terça-feira, 24 de março de 2015

ELIANE


ELIANE*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

Nunca se vira uma noite mais comprida do que aquela. Os minutos pareciam mais longos do que as horas e aquele tique-taque do antigo relógio de parede martelavam na insônia do Agostinho, como se fosse um malho de mil quilos. O remédio era parar o relógio, mas logo sentiu que aumentava o silêncio e ficava mais só ainda.
Balançou o pêndulo e torceu a chave da corda para dar-lhe mais força. Esperava apenas que o dia clareasse para se libertar daquela angústia. Para onde teria ido Eliane aquela tonta. Mas ao mesmo tempo reconhecia que ela tinha certa razão.
O culpado era ele, com aquelas cenas de ciúme com que a atormentava. Eliane, afinal que culpa poderia ter de ser tão bonita como era. E na verdade nunca havia surpreendido se oferecendo a ninguém. E por que diabo ficava louco quando algum homem a cumprimentava ou dava uma espiada furtiva no corpo de Eliane. Quem, por acaso, poderia encontrá-la sem ter um arrepio de admiração e talvez até de desejo.
Nova como era, com aqueles olhos, aquela boca, os seios pequeninos e aquela forma do corpo, não poderia deixar de atrair atenção. Mas daí até ser infiel, ia uma distância enorme. Agostinho coou um café bem forte, bebeu como quem toma um tônico, acendeu um cigarro, montou no seu melhor cavalo, olhou para as três saídas e teve dúvida por qual delas deveria seguir. E nesse instante ocorreu-lhe um pensamento diabólico.
E se Eliane tivesse fugindo com alguém. Aquela idéia assustou-o. Procurou na cinta o revolver, examinou-lhe a carga, aprumou a faca de ponta e saiu ruminando suas conjecturas. Parecia-lhe inacreditável, mas sempre era fácil acontecer uma desgraça.
Eliane poderia muito bem não ter suportado mais suas desconfianças, seus arrufos e ter procurado libertar-se. Além do mais não havia se casado ainda, por culpa dele próprio que ia sempre protelando, embora ela sempre falasse com ele a respeito.
Tudo isto era uma insegurança para Eliane. Agostinho não procurava entender. O que estava claro é que Eliane o havia deixado, sem uma palavra, sem um gesto ou uma explicação.
Enquanto o cavalo já suado, trotava pelo caminho duro, Agostinho pensava em Eliane que poderia estar bem agasalhada nos braços de alguém, completamente esquecida dele. Ou, quem sabe sozinha e triste desorientada, sem rumo certo a seguir. A primeira hipótese desesperava-o. Certamente não estaria em casa de parentes onde seria fácil ser encontrada.
Eliane, ao contrário de todas essas conjecturas, nem havia saído da cidade. Mudara-se apenas para outro extremo, como auxiliar em casa de família. Não lhe era mais possível suportar aquela situação de nem casada nem solteira e muito menos a ciumada de Agostinho. Com toda a certeza iria perdendo os encantos e terminaria uma criatura sem opções.
Não era egoísta, mas, pobre como era, a única coisa de que se poderia valer era dela mesmo. Agostinho que havia prometido tudo e tinha condições para torná-la feliz, ia sempre adiando suas promessas e antevia que mais tarde poderia abandoná-la e já era tarde demais pra ela.
Sempre fora uma moça correta, limpa de corpo e alma, sonhava com um casamento que lhe desse estabilidade. Quando Agostinho mostrou-se apaixonado ela própria encheu-se de confiança.
Ainda inexperiente, desconhecia as artimanhas dos homens. E por que a gente não se casa logo, Agostinho?
Deixe completar a maior idade. Faltam somente alguns meses e quero tirar-te daqui. Não suporto ver-te como empregada doméstica. Quero-te como dona de casa, a gente se amando como mereces. Juro-te que nos casaremos logo. Tenho medo que algum outro se apaixone por ti e nuca mais terei tranqüilidade na vida. Não posso perdê-la.
