sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

ADELAIDE


A D E L A I D E*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

             Adelaide ficou sem mãe no dia que nasceu e foi criada por uma tia viúva que não tivera filhos. Dois anos depois o pai casou-se e Adelaide recebeu assim, uma madrasta que para ser agradável ao marido, pretendeu reavê-la, sob mil promessas de que adorava crianças e de que filha criada por tia seria mimada demais, e terminaria perdendo o amor ao pai.
            Além disso, a menina deveria estar dando trabalho à cunhada sem mais motivo. Mariano acreditou na sinceridade da esposa e largou-se para a casa da irmã com o propósito de trazer Adelaide para sua companhia. Não havia mais razão para deixa-la com aquela preocupação, quando poderia ficar aliviada da tamanha responsabilidade. Adorava a filha e deseja tê-la pertinho de si.  
            Dona Lucimar fez dura oposição e de forma nenhuma largaria Adelaide, sua única e boa companhia. Não que lhe desse, naturalmente, qualquer assistência, mas pela afetividade que ligava a pequena Adelaide.
            De outro lado, explicou a Cidrônio, seu irmão, que era muito raro uma madrasta ter amor aos enteados, principalmente a partir do nascimento do primeiro filho. E não queria que Adelaide viesse a sofrer ingratidões e ela própria viesse a ser motivo de discórdia entre o casal, o que era muito comum, em face de tratamento desigual; enteada e filho legítimo.
            - Afora isto, Cidrônio, Adelaide está aqui onde poderás vê-la a qualquer momento e estou criando e educando como tua filha. Não a quero tomar e creio que o futuro dela é mais auspicioso ficando onde está.
            - É verdade, mana, mas não quero desencantar Almira que não fala noutra coisa e irá pensar que não confio nela.
- Olha Cidrônio, são essas santinhas mesmo que se relavam mais tarde as piores madrastas. Não te dou Adelaide.
            - Mas ela é minha filha e quero tê-la comigo, embora sem saber como te agradecer tudo quanto fizeste até hoje por Adelaide, mas não tenho alternativa. E estou certo que estou a fazer-te um beneficio tirando-te este peso.
            - Olha Cidrônio, estás muito enganado comigo e com o teu ato. Adelaide faz parte da minha vida, dos meus dias, horas e minutos. Será que não tem sensibilidade, não compreende que isto é um capricho de tua mulher, ou talvez uma artimanha. Sou eu a mãe que Adelaide conhece e é ela a filha que tenho. Sou tua irmã, vivo só e tu tens uma companheira. Vamos fazer um teste. Pergunta a Adelaide de quem ela gosta mais. De mim ou de ti, se quer ir ou não. E ela então ficará com quem mais ela dedicar afeição.
            - Não, mana, vim para levá-la e é o que vou fazer. Já te disse que não desejo contrariar Almira que me tem sido tão boa e carinhosa.
- Quer dizer, então, que irá levá-la à força? Arrancá-la dos meus braços e de meu coração. Não compreendo como me fazes isto. Levarás a força e para sofrer somente. Não te peço mais nada. Faça o que fizeres, mas deixarás de ser meu irmão, pelo menos por muito tempo. Jamais pensei que esse amor por Almira, fosse maior do que o amor por tua irmã e tua filha. Vá leve e não me dês mais notícias. Tomarei outra criança para criar. Não quero me sentir mais tão sozinha quanto antes. Espero que não te arrependas e nem faças tua filhinha sofrer nas mãos de tua santa mulherzinha, do coração.
            Tenho mais experiência da vida do que tu. Conheço as voltas que o mundo dá e as curvas dos caminhos da vida. Já vi muito bem o que é uma madrasta com filhos. Não divide o pão, nem os carinhos igualmente. E tenho pena de ti e muito mais deste anjinho já há mais de dois anos que me chama de mãe. Não quero vê-la sair. Também não irei juntar o que lhe pertence. Vai, entra pega tudo que é dela, coloca em sua malinha. Só não levarás o amor que tenho por Adelaide, nem as minhas saudades.
            Isso ficará comigo. Deverias conhecer melhor a raça de tua mulher e esperar mais para conhecê-la. Mas vai, vai-te embora, antes que aumente o meu desespero. E esqueça tua mana Lucimar, aquela que tomou nas mãos Adelaide na hora que ela viu a luz do dia e acariciou e amou até hoje. Sabes que não tive filhos e que tanto queria. Mas não entendes nada de amor maternal. Não me martirizes mais. Pega esta inocente que está aqui agarradinha comigo e corre com ela para os braços de sua madrasta, egoísta e quem sabe o que mais.
