sábado, 24 de junho de 2023

3º CADERNO DO AGRICULTOR

 

3° - CADERNO DO AGRICULTOR

CAÇAS E CAÇADAS

Agroº. João Henriques

 

            Creio que todos estão percebendo o desaparecimento mais ou menos rápido de nossas espécies de animais silvestres. Aliás, não poderia ser de outra formar se não respeitamos as determinações do Estatuto da Caça e Pesca, que fixa a época das caçadas. E o objetivo da lei é justamente impedir que se matem os animais na fase de reprodução, evitando, pelo menos assim, que as espécies desapareçam, como já aconteceu com algumas em certas zonas. As emas, os veados, as perdizes e codornas, as pacas, os urús, as seriemas, os jacus, os tatus verdadeiros e outros animais úteis, já se tornaram raridades em muitos lugares ou mesmo não mais existem. E nas zonas onde ainda são encontrados, a perseguição é constante, tendendo também a exterminá-los. Torna-se, por isso urgente, inadiável, por em execução o Código de Caça e Pesca, como medida de proteção à nossa fauna silvestre. E não se justifica de forma alguma essa exploração desregrada de nossos mais belos recursos naturais. E não é razoável e nem justo que depredemos as riquezas naturais e deixemos como herança aos nossos descendentes, uma natureza espoliada, dilapidada, arrasada.

Há os que caçam para se alimentar e aqueles que o fazem por simples esporte, como uma diversão, para mostrar a perícia da pontaria. E por esses esportes detestáveis, pagam os inocentes animais, que vivem nas selvas e nos campos, sem nos dar preocupação e, ao contrário, muitos deles de grande utilidade à agricultura.

O hábito de caçar nos veio dos tempos primitivos quando a agricultura ainda não existia ou era rudimentar. O homem vivia da caça, da pesca e de outros recursos naturais, então abundantíssimos. Os processos de caça, porém, eram também rudimentares e resumiam-se a armadilhas e as setas dos índios, impotentes para a exterminação das espécies. A espingarda, porém, da qual há quem possua coleção, é rápida e mortífera, indo buscar ao longe, ora correndo, ora no voo.

Data: Num pretérito, muito passado.

 

quarta-feira, 21 de junho de 2023

 

2° - CADERNO DO AGRICULTOR

AGRONÔMO JOÃO HENRIQUES

PÁSSAROS E INSETOS

 

Segundo a opinião dos naturalistas, o mundo vegetal seria destruído pelos insetos se não fosse continuamente defendido pelos pássaros e outros pequenos animais. Na verdade, a imensa proliferação dos insetos, cobriria a terra e encheria o espaço, se não fossem eles intensamente perseguidos e destruídos pelos seus inimigos naturais. Para se ter uma ideia, basta lembrar que um casal, apenas, do caruncho do milho, arroz e trigo, conhecido cientificamente por sitophilus crysae, em 15 gerações, produzira cerca de 1.000.000 de novos insetos. Sabendo-se que um saco de milho contém aproximadamente, 200.000 grãos, dentro de 5 meses, destruiriam eles, pelos menos 5 sacos de milho, considerando-se, unicamente, uma semente para cada caruncho... E observando a rapidez com que as lagartas destroem os arrozais, os milharais e aos algodoais e as culturas de maracujá, quando, quase sempre, o lavrador nem sequer se apercebe que as borboletas e mariposas estão fazendo solertemente, a sua postura. Aparentemente, alguns insetozinhos, apenas, esvoaçando entre as culturas, não oferece perigo. E é por isso que a crendice popular supões que as lagartas se originam espontaneamente, que saem da terra ou de qualquer lugar misterioso. Mas é que cada borboleta, cada mariposa deposita seguidamente, nas folhas das plantas, dezenas ou centenas de ovos que, dias depois, eclodem, dando origem a milhares e milhões de larvas.

Um só formigueiro possui até 2.000.000 de formigas, número igual à população de uma grande cidade.

Os agricultores procuram combatê-las, protegendo, assim, as suas culturas. Mas, ai de nós, se não fossem os pássaros e outros pequenos animais que as perseguem ininterruptamente, caçando-as como alimento. Há pássaros que destroem uma quantidade impressionante de insetos adultos e larvas e muitas espécies criam os seus filhotes quase exclusivamente com larvas de insetos. Os tatus, os tamanduás, os bem-te-vis, as galinhas, as andorinhas e os sapos, por exemplo, são grandes amigos do lavrador. O número desses protetores naturais da agricultura, é imenso e não caberia aqui cita-los. As galinhas, todos sabem, não poupam as formigas e muitas larvas do solo.

Como se vê, o agricultor deve, por todos os meios ao seu alcance, proteger a fauna, isto é, os pássaros e outros pequenos animais, pois, assim estará protegendo a flora e as suas lavouras, em suma, a suas economias e o bem estar da humanidade.

Eles nos ajudam a manter o equilíbrio biológico da natureza.

 

Data: Num pretérito, muito passado.

domingo, 18 de junho de 2023

1º - CADERNO DO AGRICULTOR

 

PRIMEIRO - CADERNO DO AGRICULTOR

Agrº. João Henriques

 

Lá vem o Velho chico descendo dos contrafortes da serra da Canastra, numa longa e constante caminhada, cortando o planalto-central, varando as caatingas secas, despenhando-se em Paulo Afonso, para trazer-nos as suas águas límpidas ou barrentas e férteis. E o Velho Chico, no salto da cachoeira, nos manda também a energia, no impulso das suas águas, naqueles 80 metros de queda. E depois de transpor a garganta das corredeiras, espraia-se e corre manso entre os barrancos que se distancia à medida que se aproxima do litoral. E mais largo e mais tranquilo, refluindo nos remansos, vem, afinal, derivando as suas águas para as várgeas e lagoas, as terras dos farturosos arrozais.