E foram tantos dias nessas mesmas promessa e juras que Eliane abandonou a casa da patroa e dormiu a primeira noite com Agostinho. Começou então a ciumada. Eliane era muito mais do que Agostinho supunha.
Era uma companheira excepcionalmente dedicada e com atrativos que Agostinho nunca sonhara. Daí veio-lhe a ciumada terrível. E conjecturas que poderia perdê-la. Assim como saíra com ele, poderia ir-se com outro do dia para a noite. E voltar para casa sem uma leve notícia. Imaginava que ainda teria sido pior se houvesse casado.
Então já não era só Eliane, mas a sua mulher legítima. Considerava-se, no entanto culpado de tudo. Uma criatura honesta não poderia suportar uns excessos de zelo, isolar-se do marido como se eu fosse a única pessoa com o direito de vê-la e admira-la. Perdia-a só por incompreensão e egoísmo.
E onde andava Eliane. Sem nenhuma esperança, Agostinho andava numa e noutra direção, contando apenas com o acaso. Procurava os amigos e os parentes de Eliane e ninguém sabia de seu destino.
- Nunca mais tivemos a menor notícia. Deve ter-se ido para bem longe.
Jamais lhe passava pelas idéias de que pudesse estar na cidade curtindo os seus dissabores e sem esquecer Agostinho.
Todavia preferia não encontra-lo. Doía-lhe aquela desconfiança de infidelidade. Poderia suportar tudo, menos aquele tratamento injusto e inexplicável. Mantinha-se retraída e reprimindo desejos. Certamente não era a mesma Eliane do tempo de moça, quando apenas sonhava com o amor. Entretanto, resistia às noites de insônia que lhe vinham.
Sabia muito bem que teria namorados se quisesse, mas na realidade não pretendia ser de mais ninguém. E passavam-se as semanas e o tempo passava com aquele embalo do corpo a fazê-la sofrer. Deixara de ser a Eliane alegre dos primeiros tempos, como se estivesse com o pensamento distante. Dona Almira notava a diferença. Não seria justo deixa-la assim. Certamente algum problema íntimo, natural nas mulheres daquela idade.
- Vem cá, Eliane. O que está se passando contigo, menina. Seja franca comigo. Talvez possa te ajudar de alguma forma.
Eliane ficou parada por alguns momentos. Pensava friamente sobre sua situação. Poderia ser dispensada do seu trabalho, uma vez que havia ocultado o seu segredo.
- Vai, fala Eliane. Entre duas mulheres não deve haver segredo.
Eliane contou-lhe tudo. Saíra de casa com promessa de casamento. Mas além de não haver se casado seu companheiro castigava-a com uma ciumada terrível. Não que tivesse culpa de qualquer espécie. Era simplesmente ciúme doentio do Agostinho. Ninguém poderia olhar para ela ou fazer-lhe um leve cumprimento. O homem via nisso o começo de sua desgraça. Tinha medo de perdê-la. Não mais suportei. Estava sendo injusto. Juro. Nunca havia pensado em alguém. Antes de tirar-me da casa de minhas tias, nuca havia tido um namorado. Nada passava de alguns olhares furtivos. No entanto, Agostinho assustava-se até com os seus melhores amigos. Eu não podia sair de casa, nem acompanhado com ele. Deixou até de frequentar a igreja. Então não pude mais. Fugi. Não lhe deixei um roteiro. Era assim dona Almira. E agora começo, nem sei como, a pensar em Agostinho. Senti saudades dele. A senhora sabe, como estou, dificilmente conseguiria me casar. Também não quero ser uma doidinha qualquer. Não sei assim, o que poderia fazer.
- Queres um conselho. Não custa ir até lá colher informações. Muita coisa poderá ter acontecido. Só se tem ciúme quando se tem muito amor. O Agostinho deve ter ficado desesperado.
- Tenho medo, justamente por isto. Ele pode estar pensando que fugi com outro qualquer.