            Cidrônio baixou a cabeça como se estivesse pensando as escondidas, e de repente, entesou-se, tomou a filha nos braços, acariciou-a, beijou-a e foi de volta sozinho. Sabia que, em casa, encontraria uma tempestade, tais as recomendações que lhe fizera a mulher.
            Não era para voltar sem Adelaide. E de certa forma, a recomendação havia sido uma ordem. Não se casara para brincadeira. Haviam de fazer o que ela queria e que se pensasse fazer. Cidrônio, durante toda a volta reunia coragem e desculpa para justificar o fracasso de sua ida a Santa Clara.
            Era um apaixonado pela mulher e não queria sensibilizá-la. O caminho foi encurtando, encurtando e quando menos pensou estava a porta de casa, sem Adelaide e sem uma explicação satisfatória. A mulher avistou-o ao longe e já antegozava a chegada da menina.
            Mas à medida que Cidrônio se aproximava ia esfriando. Não via a menina. E as veias do pescoço foram engrossando, engrossando como se nelas estivesse concentrada sua decepção e sua raiva.
            Cidrônio, nem tivera tempo de se apear do cavalo e até parecia não ter forças para isso. Estava sucumbindo.
            - Cadê a menina, Cidrônio?
             - Que menina?
            Estava tão atordoado que nem sabia o que dizer. Foi se apeando lentamente e procurando articular justificativa.
- Que espécie de homem é você, que vai buscar a própria filha e volta sem a menina. É incrível. Esperava com tanta ansiedade e me chega de mão abanando. Será que eu tenho que ir buscá-la. Aliás, deveria ter ido.
            - Olha Almira, foi minha irmã que a criou deste o primeiro dia e não pode se separar dela. - Lamentou-se de uma maneira de doer até os ossos. - Vivia sozinha, criou amor pela menina e então resolvi deixa-la lá.
            - Sim. Eu então, que posso ficar sem ela. Antes de me casar já pensava na menina. Tê-la com a gente, alegrando a casa. Também fui logo me casar com um viúvo sentimental. Quem, afinal, é o pai de Adelaide. És ou não tu, Cidrônio?
            Cidrônio foi se arrependendo aos poucos até que se indignou com aquele “fui me casar com um viúvo”. Havia ido além de sua tolerância de marido.
            - Pois é. Deixei-a lá e não irei mais tentar trazê-la. E fique logo bem claro que nesta casa quem dá a ultima palavra é o viúvo com quem você se casou. A filha é minha, e está otimamente em casa da minha irmã. Deixei-a amarrada na saia dela como estivesse adivinhando ou entendo que queria tirá-la de lá. Espero que você tenha filhos e os crie também. Quanto a minha mana, ficara criando Adelaide. E sabe da última, vamos por um ponto final no assunto.
            - Mas...
            - Mas, coisa nenhuma. Você vai ver quanto vale um viúvo. Gosto de combinar as coisas, mas não aceito imposições. Tome nota. E depois quem sabe se você se daria bem com minha filha. Ciúmes da primeira mulher, inexperiência com crianças e talvez desarmonia entre nós. Não suportaria ver minha filha magoada por qualquer forma e ela está muito feliz em companhia da minha irmã e lá há de ficar. Cuidaremos de nossos filhos quando aparecerem.
            - E quem foi que lhe disse que quero ter filhos. Prefiro não os ter.
            - Ah! É assim. E então porque queria minha Adelaide. Algum capricho seu apenas. Pois olha Almira, creio que um casal sem filhos é como uma árvore sem flores sem frutos. Não era isto que pensava de você quando noivamos e nos casamos. Desejava, sim, um lar com alegria e a graça de filhos, enchendo a casa de alegria e estreitando cada vez mais os nossos laços matrimoniais.
            Francamente que estou estranhando você, aquela moça que sorria para mim e me enchia de doces esperanças. Chego a não acreditar no que você diz. Talvez seja simplesmente uma forma de manifestação de revolta por não ter sido atendida. Será que estou certo?
            Não adianta simulação para meu lado, e muitas menos atitudes caprichosas. Será que teremos de voltar donde vimos. Cada um para seu lado. Quem não quer ter filhos não se casa e por certo desconhece o que é o amor.