Mas o Velho Chico de nossa intimidade, é ainda um rio inconformado, inconformado porque não cumpriu a sua destinação. Não nasceu e avolumou-se para ser tragado pelo mar.

O São Francisco, Deus o criou para a integração política, social e econômica nacional. Abriu-lhe caminho pelos sertões, para que os brasileiros pudessem conquistar as imensas áreas de sua dilatada bacia fluvial e aí florescesse uma civilização dinâmica, fundamentada no sulco dos arados, na hidroeletricidade e, sobretudo, na irrigação.

A energia hidrelétrica, já percorre sertões, caatingas e litorais, iluminando cidades, impulsionando industrias, criando riquezas, dinamizando atividades. Mas a utilização de suas águas no amanho do solo, na implantação de agricultura intensiva, está ainda na sua fase primaria. O barranqueiro não se apercebeu ainda do imenso potencial que são as águas do Velho Chico, fator de desenvolvimento das atividades rurais. E no dia em que com a energia hidrelétrica do próprio rio, as águas subirem as barrancas e as terras não sentirem mais a sede e os campos se conservarem sempre verdes e exuberantes, esta região privilegiada, tornar-se-á o maior celeiro deste nordeste. E o lavrador e o criador verão que as águas do São Francisco, são, na verdade, um manancial de ouro líquido que ainda está esperando pelas bateias do lavrador.

No dia em que cada agricultor ribeirinho tiver a sua motobomba molhando as terras que cultiva, sem se preocupar que venham ou não as chuvas, então o rio São Francisco, o nosso Velho Chico, sentirá cumprida a sua predestinada missão – IRRIGAR.

Quando o Velho Chico transbordar, inundando as terras dos combros, e aí deixando a sua “colha” que enriquece o solo e aumenta as colheitas, ele nos dá uma boa lição, fazendo lembrar e sugerindo o seu aproveitamento na irrigação dessas extensas áreas ribeirinhas, de produção intermitente e escassa.

O rio sobe, o rio desce, estala o verão, as terras se ressecam, as lavouras definham, as pastagens se empobrecem e as águas vão passando como se delas não precisássemos, como se não fossem a maior riqueza do lavrador ribeirinho.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 22 de maio de 2023

DIVINO SOL

 

DIVINO SOL

AUGUSTO Carvalho Rodrigues DOS ANJOS

Extraído do livro Antologia dos Imortais

Francisco Candido Xavier e Waldo Vieira

Noite. Retorne À Terra. Entre os aflitos

Que a luta impele aos últimos degraus,

Sinto a perturbação que envolve o caos

E a exalação de todos os detritos.

 

Entre o mundo e meu pranto, a sós, vagueio,

Na torva indagação que me constringe.

A vida é aterradora e imensa esfinge

No horror que me tortura de permeio.

 

Ao coro estranho de sinistros ventos,

Ergue-se a angústia num milhão de vozes...

Do choro mudo a imprecações ferozes,

Há turbilhões de trágicos lamentos.

 

Paixões embatem com medonha fúria.

O fel da provação verte sem peias...

O homem é como alguém que abrindo as veias

Tenta fugir debalde à carne espúria.

 

Em toda a parte, a dor comprime o cerco,

E os que dormem, quais míseros cativos,

Assemelham-se a tristes morto-vivos,

Agonizando em túmulos de esterco.

 

Acorrentada entre os horrendos muros

Dos seus próprios grilhões imanifestos,

A Humanidade escuta os vãos protestos

Dos sonhos que morreram nascituros...

 

Mas, dissipando a sombra por rompê-la,

Na gleba que de lodo se engalana,

Como sinal de Deus na furna humana,

Surge sublime e resplendente estrela.

 

Há nova luz de amor que tudo invade.

E percebo, no pântano entrevisto,

Que a redenção virá, brilhando em Cristo,

Ante o Divino Sol da caridade.

sábado, 20 de maio de 2023

 


A   V A S S O U R A D A

 

É grande, a necessidade de uma varredura neste país.

O Brasil está contaminado de tubarões, de homens sujos, infetados e corrompidos.

O povo está viciado em furtar.

Continua em todos os Estados, a gatunagem.

 São os próprios empregados que tem as suas repartições viciadas, sujas e corruptas.

 Querem enriquecer clandestinamente.

 O furto é grande.

Os engravatados são os mais larápios, os próprios ratoneiros.

Vai haver dificuldade para colocar o País, nos seus eixos.

No entanto colocado, vamos nos aguardar o que poderá aparecer de melhor.

O osso, então, ficará duro para se roer.

 

24/2/61                                          Raulino Maracajá

 

Meu avô era um apaixonado pelas ideias do candidato Jânio Quadros. Porém, depois de eleito, “acho” que se decepcionou. Até eu nessa época morando em alagoas, postava na camisa por sobre o peito com muito orgulho um broche de uma vassoura dourada. Sempre foi um sonho achar um candidato civil que tivesse força para apagar de vez a corrupção impregnada no mais profundo recando da alma da gente brasileira. É uma pena!

"O governo de Jânio Quadros durou apenas sete meses, sendo ele, por isso, o presidente da república que ficou menos tempo no poder. Apesar da curta duração, seu governo foi marcado por medidas esdrúxulas, como as proibições de rinhas de galo e do biquíni. Em um mundo bipolar como o da Guerra Fria, a política externa independente foi o principal destaque desse governo.

Em 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros renunciava à presidência alegando “forças terríveis” contra o seu governo. Esse ato inesperado provocou uma crise militar que, por muito pouco, não terminou em guerra civil."

Campina Grande, 20 de maio de 2023

Grijalva Maracajá Henriques

 

 

quarta-feira, 19 de abril de 2023

ILUSÕES DA VIDA

 



ILUSÕES DA VIDA

FRANCISCO OTAVIANO

Quem passou pela vida em branca nuvem,

E em plácido repouso adormeceu;

Quem não sentiu o frio da desgraça,

Quem passou pela vida e não sofreu;

Foi espectro de homem, não foi homem,

Só passou pela vida, não viveu.