- Então façamos o seguinte. Mando-lhe meu endereço e digo que quero falar com ele. Tu não apareces. Nem digo que estais aqui. Vejo a reação do moço e tomar-se-á a orientação que for mais acertada.
O bilhete foi para o correio. Eliane ficou na observação. Não poderia ser colhida de surpresa. Não saía e nem se apresentava à janela. Apenas, furtivamente, procurava reconhecer que a chamasse à porta.
E não tardou. Agostinho ao receber o endereço, ficou convicto de que se referia a Eliane. Não podia ser outra coisa. Desconhecia qualquer dona Almira. Tomou o primeiro transporte. Bairro da Soledade. O coração batia mais e mais à medida que se ia aproximando. Será que Eliane está doente ou esteja preparando-se para ser mãe? Deus do céu, como esta vida é complicada.
Afinal o ônibus para na pracinha da Soledade. Perguntou as mocinhas da calçada se conheciam dona Almira.
- Sim. Aquela casa cor de rosa lá naquela esquina. Aquele casarão. A mais alta daqui de Soledade.
- Mora alguém com ela?
- Não sabemos. Tem, sim, filhos. Dois rapazes solteiros. Gente muito direita. Dona Almira é viúva e rica. Os filhos dirigem a casa comercial.
- Obrigado meninas.
Agostinho pensou logo em Eliane em casa de viúva com dois rapazes solteiros. Um perigo danado. Mas seja o que Deus quiser.
Bateu palmas à porta e demoraram a vir atendê-lo. Era um domingo, claro e saudável. Agostinho ouviu o canto das graúnas e do galo de campina. Eliane já havia o identificado através da fresta da porta da sala vizinha. É ele dona Almira. Por favor, não quero aparecer.
- Não te preocupes. Sei o que fazer.
- Boa tarde. Quem é o senhor?
- Agostinho, Agostinho Sarmento.
- Muito bem. Queira entrar.
- Recebi sua carta, minha senhora, e aqui estou à sua disposição.
- Então vamos ao assunto. O senhor deve estar ansioso.
- Sim, estou.
- Casualmente conheci uma jovem, chamada Eliane. Contou-me sua história. Disse que o senhor tirou-a de casa prometendo casamento e não casou como prometera. Além disso, tornara-se um ciumento doentio. A moça não suportou mais e preferiu deixa-lo em paz. Morria de amores pelo senhor, mas sentia que estava atormentando sua vida, o que não acha justo e, então, tomara a decisão de deixá-lo tranqüilo.
- E onde está ela?
- Por ora não estou autorizada a dize-lhe. Isto depende dela. Em nossa casa não está, embora gostasse de tê-la aqui com a gente. É uma moça ajuizada, muito direita. Anda ultimamente muito triste. Tive pena dela e por isto tomei a iniciativa de procurá-lo.
- E será que ela quer voltar comigo? Tenho procurado por toda parte. Já andei por todas as cidades vizinhas, pelos sítios e fazendas. Desiludi-me e considero-me perdido. A vida para mim é como uma palha seca que o vento leva para onde quer. Fui culpado de tudo. Amava tanto Eliane que tinha ciúmes até da brisa que lhe acariciava o rosto. Ela sempre foi fiel, compreensiva, adorável. Eu, um doente de amor.
- Olhe senhor Agostinho. Pelo que ela me contou, só sairá de onde está casada no religioso e no civil. Seja como quem for. E nunca como pessoas ciumentas como o senhor. Sempre foi uma moça honesta, dedicada somente ao Agostinho e ele não compreendia isso. Foi assim que me contou.
- Queria falar com Eliane. Pode me dar o endereço?
- Por ora, não. Faz de conta que sou mãe dela. Sem casamento e acerto de convivência, nunca.
- Mas eu me casarei, até agora mesmo. De ciúme nem sombra. Eliane não merece e não merecia. E eu é que não a merecia. Somente depois que ela se foi é que me apercebi da injustiça que cometia. Sem Eliane estarei perdido para sempre. Ninguém acabará com o vazio de minha alma. Queria tanto vê-la para confessar o meu grande amor e tudo quanto trago de arrependimento. Antes nunca a tivesse visto. A senhora não sabe como se morre de desgosto.