            Os filhos são uns traços de união entre os pais. Um pouco de vida de cada um. Num lar com filhos não há tédio, nem solidão. Sem filhos é como ponto final na existência de um casal, uma vida sem perspectiva e sem horizontes. Se assim pensas e desejas, até quando durará nossa união?
            - Será que não percebeu que um casal sem filhos não tem preocupações, dorme tranqüilo, viaja, passeia, diverte-se livremente. Sai quando quer, volta quando entende de voltar. E os doze meses de gravidez, a mulher deformada, com aquele barrigão pelos ares, pesadona, enjoada. O homem fica por longe, achando até graça, com ótimo apetite, zombando do tempo.
            - São os preparativos para ser mãe, a coisa mais bela do mundo. É como uma rosa que vai desabrochar ao amanhecer. Agora se você não tem essas sensibilidades, Deus que a ampare. E você já pensou uma velhice sem o carinho de filhos. Envelhecer sem ter quem nos pegue na mão, sem a doçura dos netos chamando vovô e vovó. A solidão de um envelhecer dentro de uma casa vazia. Francamente, Almira, você me espanta e desalenta. Parece-me um galho seco á margem de um caminho sem sombra, com uma ave agourenta nela pousada. Vou repetir a você uma pergunta, Almira. Por que queria Adelaide aqui. O que pretendia fazer?
            - Pensava, apenas em ser agradável a você. Nada mais. Poderia ter sido um dos motivos do nosso casamento. Mas não iria tratar com desprezo a menina.
            - É bem certo o velho ditado que Deus escreve certo por linhas tortas. Minha irmã tinha razão. Não pensei que ela fosse tão arguta. Livrou minha filha dessa falta de amor maternal de uma mulher sombria como você é. Mas vou prevenir você, Almira. Iremos ter filhos e vou ensiná-la a ser mãe. Vá se preparando.
            - Não é mais necessário. Já estou grávida. Foi um descuido meu certamente. E na verdade já começo a sentir mudanças de comportamento. Começo a sentir desejo de ter filho e certo amor por essa frutinha verde de nosso amor.
            - E porque não me dizia nada.
- Só e só para certificar-me se era real o que começava a sentir. Achava que não seria possível conforma-me em ser mãe, passar por tudo aquilo que já citei. Andar de barrigão empinado durante seis ou mais meses, e ter que enfrentar as dores e o medo do parto. Mas, em vez de sentir pavor, passei a sentir-me mais amorosa. Uma coisa esquisita que se passa na gente. E percebi, então, que minha arrogância, não resistia à doçura de ter um filho. Deixa, pois, Adelaide com tua irmã, que não teve filhos e tem muito amor para dar.
            Mas vou te pedir uma coisa: Dá-me um filho todo ano... O amor de mãe supera quaisquer sacrifícios. O amor que se faz da gente mãe, ensina a amar os filhos. Desde o momento que comecei a sentir dentro de mim a frutazinha gerada pelo nosso amor, comecei também a perceber que filhos são mesmo as cordas do coração. Verificou-se uma mudança radical em minhas convicções. Parece até que se espiritualizaram. Não me era mais possível fingir, tentar ser diferente das outras mulheres.
            - Mas, será mesmo para crer nessa mudança?
            - Verás quando vier o nosso primeiro filho. Sinto que ele me aponta o verdadeiro caminho para ser mãe. Tenho já pelo filhinho que está crescendo e vivendo dentro de mim, uma ternura incomparável.
            Almira, entretanto, desejava testar os seus sentimentos maternais. E foi visitar a enteada, uma quase filha. Querer bem a uma criança era como querer bem a todas elas. No entanto, constatou que aquela deveria ser diferente das outras, pois não lhe sensibilizou e, viu nela o amor de Cidrônio à outra mulher, e em quem ele deveria ainda pensar e ter suas saudades. Era exatamente como pensava o marido. Mas embeveceu-se o amor que a menina dedicava a sua segunda mãe. Teria cometido o seu maior erro se houvesse tirado daquele aconchego maternal.
            Adelaide, por sua vez, a via como um objeto estranho e talvez indesejável. Não mostrava qualquer simpatia pela madrasta. Por mais que Almira procurasse acariciá-la, mas ela se retraia.
            O pai observava aquela tentativa de relacionamento e, então, não tinha mais duvida de que a irmã teve razão em resistir. E se aquela aversão espontânea, natural, de Adelaide fosse resultado do influxo puramente pessoal de Almira.
            E se ela estivesse simplesmente fingindo com aquela encenação de querer muitos filhos e que na realidade fosse uma revoltada por estar imprevistamente grávida. Quem estava no intimo dela para saber?