 

Francisco Otaviano (Francisco Otaviano de Almeida Rosa), advogado, jornalista, político, diplomata e poeta, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 26 de junho de 1826, e faleceu na mesma cidade em 28 de junho de 1889. É o patrono da cadeira n. 13, por escolha do fundador Visconde de Taunay.

Era filho do Dr. Otaviano Maria da Rosa, médico, e de Joana Maria da Rosa. Fez os primeiros estudos no colégio do professor Manuel Maria Cabral, e no decorrer da vida escolar dedicou-se principalmente às línguas, à História, à Geografia e à Filosofia. Matriculou-se na Faculdade de Direito de São Paulo em 1841, na qual se bacharelou em 1845. Regressou ao Rio, onde principiou a vida profissional na advocacia e no jornalismo, nos jornais Sentinela da Monarquia, Gazeta Oficial do Império do Brasil (1846-48), da qual se tornou diretor em 1847, Jornal do Comércio (1851-54) e Correio Mercantil. Foi eleito secretário do Instituto da Ordem dos Advogados, cargo que exerceu por nove anos; deputado geral (1852) e senador (1867). Como jornalista, empenhou-se com entusiasmo nas campanhas do Partido Liberal e tomou parte preponderante na elaboração da Lei do Ventre Livre, em 1871. Já participara da elaboração do Tratado da Tríplice Aliança, em 1865, quando foi convidado pelo Marquês de Olinda para ocupar a pasta dos Negócios Estrangeiros, mas não a aceitou, ficando em seu lugar Saraiva. Por ocasião da Guerra do Paraguai, foi enviado ao Uruguai e à Argentina, substituindo o Conselheiro Paranhos na Missão do Rio da Prata. A ele coube negociar e assinar, em Buenos Aires, em 1º de maio de 1865, o tratado de aliança ofensiva e defensiva entre o Brasil, a Argentina e o Uruguai, no combate comum a Solano Lopez, do Paraguai. Recebeu o título do Conselho do Imperador e do Conselho Diretor da Instrução Pública.

Poeta desde menino, não se dedicou suficientemente à literatura. Ele mesmo exprimiu com frequência a tristeza de haver sido arrebatado à poesia pela política, por ele chamada de “Messalina impura”, num epíteto famoso. Apesar da carreira fácil, respeitável e brilhante, cultivou sempre a nostalgia das letras. Sua obra poética representa uma espécie de inspiração do homem médio, mas não banal, o que lhe dá, do ponto de vista psicológico, uma comunicabilidade aumentada pela transparência do verso, leve e corredio. Em torno do eixo central de sua personalidade literária se organizam as tendências comuns do tempo, num verso quase sempre harmonioso e bem cuidado.

Nas suas traduções de Horácio, Catulo, Byron, Shakespeare, Shelley, Victor Hugo, Goethe, revela-se também poeta excelente. Ficou para sempre inscrito entre os nossos poetas da fase romântica, como autor de duas ou três peças antológicas, mesmo que não tenha exercido a literatura com paixão, e o patriota que foi dá-lhe lugar entre os grandes vultos brasileiros do século XIX.

https://www.academia.org.br/academicos/francisco-otaviano/biografia

 

 

 

 

 

domingo, 2 de abril de 2023

BUCHO D'ÁGUA

BUCHO D’ÁGUA

 

 

Estava certo dia assistindo aula de zoologia, na Universidade Federal da Paraíba; curso de Zootecnia em Areia, nesse tempo de meu Deus, de dois mil e vinte e três, aula sobre protozoários; quando a professora danou na tela um slide, com uma cabra de cabelo liso, mostrando um sorriso de tristeza melancólica, uma pele de cor de jumento quando foge, nem branco nem amarelo, nem negro e nem branco. Cor de nevoeiro do nosso cariri no tempo de seca, quando o tempo se mete a enxerido e que à boca da noite, sai aquele fumaceiro que a gente não sabe donde vem.  Tinha uns moleques que diziam que era a fumaça dos cigarros fumados por comadre Fulozinha ou o Saci Pererê. A barriga do cabra parecia que por dentro tinha uma lamparina acessa, daquelas feitas com lata de óleo Dom Dom; alimentada com gasóleo que produz uma luz amarelada.

A fessora disse que aquele cabra, estava infectado pelo protozoário Schistosoma mansoni – Esquistossomose ou a tal da barriga d’água.

Pedi a uma colega que viaja de carona para Campina Grande, que me lembrasse daquela foto.

 Pois de repente minha velha memória, sorriu! Votei ao ano de mil novecentos e setenta e um. Em Penedo Alagoas, sítio Cerquinha das Laranjeiras, terra pequena e desarrumada talvez umas cinco tarefas que meu pai havia comprado. Casa muito singela, que servia de moradia ao seu Zé Vicente e família; uma velha casa de farinha ainda funcionando que os vizinhos a usavam pagando uma Conga pela farinha produzida. Muitas laranjeiras semi-sufocadas pelos enxertos de passarinhos e muitos galhos mortos. Lá pra baixo onde o rio Perucaba encerrava os limites do sítio e os alagados, tínhamos um pequeno porto e uma canoa que ainda fora incluída na compra da terra. Este rio banha os municípios de Girau de Ponciano, Arapiraca, Lagoa da Canoa, Feira Grande, São Sebastião, Igreja Nova, beirava nosso sítio e se derramava no Rio são Francisco, em Penedo. Os alagados nossos vizinhos se estendiam por muitos hectares, donde os ribeirinhos tiravam o de comer e as vezes quando sobrava vendiam nas feiras. Camarão, carne de jacaré (a macaxeira – parte da calda), pequenos peixes, e o escorregadio Mussum. Já que estamos falando também em zoologia, vou apresentar o camarada que provocou está narrativa:

 

Mussum (Synbranchus marmoratus)

 

O peixe Mussum possui o corpo sem escamas e uma só abertura branquial localizada sob a cabeça. O peixe de água doce chamado Mussum é conhecido popularmente como Enguia-do-Pântano e Cobra-d’água.