Dona Almira, pediu licença e entrou prometendo trazer-lhe um cafezinho. Já estava coado. Alguns minutos depois, entra na sala acompanhada de Eliane. Agostinho perdeu a fala e ficou imobilizado pela emoção. Não era possível. Eliane ali pertinho dele, os mesmos olhos, o mesmo corpo atraente e um sorrisinho querendo soltar-se de boca mais bela do mundo.
- És tu, Eliane. Posso falara contigo, apertar-te as mãos Eliane. Tu me perdoas, esqueces tudo que fiz contigo, imerecidamente, Eliane. Posso dizer o teu nome. Durante todo esse tempo chamo por ti, como se estivesse brincando de te esconder, Eliane. Fiz muitas promessas para te encontrar. E agora vou rezar para esta santa Almira que te acolheu e colocou-me diante de ti, mesmo que não queiras mais. Já foi muito ver-te e saber que encontrastes uma segunda mãe.
- Pois é, Agostinho. Eliane desejava notícias suas. E agora é ela quem vai decidir. Somente uma coisa posso adiantar-lhe. Não sairá desta casa sem estar casada e para uma convivência de bons amigos. Farei tudo o quanto Eliane desejar, contanto que a tenha de volta sem ressentimento.
- Até hoje, Agostinho, privei-me de tudo. Dona Almira sabe de minha conduta. Deixei-te por que não confiava em mim. E isto me magoava demais. Também, não deseja ser uma mãe solteira. E antes que isto viesse acontecer, tomei aquela decisão. Nunca deixei de ti querer bem. Mais magoastes demais. Honesta como sempre fui e sabes disto, não podia mais conviver com as tuas desconfianças.
- Acompanho-te, sim, mas, casada e merecendo a tua confiança. Fora disto, apenas desejo-te felicidade. Procuras outra, o que é tão fácil.
- Olha Eliane, hoje sou outro Agostinho. E naquela casa só está faltando Eliane. Não irás fazer nova experiência.
Oito dias depois já estavam casados. Eliane confessou:
- Não quero perder-te, mas me perderás para toda vida se não confiares em mim. Casamento não é pão e água. Isso se tem sem ele.
E já hoje quem visitar as casa de Agostinho, encontrará um casal de velhinhos de cabeça branquinha e ainda como dois namorados. Ficam sempre se olhando como nunca se tivessem visto. Quando falavam relembrando o passado, riam gostosamente e davam palmadinhas um no outro como se o amor estivesse começando.
- E ainda queres fugir?
- Ainda tens ciúmes de mim?
E riram como duas crianças que haviam feito uma diabrura.
E viviam nesse enleio gostoso. Risos, palmadinhas e saudades da mocidade. Da cama macia e do cheiro dos travesseiros.
- Safadinha!...
- Safadão!...
*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.





domingo, 22 de março de 2015

SEU MARCOLINO


SEU MARCOLINO*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

É bem certo que o destino marca as pessoas. Uns nascem com sorte, outros sem a bicha. Seu Marcolino veio ao mundo sem ela. Sem sorte para o casamento.
Antes de tentar o noivado ou coisa parecida, quase se arrebenta no trabalho para conseguir os meios para manter bem uma casa e dar conforto à família. E já andava na casa dos trinta, quando se julgou apto. E não tinha dúvida de que isto ajudaria a uma boa escolha.
Vivendo do comércio, conseguira uma alentada freguesia e os lucros não lhe deixavam mais qualquer dúvida no tocante aos seus bons propósitos. Meteu, então, os peitos na empreitada. Até então, nem se preocupara com isso. Sigilosamente visitava pensões de mulheres e nada mais. Casamento havia de ser dentro de sua programação. E não tinha pressa, mas tinha medo de envelhecer sozinho na solidão de uma casa vazia. Seria um fim de vida terrível. Sem o aconchego de uma boa companheira, sem o carinho dos filhos, tinha certeza que morreria antes do tempo.