            E os meses o tempo levou e Almira entregou as mãos da parteira, um garotão fornido e que era o retrato do pai. Almira dizia que queria e havia de ser uma menina. Como isto já mostrou cara de gavião de rapina. Não deixava de ser uma mulher caprichosa e egoísta.
            Preparava enxoval para menina, pois haveria de ser. Ela o queria. Amamentava o filho sem ódio e sem raiva, mas sempre pensando que deveria ter sido como ela desejava uma meninazinha de olhos verdes e parecida com a mãe.
            - Este aí é a marca de um viúvo, do viúvo com quem casas-te. E se brincares só sairá homem.
O pimpolho quando pegava o seio era para tirar a última gota. Agarrava-se ao peito, como um bezerro faminto. E chorava por mais.
            - Olha. Não aguento Cidrônio, esse teu filho. Guloso e ligeiro, capaz de sugar-me até o sangue. Se fosse uma menina seria moderada e mais delicada com a mãe. Este só tem jeito no feijão com farinha e carne de sol, ou no cuscuz com costelas de bode assada. Se aparecer outro bichinho deste terei que dar de mamar numa vaca holandesa.
            - É raça de viúvo Almira. Raça de elefante. Tome muito café que dizem que é ótimo para aumentar o leite.
            No ano seguinte a barriga de Almira era dobrada e ele tinha receio quer fosse um parto duplo, duas meninas. Segundo a experiência da parteira, não havia dúvida de que seria uma menina. E depois de um ano e dois meses, chamaram, a parteira. E foi a surpresa. Nasceram dois.
            - Duas meninas, não é minha comadre. Como me sinto feliz e realizada.
            - Sim, minha comadre. A parteira queria evitar que a comadre viesse à quebra o resguardo.
            - Está vendo ai, Cidrônio. Duas meninas. Tirei minha desforra.
            Cidrônio manteve a ilusão. - É ganhaste dessa vez. Estou contente. Desejava também que fosse uma garotinha. Vieram duas melhor ainda...
            - Quero ver minhas filhas, comadre.
            - Pois não.
           - Que pena, tem feições de homem, pelo que vejo, puxaram ao pai. Antes tivesse nascido homens, com essas carinhas, de macho. Era melhor. 
            - As afeições vão mudar minha comadre. Menino novo é assim mesmo. Os dois sempre empacotadinhos não permitia que Almira visse o sexo. E quando pós para mamar, eram mais gulosos do que o primeiro. Chegava a dar focinhada no seio. E Almira achava que eram mais agressivos que o menino. E lamentava-se de ter tanto desejado meninas e apareceram àquelas gêmeas de cara grossas, chamboqueironas, que jamais seriam duas mocinhas bonitas.
            No terceiro dia, foi assistir o banho das duas e teve raiva e alegria ao mesmo tempo. Descobriu a tramenha. Eram dois correiudos iguais ao primeiro. Estava justificada a ganância nas mamadas e aquelas caras de machos. Era melhor assim. Raiva por ter sido castigada e enganada. Zangou-se com a parteira que lhe havia mentido.
            - Nada não, minha comadre. Não queria que quebrasse o resguardo...
            - E o que vou fazer com esses três jumentinhos novos. Irão me devorar. Quero ver o Cidrônio que também me enganou.
           - É mulher, isso acontece com quem se casa com viúvo... E não são tão engraçadinhos. Alem disso não tem fastio. Adoro vê-los mamar. Toma muito café forte para não faltar leite. Da próxima vez serão duas mocinhas de teus sonhos, com duas carinhas de anjo.     
- Vou dar carne de charque e bacalhau a estas duas onças. Não há leite que chegue e olha como já estão os meus seios quando acabam de mamar. Parecem duas mochilas vazias. Vou ficar deformada. Pelo menos bota cabresto nestes dois jeguezinhos. E vou te dizer uma coisa curta e certa. Não chegarás mais perto de mim, para não nascerem mais dois cabeludos destes. Olha mesmo se isto é cara de gente...
           - É o teu retrato, criatura!...
            - Tu me pagarás.
         Não se tocaram durante meses e dias. Almira era caprichosa. Mas, arrependida chegou-se para perto:
            - Cidrônio!  Estou com tanta saudade de ti. E tu?
            - Menina ou menino?
            - Sei lá. O que vier...
            - Um ou dois?
- Mesmo que venha uma dúzia... 

*O conto pertence ao livro "Vidas Nordestinas", no prelo.

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