Nome científico Synbranchus marmoratus.

Distribuição geográfica. Sua espécie é distribuída em todo o Brasil.

Habitat. O Mussum é um peixe que habita lagos, córregos, brejos, pântanos e rios, podendo sobreviver a longos períodos enterrado na lama.

Alimentação. É um peixe carnívoro, com hábitos noturnos, alimentando-se de presas vivas, principalmente crustáceos, moluscos e pequenos peixes, mas também insetos, minhocas e materiais vegetais.

Reprodução. O peixe Mussum, durante o período de reprodução, põe seus ovos em tocas, que servem de ninhos. Cada ninho pode conter até 30 ovos e larvas em diferentes estágios de crescimento, indícios de que este peixe produz múltiplas ninhadas, ao longo da estação reprodutiva. É o macho quem protege a prole.

Características. O peixe Mussum possui o corpo sem escamas e uma só abertura branquial localizada sob a cabeça. Sua forma corporal lembra uma cobra. Seus olhos são pequenos situados bem à frente da cabeça. Sua coloração vai do cinza-escuro ao castanho, com manchinhas mais escuras esparsas pela cabeça e pelo corpo. Não apresenta nadadeiras peitorais nem pélvicas, e as nadadeiras dorsal e anal continuam com a caudal. Sua respiração também é aérea, ou seja, ele pode respirar fora da água, graças à faringe altamente vascularizada, que funciona como um pulmão. Pode atingir mais de 1 m de comprimento. (O danado também se alimenta com os pequenos caramujos já contaminados pela silenciosa e invisível pestinha que de mão em mão passava de um hospedeiro a outro indo destruir seu finalmente agasalhador.)

 

Então, entretanto, contudo e, todavia, vamos continuar a narrativa.

Todas as sextas feiras eu ia pagar os auxiliares do sítio Cerquinha e como sempre fui um bom boêmio, levava uma garrafa de Serra Negra, aguardente na moda nos anos que esses fatos se deram. Partia de Penedo em direção à vontade de tomar uma com camarão e ouvir as palestras de seu Zé Vicente, nordestino, camarada inteligente e um verdadeiro contador de presepadas matutas. Íamos até tantas horas nesses embalos fulgurais. Conversa vai e conversa vem, sempre se falava em bons tira-gostos. Por coincidência numa dessa feita, passava por nossa porteira, vizinhos que sempre entravam e nos cumprimentava, participando dos causos narrados no momento.

Mané buchudo, convidado a entrar e tomar uma das boas não se fez de rogado. Nas nossas conversas jogadas fora, sobre principalmente tira-gosto, nos convida para ir comer uma “Mussunzada” na sua casa na próxima sexta-feira.

Dito e feito na data marcada estava meu irmão Robério, intelectual até as profundas da medula e eu analfabeto que fazia raiva, fazendo o pagamento da folha do pessoal e já iniciando o ritual da pinga com camarão; quando seu Zé Vicente nos alertou do compromisso com a mussunzada, e, aí acompanhado por Geraldo (gago que só uma peste) filho de seu Zé Vicente, começamos uma descida numa escuridão que a bíblia nos diz: “Na escuridão, nós não sabemos onde estamos” em direção ao começo das águas úmidas. Caminho escuro, esburacado e apertado entre duas barreiras feitas pelas correntes d’águas, que nos invernos cada vez mais se aprofundavam.

- Boa noite seu Manoel. Chegamos! Fizemos essa tentativa três vezes, até que a meia porta se abriu e vimos sair de dentro uma figura que parecia mais um quadro do Rembrandt aqueles famosos auto-retratos. A gente de fora no escuro, e Mané Buchudo de dentro da casa, iluminado pelas lamparinas de luz amareladas, embaças e meladas de fumaça.

- Entrem, a casa e de vosmecês! Desculpem não atender logo, eu e Mariquinha estávamos entretidos ouvindo a novela no radinho. A gente estava ansioso para saber quem tinha matado a escrava Isaura.

Entramos! E vi logo de cara na parede dependurado várias estampas de santos. Conheci logo Santa Barbara, Jesus, Maria e José. São João e São Pedro mais abaixo. Ao lado esquerdo uma mesinha com várias imagens. Padre Cícero pintado de branco, porém já escurecido pela fuligem da fumaça das lamparinas. Outras imagens que no momento não lembro. Ao lado direito, várias fotos de familiares. Um calendário marcando 1971 de uma casa comercial. Ao chão num canto um pote pequeno danificado com uma touceira de comigo ninguém pode. É indicada contra o mau-olhado e para afastar a inveja. Também protege o lar de energias negativas e de pessoas mal-intencionadas. Só queria saber quem iria ter olho grande numa situação de pobreza medonha como aquela.

Passamos para o outro cômodo anexo ao primeiro. Uma mesa, quatro tamboretes, um pote com um caneco de alumínio dependurado. Um fogão a lenha, aceso e panelas debruçadas sobre o cujo dito. A camarinha ficava ao lado esquerdo separado por um cortinado de tecido cor e marca indefinidas. Ao lado do fogãozinho corajoso e teimoso quase se desmanchado, uma porta que dava saída para o terreiro. Não havia janelas.

Foi o que me lembro e que a maldita da Covid teve pena.

Sentamos à mesa. Os três visitantes e o dono da casa, a patroa continuava na peleja das panelas. Coloquei em cima da mesa a garrafa de cana e uns limões, esperando o dito tira-gosto. Sem muitas delongas, dona Mariquinha danou uma panela de barro recheada de mussum, cozinhado ao molho de água do velho Perucaba, temperado com Schistosoma, sal e não sei o que mais diabo a quatro. Esparramou em cima da mesa pratos de ágata meios pinicados pelo uso. Acho que era a melhor louça de casa, só para os visitantes. Vários copos de vidro e alumio e uma frasco usado de Bromil à guisa de pimenteira.

