sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

CAPETA


CAPETA*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


            Desde novinho que o burrico do seu Atílio recebeu o nome de Capeta-Peludinho; e esperto como era a coisa pegou bem. Era mesmo um jumentinho engraçado e diferente dos outros e a melhor distração para os filhos de seu Atílio. Também  os coitados não tinham outra coisa para brincar, além dos cavalinhos de pau e os bezerros e vacas de ossos. Menino pobre é assim. Mas quando Capeta nasceu foi um mundo novo para eles. E os meninos que possuíam brinquedos comprados nas lojas, tinham inveja dos filhos de seu Atílio. E pediam aos seus pais que comprassem um bichinho daquele.
O sítio de seu Atílio, bem pertinho da rua, enchia-se da meninada pra ver Capeta de perto, alisar-lhe o pêlo cinzento e adoravam vê-lo mamar. O Capeta foi crescendo mimado, ouvindo as conversas da garotada já aprendendo muita coisa que ia guardando na memória. Com aqueles  agrados todos, a mãe de Capeta tinha medo de que lhes carregassem o filho. Tinha vontade de ir para longe, meter-se pelas caatingas a fora, para onde ninguém os visse. Seria a pior coisa que lhe poderia acontecer. Mas, tinha fé no seu Bizu, que o havia de proteger. Já o pai nem chegou a conhecê-lo, foi vendido como um traste qualquer e lá se foi. Deixaram-na só, quase as vésperas do bichinho nascer. Bicho é bicho. E gente não tem pena de bicho. Roxinho saiu daqui com peso no lombo e furado de espora. Nem ao menos teve tempo de se despedir. E ninguém sabe onde anda e nem advinha que o filho nasceu e é esse mimo de jerico.
            Capeta cresceu e teve sorte de ainda estar ali pertinho dela, já com uma irmãzinha igual a ele. Só que o pai era outro.
Capeta não era gente, mas sabia e imaginava muita coisa. Atendia pelo nome, não dava coice, carregava quem lhe punha nas costas, marcava as horas certinhas e nunca havia dado desgosto. Vida de pobre, mas não se maldizia. Capeta, entretanto, como bicho que se preza, não gostava de cachorro de casa. O lamparina era metido, cheio de intimidade, metia-se de casa adentro e no meio das pessoas como se fizesse parte da família. Chegava ao ponto de saltar portas e janelas, numa intimidade suja. Era bicho inimigo dos outros bichos. Latia com qualquer um e mordia quando podia. Capeta não podia falar, mas tinha vontade de dizer ao seu Atílio. - Não vou com a cara desse seu cachorro. E como é seu Atílio, como o senhor deixa esse vira-lata meter-se de casa adentro, enchendo tudo de pulgas e outras mazelas. Essa história de ser amigo do homem, seu Atílio, é conversa fiada. Já tem mordido crianças e até gente grande. E é arriscado matar alguém se for atacado de moléstia dos cachorros.
 E certo dia a raiva de Capeta aumentou. Estava dormindo e sonhando. Um sonho maravilhoso.  O sertão naquele ano estava roído pela seca. Não havia o que bicho comer. E a fome emagrecia o sertão. Pois bem, Capeta deitou-se pensando na bicharada varando as caatingas e catando alguma palhinha seca para enganar a fome.  Veio então o seu  sonho bom. O sertão todo chovido, os campos verdejantes até os confins do horizonte. Todos os bichos gordos, luzidios, ora deitados, ora passeando despreocupado, como se estivessem no Paraíso. Capeta com sua mãezinha e a mana, à sombra de uma árvore copada e coberta de flores, exalando um cheiro gostoso. E chamava-lhe a atenção, o fato de não ter bicho brabos que os perseguissem. A cachorrada havia morrido de doença feia. Era uma tranqüilidade. E Capeta perguntava a si mesmo porque não era sempre assim. O mundo verde, florado os pássaros cantando, os besouros zumbindo, sempre aquela coisa agradável. Uma vida sem cachorro...  Capeta deliciava-se com a beleza do sertão molhado e alegre, quando despertou com as batidas do fiota do cachorro, bem em cima dele. Levantou-se de supetão. Investiu contra  ele preparado para esmagá-lo. Mas o Lamparina pulou a janela e enfiou-se dentro  de casa. - Capeta te ensinará. Ainda pego este safado, tiro-lhe o sarro. Onde já se viu um pulguento daquele vir interromper o sono de um animal superior como eu. Um dia acerto-lhe um bom par de coices. Mas a culpa é do homem mesmo, que mete dentro de casa uma raça que só sabe latir e morder. Não tem outra serventia. E ainda uns são piores que outros como é esse Lamparina que até os ovos das galinhas anda papando às  escondidas. Também não sei onde andam as cascavéis dessa terra que não lhe dão uma pregada. Já imaginou acordar um jumento, o bichinho que carregou Nosso Senhor, em pleno sonho. Só mesmo um cachorro. O mundo, não vai se acabar antes que eu veja limpo, dessa cachorrada.
            Capeta esperava, com a sua infinita paciência, a vez da desforra. Havia de pegar o Lamparina de frente. Mas antes disso, cachorro é sempre cachorro e o vira-lata, foi pego de surpresa com a boca na botija. Ia levando na dentuça um  pintinho de estimação. Dona Marluce descobriu o manhoso sem esperar... - Ah! É esse leprente que está dando sumiço de pintos! Vai me pagar o novo e o velho. Chega Atílio. E Atílio chegou.
            Olha homem de Deus. Sabes quem está acabando com os pintos? O Lamparina. Procura dar fim a esse excomungado, esse leprente. Criar com tanto cuidado os bichinhos pra esse peste comer.
            Capeta ouvia tudo e esperava por seu Atílio. Achava que dessa vez o mijo iria correr. Seu Atílio enfiou-se casa adentro. E logo retornou com a espingarda entupida de pólvora e chumbo. Capeta achou que assim também era demais. Procurou defender Lamparina, correndo atrás do safadório. Dona Marluce interferiu - não Atílio, matar não, basta dar-lhe uma boa sova. Caso não se conserte, então dá fim nele.
            Atílio foi disfarçadamente e apanhou o Lamparina pela perna. O coitado mijou-se todo da sova que levou. Capeta gostou. Estava pago. Lamparina saiu desconfiado e meteu-se lá por trás da casa com o rabo entre as pernas. Capeta fez também uma volta e foi vê-lo. Estava deitado, com a cara no chão e os olhos correndo lágrimas. Mas iria vingar-se.
            Pelo menos isso. O Capeta mijou na tigela de angu colocada à sombra do tamarindeiro para a ceia do Lamparina.
- Para que seu Atílio bateu no coitado. Não foi ele próprio que lhe encheu de intimidade. Cachorro na sala, cachorro debaixo da mesa, cachorro na camarinha, cachorro no meio do povo como se fosse gente. Cachorro sem respeito.
Um sonho tão bom, o mundo todo verde, coberto de flores, nem quero mais pensar. Quebra seu Atílio, quebra os ossos desse safado.
 Agora está aí, o chão todo pelado, tudo seco e eu, Capeta, com fome e com sede. Ah! Miserável... Cachorro fio de uma luvana... Vai acordar Capeta e comer mais um pintinho de dona Marluce...

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

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