Passou assim, a sair mais, frequentar festas e reuniões. Vira pra lá, vira pra cá encontrou a mulher dos seus sonhos, a Lucília, morena clara, de olhos azulados, cabelos pretos e um corpo flexível desses de dar nó.
Lucília, embora, procurando retrair-se, estava convicta que aquela era a sua vez. Aparentava certo desinteresse para aguçar a paixão do Marcolino. Com o tempo veio à aproximação definitiva. O noivado foi rápido, e o casamento esta pra sair. Casa preparada, e quase que só faltava mesmo fazer a primeira feira. Estava nas vésperas, quando Marcolino recebeu um bilhete com letras de mulher dando-lhe um aviso lacônico:
“Não se case. Fulana não serve para o senhor. Já era. Terá uma grande decepção.”
Marcelino assustou-se. Aquilo poderia ser uma brincadeira de mau gosto. Havia muita gente maledicente. Talvez alguma interessada nele, pois na verdade era um homem habilitado a casamento. Em todo caso, cismou e fez uma carta acabando o noivado, alegando que à última hora percebera que não lhe tinha amor verdadeiro.
Lucília que não era uma inexperiente; percebeu o verdadeiro motivo e, sabida como era, fez-lhe também uma carta agradecendo a sinceridade: “Era melhor assim e evitaria, se insistisse ouvir a verdade”.
Muitos comentaram em surdina:
- Alguém desarmou a esparrela. Afinal foi em tempo. Não merecia tamanho logro.
Mesmo assim ninguém lhe disse nada. – A moça era de boa família não havia necessidade de magoá-la. Com pouco tempo o episódio estava esquecido.
Marcolino partiu para outra. Iria ser mais cuidadoso. Consultaria amigos, se necessário. Vai daqui, vai dali, enamorou-se da Valquíria, moça de mais idade, mas com toda aparência de honestíssima, sendo inclusive, zeladora da igreja. Religiosa a toda prova e sempre recolhida. Comungava todos os domingos e Marcolino, católico como era, dava-lhe todo valor. Queria mesmo ver se lhe daria com nova advertência. Em todo caso, demoraria mais o casamento, de orelha ao vento.
Um mês depois, já lhe parecia que não havia mais por que esperar para chegar ao noivado. O comportamento de Valquíria era cada vez mais aprimorado. Mesmo assim, não deveria ainda apressar o casamento. Quando mais conversava com Valquíria, mais se aprofundava a convicção de que daquela feita estava no caminho seguro. Foi indo assim até que correu o primeiro banho, que lhe parecia o banho da felicidade. O padre Antônio, quando o encontrava, não deixava de felicitá-lo pela excelente escolha.
 Moça bonitona, bonitona mesmo dos pés à cabeça e daquelas de seios pequeninos como ele adorava. Chegou até a comprar uma nova cama de casal para evitar que Valquíria pensasse que estava deitada na cama destinada à outra.
Ao correr o segundo banho, quando Marcolino chega a casa, lá está uma carta enfiada por baixo da porta e que dizia:
“Meu amigo Marcolino. Da primeira vez ia cometendo um grande erro. Desta vez o atoleiro é muito maior. Não se iluda. O senhor é um homem sério, um homem de bem e não merece igual traição. Ouça a que lhe estou dizendo. Aquilo é pior do que um velho buraco de formigueiro em tempo de chuva. Atola o boi e o vaqueiro de uma só vez. De santa só tem mesmo a cara. Não lhe digo quem foi o cavouqueiro, mas o senhor o conhece muito.”
Estava patente que aquela letra de mulher, a mesma da primeira carta escondia uma segunda intenção. Não era possível tamanha coincidência. Ou então seria azar de mais. E não poderia crer que uma criatura tão católica, tão comungadeira, fosse uma extraviada. Era melhor não dar ouvidos. E por que ter mais dúvida. Era alguém interessado nele. Estava claro.