Começamos a peleja. Caras feias na hora de tirar o gosto da maldita cana com o desconhecido peixe. Mas, mesmo assim fomos emburacando a cana e o tal petisco. Acabou a pinga e o escorregadio, como chamavam os índios de antigamente.

Conversa vai, conversa vem, saiu o assunto de doenças.

- Estão vendo meu estado? Morto, quase morto. – disse seu Mané. Não tenho mais força para nada. A danada da maleita chega devagarinho à boca da noite e deixa o cabra destinhorado. Além de queda coice – mostrando a barriga enorme – e mais essa peste de bucho cheio d’água que parece que carrego um bruguelo de bode. Aqui em casa só se fala em mazela. Fui ao doutor e o homem não resolve nada, só fica passando cachete do tamanho de uma bolacha que pra descer tenho que tomar meia quartinha d’água. Não sei mais o que vou desarnar para resolver minha vida.

Nisso, meu irmão Robério disse em cima da bucha. Rindo como sempre fazia suas presepadas para animar a turma.

- Oxente e Grijalva já não é quase um médico. Vai lhe receitar e dizer com certeza a causa desse incômodo. Veio mesmo a calhar a gente vir comer o mussum. Só assim o senhor vai ficar bonzinho.

O que a cachaça não faz nas pessoas. Eu apenas tinha feito o vestibular para medicina na Universidade Federal de Pernambuco e estava aguardando vaga. Tínhamos ficado quinze estudantes de fora esperando um lugar ao sol ou como era chamado na época, de excedente. A classe só permitia trinta vagas. No final, após muita luta não conseguimos o intento.

Mas como se diz que de médico e de louco todo mundo tem um pouco, não contei conversa e fui logo mandando o buchudo tirar a camisa e comecei a apalpar a pança que alumiava mais do que um balão de sopro. Passei meia hora examinado e diagnosticando o pobre do amarelo. Dei minha abalizada opinião, passando umas meizinhas; folhas de losna, boldo, chá dente de leão e agrião d’água (já que o assunto estava sendo apreciado) e logo nos despedimos; deixando muitas esperanças em todos de uma cura milagrosa.

Tentamos planejar a volta para Cerquinha da Laranjas. A escuridão era total, nem sinal de estrelas. Apelei para ver as Três Marias, estrelas pertencentes à constelação de Órion, uma constelação que fica completa no nosso céu, durante toda a noite, para nos guiar. Nada. Breu total. Geraldo então teve uma ideia. Pediu emprestado um velho pangaré para nos levar de ladeira acima. Selaram o bicho e com muita luta subimos no Rocinante. Robério que era mais velho foi na sela e eu na garupa. Geraldo com mais conhecimentos geográficos, puxando pelo cabresto velho pé de pano. De vez enquanto eu descia forçosamente pela garupa e danava o espinhaço no chão duro. Acho que aquelas quedas ainda hoje me acompanham com dores insuportáveis de herança, que fiquei como seu beneficiário. Gritava que tinha caído e a caravana parava para me recolher com muita dificuldade. Esse tirinete aconteceu umas três vezes antes de vislumbrar a nossa salvação. Pegamos o Jeep e finalmente fomos para nossa casa em Penedo.

Semana seguinte voltamos para fazer o pagamento do pessoal como de costume. Os cumprimentos costumeiros, as perguntas sobre o andamento do plantio de maracujá, O que tinha de frutas para levar para minha mãe e claro, tomar uma garrafa de pinga com o velho camarão, que dona Cícera ia mosquear.

- O homem morreu, e já foi enterrado – disse seu Zé Vicente, de supetão.

- Que homem seu Zé?

- Seu Manoel Izidoro.

Ai Geraldo, gaguejando disse - também depois de tanto aperto e mexida naquele barrigão, não tinha diabo que aguentasse. Espoucou!

Ficamos sem jeito e com medo de sermos parcialmente responsável pelo ocorrido. Acabou a vontade de tomar a aguardente com camarão, pimenta e muito limão. Com a boca cheio d’água, dissemos até logo e fizemos meia volta e nunca mais consultei ninguém. Pelo menos que tivesse infectado pela esquistossomose e nunca mais comi tira-gosto de mussum...

 

 

 

 

           

 


terça-feira, 14 de março de 2023

A RUA QUE NÃO ACONTECEU - ROBÉRIO MARACAJÁ HENRIQUES


 

A RUA QUE NÃO ACONTECEU

 

Robério Maracajá (in memoriam)

 

Aquela manhã não era do meu tempo, muito mais antiga. Uma manhã velha fazendo-me reconhecer a marca das idades, como se me revelasse páginas amarelecidas pelo tempo. A rua, a calçada, o casario, os passageiros, tudo ancestral. E a inquietação minha por sentir-me novo, recente, uma violência dentro daquelas imagens remissivas.

O menino vinha ao meu encontro, uma paródia de meninos anteriores, olhos mortos de pálpebras imóveis, passos cansados de séculos, uma imagem recém – saída de um calendário esquecido. Um vulto sem emoções como uma estampa desbotada. Uma agressão ao meu tempo de barco sobre ondas azuis e iluminadas. A dor de um encontro absurdo, indesejável.

O casario abria as janelas, olhos de múmias, bocas desdentadas de palavras, hálito de recantos escondidos no silêncio das paredes assombradas de vazios. E eu me via naqueles interiores e assustavam-me os meus habitantes, então reencarnando todos os meus eus. Um pavor maior, vendo-me em tantas posses, meus olhos de infinitas dimensões, as mãos de centenas de dedos, todas as minhas almas que não assumi.

