar, caí nessa leseira que nem me deixa ficar em pé.
            - Pois muda de regime, companheiro. Não vás mais a farmácia de D. Eva. Ela negocia com esses artigos e quer é faturar.
            - Mas, como, se já estou viciado até a raiz.
            - Pois isto é um vício perigoso. Estás vendo o resultado. Caso voltes ou escapes desta, passa a tomar de 15 em 15 dias e olhe lá! O remédio que estás tomando é mesmo que sanguessuga. Chupa o sangue e todas as vitaminas.
            - Então foi isto que aconteceu. Também fui me confiar na D. Eva. Nem me lembrei que não era médica. Mas é engraçado. Nas primeiras garrafadinhas a reação foi positiva. Eu acho que trocaram o rótulo, ou o conteúdo e por isto passou a fazer efeito negativo. Mulher é uma coisa misteriosa. Cura e mata, dependendo da dosagem. E sabem de uma coisa, todo remédio deveria ser amargo.
            Sabino, aos poucos se recuperou e percebeu que deveria ficar no meio termo. Ser cauteloso. Nada demais, nada de menos. Os amigos, então o aconselharam a casar-se, ter um lar próprio e uma companheira ao seu lado.
            - Quem, eu. Deus que me livre. Basta ao meu lado uma garrafa de remédio. Bebo em vinte e quatro horas... E cairei nesta novamente.
            - Olha, casa-te com uma mulher feia, sem atrativos. Assim não excederás.
            - Assim, não. Passaria a tomar um purgativo. Remédio que pelo menos tenha um bom rótulo. Tenho alergia à mulher feia. Aliás, quem as fez, ou tinha muito mau gosto ou era burro e perverso. Feiura é um castigo. E por que castigar uma mulher. Isto não se irá entender nunca, nunca. Deve ter sido um péssimo pedreiro, sem imaginação. Ruindade também, porque não havia justificativa honesta para modelar feiura  Quanto não sofre uma mulher feia, diante das graciosas. Eu, que sou um boboca, não teria cometido semelhante barbaridade. Já pensaram se o mundo fosse feito só de mulheres bonitas e homens fortes. Mas não. A engenharia desses fabricantes de gente chega ao cúmulo de mandar para o mundo, um desmilinguido de minha marca. Da nisto. Fraco, meio abilolado, a fazer besteiras à vida toda. Se o material não prestava, atirasse no lixo e não aproveita-lo para engendra uma peça desparafusada como eu e tantos outros que andam por aí a sofrer amargas desilusões. Quando o corpo é fraco, a mente também o é. E fazem isto com, a maior tranqüilidade, como se estivessem fazendo uma obrar prima...
            - Também não é tanto assim não. Praticamente não existem mulheres feias. Deus fez mulheres para todos os gostos. Quem ama o feio bonito lhe parece. É um velho conceito. Há tanta gente casada com mulher feia e vive tão feliz. Além disso, é o tipo de mulher para homem ciumento. Pode deixá-la em casa, solta-la na rua, sem perigo de ser atraída. Vai e volta intacta...
            - Mas, mesmo assim, há exceções. Olha aí a D. F... Cara de bugre, mas o corpo é um desafio e tem pintado o diabo.
            - Mas isto é um caso ou outro e mesmo assim o marido não acredita. Considera impossível. É conversa do povo...
            - De qualquer forma, mulher somente bonita.
            - E se se bandear. Todo mundo anda de olho nela. E há muito sujeito atrevido...
            - Comigo é na dureza. Ou anda na linha ou irei para a cadeia.
            - Ora, quando vier, a saber, meu Deus, já estará ornamentado...
            - Sei que irei morrer muito cedo. O veneno das mulheres acabará comigo. São umas sanguessugas. Não há sangue que chegue.
            - Morrer nada, Sabino. Mulher nem tem veneno, nem mata ninguém. A gente é que morrer por gosto, pelo menos de paixão. E o remédio é não se apaixonar. Cria juízo, modera o rojão e terás vida longa.
            - Sabes de uma coisa curta e certa. Não irei mais atrás desses demônios. Já estou quase um frasco vazio. Só tem de mim a casca. E foram elas...
           
Em 23.7.86 (1986)
*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.


           




Nenhum comentário:

Postar um comentário