Correu o terceiro banho e Marcolino encontrou desta vez um bilhete em letras grandes:
“Vai se atolar mesmo? É pena. Não vá pensar que tenho qualquer interesse no senhor. Apenas sou sua maior amiga. Sei que tem gente lhe atiçando e ele sabe bem porque está fazendo isto. Dê no pé, Marcolino. Desta feita nem as orelhas vão ficar de fora. Depois não se lamente, ou diga que não lhe avisaram. Se insiste, compre logo um balão de oxigênio para não morrer afogado. O poço é profundo. Já tiraram muita terra dele. E ainda estão tirando, como despedida. Fico rezando pela sua sorte. Adeus.”
Marcolino botou as mãos na cabeça. A coisa lhe parecia muito grave. Mas, como se poderia mistificar tanto. A Valquíria, no dizer do padre e no comportamento, era uma santa. Deus do céu! Que diabo de desculpa iria arranjar para novo descarte. E logo uma pessoa do padre. Mas não era brincadeira, um formigueiro que atola o boi e o vaqueiro. Não havia jeito senão cair fora.
E lavrou uma carta macia, quase chorosa. Não a merecia. Não a queria tirar dos pés de Deus para submetê-la a um sacrifício. Possuía um temperamento esquisito, cheio de altos e baixos. E Deus que o livrasse de fazer-lhe a infelicidade. Estava, pois, tudo, definitivamente acabado. Que o perdoasse, mas precisava ser sincero e justo. Não se expõe uma santa às tormentas da vida.
E lá se foi pela segunda vez, às esperanças de Marcolino. Seria melhor desistir de uma vez por todas. Vender as duas camas e morrer solteirão. Não era brincadeira: - Corno na folha duas vezes!...
Estranhava que os amigos, mesmo os mais aproximados não lhe dissessem nada. E em parte a culpa era sua. Ignorava tudo que se passava na cidade. Sua preocupação era só e só, prepara-se para um futuro casamento. E os amigos, estavam certos. Não tinham nada que se envolver com a vida alheia. O erro havia sido sua indiferença pelo ambiente em que vivia. E era tal o seu recolhimento que ninguém tinha coragem de fazer certos comentários e confidencias. Embora tarde, mas tinha que abrir os ouvidos e os olhos, Nem atinava como diabo tinha podido viver assim até aquele instante. Fora do mundo, só farejando lucros.
E com as duas frustações, mais distanciados ficaram os amigos, talvez com, receio de comentários. Era melhor desistir de uma vez. No entanto, por ora isto não traria sérias consequências, mas na velhice, ficar só seria terrível. Em todo caso, faria um intervalo, deixaria esfriar a cabeça e seria mais cauteloso, principalmente porque o diabo está sempre nas encruzilhadas espreitando os incautos. Não se esquecia dos elogios de seu vigário. O bicho deveria estar metido naquela dança. Duvidar, por quê?
Marcolino foi a uma pensão de mulheres para afogar as mágoas. E lá já sabiam que havia desfeito o segundo noivado. Fizeram-lhe alguns comentários e Marcolino justificou-se à sua maneira. Nesse dia passou da cerveja para o uísque, bebida mais forte e capaz de dissipar suas mágoas. E teve até uma ideia; casar logo com uma menina-mariposa, evitando assim novo engano. Mas, logo lhe veio à reflexão. Casar por que, se elas estavam ali à sua espera, sem água benta e variáveis. Burrada. Culpou o uísque. Saiu pela madrugada e de pouca distancia voltou para não dormir só. Evitaria as recordações, especialmente a conversa fiada do reverendo que pretendia amparar a zeladora.