O menino e o casario completavam-se à sombra das árvores que nem existiam mais, ramos de aves sem pouso, o corpo dos troncos maltrapilhos, raízes contorcidas no leito de orgasmos incompletos. Os jardins anêmicos sem as rosas de dezembro, asas de borboletas esfarrapadas, zumbis de cores secas, cigarras de cantorias estiadas, uma vertigem.

O menino era a alma das árvores, dos pássaros e do casario e me roubava do meu tempo, violentando a minha idade, agora um aborto desmembrado, dispersado por caminhos perplexos. Afundava o meu barco de águas azuis e iluminadas, era a minha morte em profundezas agoniadas. A agonia dos meus habitantes e dos meus despovoados. A angústia das minhas casas desdentadas e de bocas sem palavras, das árvores sem aves, dos meus olhos de múmia, de um hálito de silêncio.

Um violino, um piano, um violão vinham das noites desaparecidas, de uma sala nenhuma, de uma sacada qualquer, onde uma moça qualquer premia os seios e o coração, uma serenata cortada ao meio, numa meia noite. E as fantasias / fantasmas, no gume da rua nua, apedrejavam telhados desalmados.

Aquela manhã, dia / noite, que não era do meu tempo, intrometeu-se em mim como uma noite desperdiçada. Carregando todos os meus escondidos e indesejados. Pela primeira vez, recusei uma manhã, desacordando-me. Um amanhecer amarelo, fosco, esfumaçado, idoso. Um acorde de restos embaralhados, confusos, sem fronteiras, na alma e no tempo.

Aquela manhã que nunca existiu e, se existiu, foi tanto que não havia mais nada além dos olhos mortos do menino espiando de dentro de um velho calendário.

JÚLIA CONTO DE JOÃO HENRIQUES DA SILV A

 

JÚLIA

 

João Henriques da Silva

(In Memoriam 20/09/1901 – 16/4/2003)

 

Júlia, a Negra Júlia, não havia nascido para brincadeira. Virara mulher antes do tempo e não queria negócio com gente pobre. Gente pobre que prestasse só existia mesmo ela; e mesmo admirava o contraste das classes sociais. Só se vestia de branco ou roupas claras combinando com os dentes iguais, completos e alvos como coco. Não dispensava uma flor nos cabelos e nem uma cinta colorida, de longe já se sabia.

- Lá vem a Negra Júlia. E que Deus a livrasse dos filhos. Poderia nascer um bastardo que lhe daria sério desgosto.

Também não falava em casamento que era negócio pra gente rica. pobre casado só servia para aumentar a miséria.

Negra Júlia empregava-se numa casa e noutra, mas logo dava nas vistas das patroas que a mandava passear.

 E ao sair sempre dizia: - A senhora deveria mandar era o seu marido. É patroa. O que ele me pede eu faço. E não é nada de mais, aliás. Não lhe arranco pedaço.

Era melhor ficar calada, antes que à Júlia se saísse com outras mais vexatórias. Em segundo lá vinham às briguinhas.

- Não tem vergonha, Chico, de andar pedindo as coisas a Negra Júlia. Por que não te das o respeito?

- Conversa daquela doida. Acha-me com a coragem de me misturar com uma pobretona daquela? Só mesmo tua cabecinha tonta pode sair semelhante pensamento.

- Pensamento, o que. Foi ela mesma quem me passou nas ventas. Acha que eras tu que eu deveria mandar embora.

- Mulher atrevida e diabólica. Como tem coragem de inventar uma fuxicada dessa.

- De qualquer forma, pedi a confiança em ti. Bem que eu podia ver, pelo bamboleio, que aquela safada era perigosa.

- Já te disse que não tolero gente com aquelas maneiras, basta vê-los para ter arrepios.

- Duvido! Com uma mulher daquela qualquer um se perde. A bichota dá voltas no corpo igual a uma cobra de cipó. Só por ser muito vulgar. Duvido que enjeite. De qualquer maneira, uma pessoa daquela não me põe mais os pés aqui.

- Bobagem tua. É melhor em casa reservadamente, do que lá fora às vistas do mundo.

- Não gosto de gaiatice!

A Negra Júlia era violenta nos seus amores. Criara fama. Não se oferecia diretamente a ninguém. Bastava, contudo, sua presença para assanhar qualquer um. Eram as suas formas, o seu jeitão de mulher vadia e atrevida. Nenhuma casa de família a queria mais. Achavam até que o delegado deveria proibir de andar pelas ruas naquele desespero de mulher insaciável. Mas, quanto mais se falava, mas ela se exibia, balançando as curvas do corpo, presas no vestido colado. Havia desassossego na cidadezinha. Se ao menos a danada ficasse buchuda, daria um descanso às donas de casa. Mas nem isso. A velha Totonha preparava-lhe garrafadas que impediam de pegar menino. E o pior era aquela sua ojeriza pelos pobres, pois poderia ir se chafurdar com a sua classe. Mas não. Só insultava gente de dinheiro, sadia e corada. Detestava magrecelas. Não tinham sangue nem para eles, quanto mais para derretê-la. Já não trabalhava mais e não lhe faltavam vestidos novos, perfumes e outros adereços femininos. Era evidente que estavam gastando muito com ela e só podia ser os maridos sem vergonha. Os apelos feitos às autoridades eclesiásticas falharam. Não era crime andar pelas ruas decentemente. O melhor era esquecerem a Negra Júlia. O esquecimento é um santo remédio. Além disso, sem emprego. A Negra Júlia teria que arranjar um meio de sobrevivência.

- É pobre, mas também é gente. Tranquem bem os seus maridos. Eu, por exemplo, não a procuro. E Júlia é mulher sem outro trabalho. Tem quer ir mesmo vivendo dos seus encantos. As donas de casa não a querem, mas os maridos querem.

- Mas seu Juiz, precisa-se de uma solução definitiva. A Negra Júlia toma conta de tudo. A gente mesmo se fosse homem estaria sendo tentada. A danada tem azougue é pior dos que visgo de jaca. Pisou caiu!

