CAPETA*
João Henriques da
Silva
(In Memoriam 20/09/1901
– 16/04/2003)
Desde novinho que o burrico do seu
Atílio recebeu o nome de Capeta-Peludinho; e esperto como era a coisa pegou
bem. Era mesmo um jumentinho engraçado e diferente dos outros e a melhor
distração para os filhos de seu Atílio. Também
os coitados não tinham outra coisa para brincar, além dos cavalinhos de
pau e os bezerros e vacas de ossos. Menino pobre é assim. Mas quando Capeta
nasceu foi um mundo novo para eles. E os meninos que possuíam brinquedos
comprados nas lojas, tinham inveja dos filhos de seu Atílio. E pediam aos seus
pais que comprassem um bichinho daquele.
O sítio de seu Atílio, bem pertinho
da rua, enchia-se da meninada pra ver Capeta de perto, alisar-lhe o pêlo
cinzento e adoravam vê-lo mamar. O Capeta foi crescendo mimado, ouvindo as
conversas da garotada já aprendendo muita coisa que ia guardando na memória.
Com aqueles agrados todos, a mãe de
Capeta tinha medo de que lhes carregassem o filho. Tinha vontade de ir para
longe, meter-se pelas caatingas a fora, para onde ninguém os visse. Seria a
pior coisa que lhe poderia acontecer. Mas, tinha fé no seu Bizu, que o havia de
proteger. Já o pai nem chegou a conhecê-lo, foi vendido como um traste qualquer
e lá se foi. Deixaram-na só, quase as vésperas do bichinho nascer. Bicho é
bicho. E gente não tem pena de bicho. Roxinho saiu daqui com peso no lombo e
furado de espora. Nem ao menos teve tempo de se despedir. E ninguém sabe onde
anda e nem advinha que o filho nasceu e é esse mimo de jerico.
Capeta cresceu e teve sorte de ainda
estar ali pertinho dela, já com uma irmãzinha igual a ele. Só que o pai era
outro.
Capeta não era gente, mas sabia e
imaginava muita coisa. Atendia pelo nome, não dava coice, carregava quem lhe
punha nas costas, marcava as horas certinhas e nunca havia dado desgosto. Vida
de pobre, mas não se maldizia. Capeta, entretanto, como bicho que se preza, não
gostava de cachorro de casa. O lamparina era metido, cheio de intimidade,
metia-se de casa adentro e no meio das pessoas como se fizesse parte da família.
Chegava ao ponto de saltar portas e janelas, numa intimidade suja. Era bicho
inimigo dos outros bichos. Latia com qualquer um e mordia quando podia. Capeta
não podia falar, mas tinha vontade de dizer ao seu Atílio. - Não vou com a cara
desse seu cachorro. E como é seu Atílio, como o senhor deixa esse vira-lata
meter-se de casa adentro, enchendo tudo de pulgas e outras mazelas. Essa história
de ser amigo do homem, seu Atílio, é conversa fiada. Já tem mordido crianças e
até gente grande. E é arriscado matar alguém se for atacado de moléstia dos
cachorros.
E certo dia a raiva de Capeta aumentou. Estava
dormindo e sonhando. Um sonho maravilhoso. O sertão naquele ano estava roído pela seca.
Não havia o que bicho comer. E a fome emagrecia o sertão. Pois bem, Capeta
deitou-se pensando na bicharada varando as caatingas e catando alguma palhinha
seca para enganar a fome. Veio então o
seu sonho bom. O sertão todo chovido, os
campos verdejantes até os confins do horizonte. Todos os bichos gordos,
luzidios, ora deitados, ora passeando despreocupado, como se estivessem no
Paraíso. Capeta com sua mãezinha e a mana, à sombra de uma árvore copada e
coberta de flores, exalando um cheiro gostoso. E chamava-lhe a atenção, o fato
de não ter bicho brabos que os perseguissem. A cachorrada havia morrido de
doença feia. Era uma tranqüilidade. E Capeta perguntava a si mesmo porque não
era sempre assim. O mundo verde, florado os pássaros cantando, os besouros
zumbindo, sempre aquela coisa agradável. Uma vida sem cachorro... Capeta deliciava-se com a beleza do sertão
molhado e alegre, quando despertou com as batidas do fiota do cachorro, bem em
cima dele. Levantou-se de supetão. Investiu contra ele preparado para esmagá-lo. Mas o Lamparina
pulou a janela e enfiou-se dentro de
casa. - Capeta te ensinará. Ainda pego este safado, tiro-lhe o sarro. Onde já
se viu um pulguento daquele vir interromper o sono de um animal superior como
eu. Um dia acerto-lhe um bom par de coices. Mas a culpa é do homem mesmo, que
mete dentro de casa uma raça que só sabe latir e morder. Não tem outra
serventia. E ainda uns são piores que outros como é esse Lamparina que até os
ovos das galinhas anda papando às
escondidas. Também não sei onde andam as cascavéis dessa terra que não
lhe dão uma pregada. Já imaginou acordar um jumento, o bichinho que carregou
Nosso Senhor, em pleno sonho. Só mesmo um cachorro. O mundo, não vai se acabar antes
que eu veja limpo, dessa cachorrada.
Capeta esperava, com a sua infinita
paciência, a vez da desforra. Havia de pegar o Lamparina de frente. Mas antes
disso, cachorro é sempre cachorro e o vira-lata, foi pego de surpresa com a
boca na botija. Ia levando na dentuça um
pintinho de estimação. Dona Marluce descobriu o manhoso sem esperar... -
Ah! É esse leprente que está dando sumiço de pintos! Vai me pagar o novo e o
velho. Chega Atílio. E Atílio chegou.
Olha homem de Deus. Sabes quem está
acabando com os pintos? O Lamparina. Procura dar fim a esse excomungado, esse
leprente. Criar com tanto cuidado os bichinhos pra esse peste comer.
Capeta ouvia tudo e esperava por seu
Atílio. Achava que dessa vez o mijo iria correr. Seu Atílio enfiou-se casa
adentro. E logo retornou com a espingarda entupida de pólvora e chumbo. Capeta
achou que assim também era demais. Procurou defender Lamparina, correndo atrás
do safadório. Dona Marluce interferiu - não Atílio, matar não, basta dar-lhe
uma boa sova. Caso não se conserte, então dá fim nele.
Atílio foi disfarçadamente e apanhou
o Lamparina pela perna. O coitado mijou-se todo da sova que levou. Capeta
gostou. Estava pago. Lamparina saiu desconfiado e meteu-se lá por trás da casa
com o rabo entre as pernas. Capeta fez também uma volta e foi vê-lo. Estava
deitado, com a cara no chão e os olhos correndo lágrimas. Mas iria vingar-se.
Pelo menos isso. O Capeta mijou na
tigela de angu colocada à sombra do tamarindeiro para a ceia do Lamparina.
- Para que seu Atílio bateu no coitado.
Não foi ele próprio que lhe encheu de intimidade. Cachorro na sala, cachorro
debaixo da mesa, cachorro na camarinha, cachorro no meio do povo como se fosse
gente. Cachorro sem respeito.
Um sonho tão bom, o mundo todo
verde, coberto de flores, nem quero mais pensar. Quebra seu Atílio, quebra os
ossos desse safado.
Agora está aí, o chão todo pelado, tudo seco e
eu, Capeta, com fome e com sede. Ah! Miserável... Cachorro fio de uma luvana...
Vai acordar Capeta e comer mais um pintinho de dona Marluce...
*O
conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
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