Por mais de um mês não cuidou do problema – casamento. E foi a parti daí que reiniciou suas pesquisas. Casualmente encontrou-se com a dona Lia, viúva sem filhos e ainda nova, nova e bonitona mulher. Ali estava a solução, pelo menos aparente. Então não poderia mais haver engano. Tudo agora iria depender da Lia, que enviuvara tão moça. A sorte é que não era rica. Botou-se a ela de faca e garfo. Não foi difícil. Marcolino noivou logo e marcou o casamento para breve. A casa estava esperando. Nada melhor do que uma viuvinha sem filho.
Casaram-se e foi aí que veio a surpresa danada. Marcolino caiu das nuvens. Pois não é que a Lia estava intacta!
- Como foi isto, Lia. Quase um ano de casamento e sem saber o que era o casamento.
- Má sorte minha e sorte tua. O Florêncio não era de nada. Só prestava mesmo para fazer feira e fazer-me companhia. Tinha pena dele, coitado. Tinha caído de uma escada as vésperas do casamento e ficou inutilizado. Mas era um amor de homem. Fazia tudo para me agradar, mas não deixava nem rastro. Creio que morreu de desgosto.
Marcolino não tinha outro jeito se não acreditar no destino. Mas a surpresa maior viria depois. Algum tempo depois de casada veio à confissão de Lia: Era ela quem advertia Marcolino. Não que, naquela fase se interessasse em casamento, mas unicamente para evitar que alguém passasse pela frustração que havia passado com o seu casamento. E pior ainda, pois, em vez de ficar apenas privado, como lhe acontecera, de realizar o seu melhor sonho, Marcolino sofreria a decepção de ser iludido e, no último caso, com a conivência do padre, numa sujeira sem nome. Lia conhecia bem a vida das duas nos seus amores secretos.
- Ah! Lia, sinto-me, agora, com um grande alivio na consciência. Não imaginas como me angustiava a ideia de que poderia ter sido desleal e injusto. A pessoa que me avisava poderia ter outras intenções.
- Ora, meu ex-marido, contava-me tudo com o fim de evitar que mantivesse ligações com qualquer uma delas. Tua primeira noiva estudava na capital, morando numa pensão de moças. Foi aí que estudou demais... Aperfeiçoou-se em “fisiologia anatômica”... E não largou mais... A segunda, a zeladora, segundo as más línguas, rezou demais... E ainda deve continuar rezando. E muito católica e resta demais o senhor vigário...???

*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

sexta-feira, 20 de março de 2015

CORONEL CARLINHO

CORONEL CARLINHO*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


            A notícia saiu com desabalada carreira, atravessou ruas, dobrou esquinas, entrou de portas adentro como sempre acontece nas cidades pequenas. Ninguém ficou sem saber. A filha única do chefão político havia fugido. E fugira com um adversário dos mais ferrenhos e atrevidos.
O coronel Carlinho estava possesso, ameaçando Deus e o diabo, pisando sem olhar onde. Entrava saia, gritando para quem quisesse ouvi-lo.
– Não vou perdoar. Corto as orelhas daquele atrevido. Mando tirar-lhe o couro vivo. Esturrava como uma onça no alto da serra. Dava poupas de mostrar o úbere. Ao que se via, o desastre estava iminente. Gente saia para todos os lados com ordens severas. Trazer os dois vivos, mas trazê-los de qualquer jeito. Mas, acontece que uma noite quase toda era bastante tempo para já andar longe. Ademais ninguém atinava que rumo seguir. E as paradas pra sondagens retardavam a marcha que, para falar a verdade, era desinteressada para os espoletas do coronel. Iam porque iam, mas de certa forma gostando do acontecimento. Não chegava notícias e o coronel Carlinho desesperava-se.
- E aquela tonta por que diabo havia de fazer-me uma dessa. Tonta e sonsa. Quem havia também de supor tal disparate.
- Acalma-te, Carlinho, Aconselhava-lhe a mulher. Isso não acontece apenas com a gente. Muitos outros têm passado por dissabores iguais ou até maiores. E, afinal de contas, o Cipriano é teu adversário, mas é um moço correto e vive muito bem. Não se conhecem atos que o desabonem. Além disso, Zulmira é nossa filha e merece nossos cuidados e carinhos. Não é uma qualquer. Moça prendada, sempre foi uma excelente filha.