- Vão ao delegado. Falem com ele. Talvez ele possa conversar com a Júlia, dar-lhe uns conselhos e amenizar a situação.

- Vamos lá, minha gente.

- Seu tenente, viemos aqui pedir providencias contra a Negra Júlia. Anda aí pelas ruas botando feitiço em nossos maridos. Não se tem mais sossego.

- A Negra Júlia! O que foi que ela fez? Cometeu algum crime?

- Pior. Está intranquilizando as famílias. Assanhando nossos maridos que não ligam mais para a gente.

- Mais isso é um descalabro senhoras: ricas, educadas, de posição social elevada, com medo ou ciúme da Negra Júlia? Nem é possível acreditar, este é assunto para tratar como Dr. Juiz.

De lá já viemos.

Então deixam a Negra Júlia em paz. Ela também precisa viver e se divertir.

 

 

 

 

 

segunda-feira, 6 de março de 2023

 

IDALINA

João Henriques da Silva

(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

 

            Idalina era a menina mais triste da pensão de dona Marialva. Olhava para as pessoas como se estivesse com vontade de chorar. Quando lhe perguntavam o motivo, respondia invariavelmente:

- Nada, nada não!

Nunca se vira uma beleza tão triste. E por isto mesmo era Idalina a atração daquela casa de mulheres. Todos que a viam desejavam saber por que uma menina tão nova ainda e bonita como era, podia ser tão triste. Uma tristeza comovente. A tristeza passeava nos olhos de Idalina como um cisne sozinho num lago, solitário. E os frequentadores da pensão, juraram descobrir a causa. Saia com um, saia com outro e todos procuravam entrar-lhe de alma adentro para descobrir o segredo.

            - Nada não, gente. É porque sou assim mesmo. Nasci assim, com este ar de tristeza.

            Para uma mariposa, aquela tristeza, infinda era inexplicável. E nem se podia compreender como se atrevera uma pessoa tão triste, vir para o ambiente das mulheres alegres. Um verdadeiro contra senso. Mas a verdade é que Idalina estava ali e era tão disputada. E também nunca se tinha visto tanta beleza nuns olhos tão tristes. E nem jamais a tristeza dera tanta sorte a uma criatura de vida livre. Idalina passou a ser conhecida pela menina dos olhos tristes. Todas as outras mulheres foram se enchendo de ciúmes por Idalina. Porque aquela preferência, que chegava ao ponto de esperarem que ela saísse de seu apartamento pra voltar a ele logo em seguida ainda cheirando a outro? Que filtro possuía Idalina, que jeito ela dava no corpo para ser assim tão requisitada, bonita ela era, nova também, mas outras possuíam os mesmos encantos. Havia de desvendar o milagre de tanta sorte na prostituição.

            Pois não era, Idalina se enchia de dinheiro, depositando as sobras na Caixa Econômica, quando muitas havia, que mal conseguiam para as despesas obrigatórias. E, além disso, não passava de uma menina triste, recolhida dentro de si mesma, como se não houvesse e nem quisesse amar. Enquanto as demais se enfeitavam, perfumavam, e procurava exibir a máxima sensualidade, Idalina permanecia no seu cantinho com a timidez de uma virgem. Outras mulheres procuravam imitar os seus hábitos, mas sem resultado. É que nenhuma possuía aqueles olhos lindos e tristes que lhe davam uma expressão irresistível. Quem, por acaso já vira olhos mais belos e atraentes num rosto de mulher. E as companheiras chegavam a ter a impressão que Idalina deveria ser um demônio na cama. Só podia ser para enfeitiçar a todos. A inveja crescia e não adiantava procurar recanta-la.

            A procura era a mesma. Sempre aquele – Vamos Idalina. E ela levantava-se com um sorriso feiticeiro e vitorioso.

            No ato comportava-se como se fosse sempre a primeira vez. E como não descobriam o mistério daquela procura ansiosa, as companheiras resolveram aproximar-se de Idalina na intenção de alguma revelação daquele intrincado mistério nos seus amores.

            - Não meninas, não tenho nada demais e nem faço nada de especial. Eu é que não sei por que sou tão assediada. Mas essa fase passa. Perguntem aos que me procuram. Vocês sabem que sou uma criatura triste, sem graça na vida. Aquele risozinho que desprendo quando vou com alguém, é uma pura formalidade. Também seria impossível receber os amigos com secura total. Eles me pagam bem e tenho que me comportar como uma verdadeira amante. Se sou boa no quarto, só eles sabem. Cada uma usa os artifícios que podem e sabem. Um relacionamento, embora sem nenhum prazer, tem que ser agradável aos companheiros. Disso vocês sabem muito mais do que eu, uma quase estreante na arte de enganar os homens. Chego às vezes até a chorar, fingindo um prazer imenso e diabólico. Estou lhes confessando essas bobagens porque estarei pouco tempo mais nesta profissão miserável e suja. Já possuo economias para dedicar-me a outras coisas menos sórdidas. Por que tenho tido também sorte, não sei. E quero deixar de ser mulher de todo mundo antes que a sorte me abandone.

            - E com tanta sorte, porque tens esse aspecto permanente de tristeza. Sempre fostes assim, ou isto é coisa calculada. Não há dúvida de que esses teus olhos tristes são encantadores, aliás, uma coisa estranha.

            - E o que pretendes fazer. Largar tanta sorte por uma aventura qualquer.

            - Nada disto. Não era triste assim. A tristeza veio depois. Esperem mais um pouco e contarei tudo. Quando eu estiver com as malas prontas e o dinheiro economizado na bolsa. Quando tiver a felicidade de pisar pela última vez os batentes de uma pensão de mulheres e não ter que ir para a cama com um desconhecido, fingir amor. Estou chegando ao fim do meu plano. Ninguém é triste porque quer. A tristeza entra nos olhos da gente como um ladrão, força a porta de um apartamento. Entra, leva tudo e deixa a casa vazia. Pois é. Entraram em minha vida e me esvaziaram. Só sobrou apenas esta mulher triste que conhecem. Pensei em suicídio até, mas a morte nada resolve. Morrer é covardia, medo de enfrentar a vida, mergulhar no nada. Ser enterrado numa cova fria e ali apodrecer como um fruto já bichado. Seria uma forma de fuga, mas uma fuga inútil e estúpida. Preferi enfrentar o mundo como ele é. E tive que tomar esta direção, talvez o pior, ou quem sabe, o que o destino ingrato me reservava para me pôr à prova. Descer até o último degrau da degradação humana, vender minhas emoções, o meu corpo, como se vende uma mercadoria deteriorada e esperando quem o queira a qualquer preço, sem ajuste, esperando pela generosidade do comprador. E o pior é que é uma mercadoria que muitas vezes se entrega com repugnância, com nojo do comprador, mas procurando agradá-lo sempre. Ainda hoje guardo o desgosto de relacionamento com um criador de bodes. Tive a impressão de que estava enrolada em um couro de pai de chiqueiro ou me impregnando com aquele cheiro do satanás a que tenho pavor. Fique de tal forma impressionada que de lá para cá nunca mais comi queijo de coalho que as vezes tem o cheiro do bicho. Atirei fora minhas sandálias de arreatas de couro. Quando me vi com aquele bicho em cima de mim, forçando e grunhindo, quase tive uma vertigem. E até hoje não houve banho, nem água quente que retirasse o cheiro caproíco do animal mal lavado. E quando penso que dentro de mim estava um pedaço daquele cheiro que o diabo botou no bicho, é que avalio quanto é desgraçada a prostituição. O dinheiro que me deu, dei ao primeiro pedinte que apareceu. A mesma nota de cinco mil reis.

            Como mulher de pensão, tenho sido feliz na infelicidade da profissão. Posso imaginar a amargura de algumas mulheres que além de tudo, ainda não tem sorte pelo menos para ter o suficiente às suas necessidades primárias. Criaturas que vão envelhecendo sem um níquel amealhado e na perspectiva de se apresentarem como mendigas ou simples peniqueiras em uma pensão qualquer de mulheres. Chega-se, assim, a estrema degradação social. Ser puta e nem mais isto poder ser, por que ninguém as quer mais.

             Estou preste a abandonar esta profissão infame. Irei voltar para minha família, da qual me afastei para não a envergonhar. E não culpo ninguém por este acidente na minha vida.  Casei-me contra a vontade de todos. Casei fugida. Nasceu uma menina a mais linda criatura que já vi. Meu marido tornou-se estúpido e violento. Fugi dele. Agora sei que ele morreu de um colapso cardíaco. Procurava-me para vingar-se. Havia de liquidar comigo. E o fantasma da morte, me apavorava. Escondida aqui, mesmo assim tinha medo. E até antes de morrer, jurava acabar com minha vida.

            Era odiento e irresponsável. Minha filha eu a deixei com minha mãe, onde ainda está. Se tivesse ouvido os conselhos de minha família, os seus apelos, suas advertências, não seria a Idalina que sou, esta moça triste que vocês conhecem, vivendo da prostituição, coisa que nem chega a ser uma profissão e se fosse seria a mais desclassificada de todas. Tenho hoje, no meu corpo marca abjeta de todos esses homens que me levaram a saciar os seus desejos. Marcas que não se desfarão nunca. Jamais senti prazer com nenhum deles. O bem querer que fingia cada vez que me procuravam, era uma nova ferida que não cicatrizava. Era apenas uma espécie de deposito onde se despeja liquido sujo dos prazeres dos outros.

            Eu seria a Berenice dos anjos, aquela moça criada com mimo, de alma limpa e coração puro. Minha família, no meu entender, não sabia o que era o amor. E eu amava, inocentemente, um animal indomável e coiceiro. A estupidez chegava às raias da monstruosidade. Cada gesto era uma patada, cada palavra um coice. Fugi numa de suas ausências. Deixei as escondidas minha filhinha e uma carta à porta da casa de meus pais. E deixei uma amiga para me informar dos acontecimentos.

Vou despedir-me. Sejam felizes.

            Partiu de verdade. Ganhou o oco do mundo, para um lugar mais perto dos seus, até tomar chegada de novo.

            A turma da pensão, logo depois recebeu uma carta da colega que agora era uma borboleta livre.

            - Meu ex-marido morreu. Mesmo assim, talvez ainda me ande procurando para uma vingança. Mas estou aliviada e sem medo. Aquela minha tristeza era saudade de minha filha e medo de ser surpreendida a qualquer momento. Tudo poderia acontecer. Agora estou livre e não essa mulher de vida livre que vocês conheceram, mas, livre para abraçar e beijar minha filha, meus pais e manos. Nunca terão de saber que me prostitui. Antes de encontrá-los, vou me confessar para expurgar-me. Em casa serei uma ex-empregada doméstica. Mentir para não dar mais desgosto à família. Se souberem que levava esta vida miserável, nem me receberiam. E há quanto tempo não tem notícias minhas. Eu tenho deles. E pelo que sei, nem têm coragem de perguntar por mim.

            E quando, por acaso falam, apenas uns olham para os outros em silêncio. Sinal de desapontamento e tristeza. Mas vou chegar lá com esses meus olhos tristes, e que tanto sofreram. Não irei fazer surpresa. Já escrevi para casa. Meu ex-marido não me faz mais medo, pois não tenho medo de alma do outro mundo. Paguei caro minha desobediência. Quem não ouve pai e mãe, sempre se dá mal. Eu estava cega, mas não estava mouca.

            Quero um abraço de todas vocês. Perdoem-me e sejam felizes. Deixem esta vida suja quando puder. Creio que não nos veremos mais.

            Adeus,

            Berenice.