- Ora essa, Japira, é por isto mesmo. Um inimigo político ter o desaforo de levar nossa filha, que não dou por ouro nenhum. É atrevimento demais. Quero pegar o bicho para dar-lhe um ensino em regra. Está esquecida do desaforo daquele ordinário fazendo-me oposição, a mim, coronel Carlinho, chefe desta bilosca. Ah! Não posso perdoar. Sabes, por ventura, a estas horas onde anda com a menina e o que já não fez com ela. Vou persegui-lo até apanhá-lo. Volte ela como voltar, com aquele cafuringa não se casa. Sim senhora, ricaço, bonzinho, como dizes, mas foi sempre contra mim, o que não perdôo. Se aqueles cabras de peia não os encontrarem, irei eu em pessoa. Pode se socar nos cafundós de Judas.
Dias e mais dias sucederam-se e os cabras iam voltando sem ao menor sinal dos fugitivos.
- Há esta hora já estarão casados, adiantava dona Japira. E não terá mais jeito. Larga essa caçada de mão e vamos, pacientemente, esperar alguma notícia. Mas cedo ou mais tarde, Zulmira não nos irá esquecer. Tenho certeza. Teve coragem de fugir te conhecendo, terá coragem de voltar ou dizer onde está.
Mas o coronel Carlinho era irredutível, confiado em sua posição de chefe, velho chefe daquela gangorra.
- Carlinho, acaba com esse ódio, Carlinho. Lembra-te que o Cipriano não tem medo de te e muito menos desses cafuçus que te cercam. Além disso, é uma má política, esta tua. O moço é de família importante cheia de eleitores e o casamento com a Zulmira é uma forma de conquistar-lhe a amizade e os votos. Onde está esta tua cabeça. Só pensas em mandar, ser chefe, dominar todo mundo, como se fosses o dono de tudo. Por mim já terias deixado essa politicalha de borra enquanto é cedo. No dia que perderes uma eleição, verás a que vás ficar reduzido. Larga essa bilosca, casa nossa filha, e entrega o comando político ao teu genro. Isto sim. Vai descansar matar tuas pulgas, comer teu angu tranquilamente.
- Na verdade, bem diz o ditado, juízo de mulher é nos calcanhares. Deixar de ser chefe e passar a ser espoleta ou cabo eleitoral de um mocupa daquele. Só mesmo de tua cabeça pode sair uma sugestão tão pífia. Sabes por ventura quanto me custou chegar a ser chefe. Sim, chefe, sem letras, forçando a barra, passando humilhação, para entregar-me de mão beijada como um galo que cai do poleiro. Nunca!
- Faz isto por nossa filha. De que te tem servido e de que te servirá essa vaidade idiota de ser chefe. Chefe de uma povoeta desta, metida no fim de todas as estradas. Toma tento, enquanto é tempo. E depois o teu genro irá te prestigiar. Sim, vai procurá-los, mas com essa finalidade. Fazer as pazes abençoá-los e viver na sombra e água fresca.
- Pelo que vejo estás parida pelo Cipriano! Falta de respeito. Não te preocupes não que dou conta dele. Atrevido. Por que não pediu a menina. Fazia uma carta, se tinha medo de me ver.
- Cipriano nunca teve mede de ti. Que esperança... Nem teve e nem tem. Cipriano é cabra macho, queiras ou não queiras. A prova está aí. Carregar tua filha, já fez dela o que bem quis e nem está dando bola...
- Estou te desconhecendo ou não me conheces mais. Abre teus olhos. Estas insinuações são ofensivas aos meus brios de homem e de chefe. É uma atitude inqualificável.
- Inqualificável é essa tua teimosia. Deus queira que não te aconteça o que estou prevendo ou estais ficando um sempre forte burro. Estás vendo que as coisas estão mudando. Fala-se que a oposição vai ganhar as próximas eleições! E parece provável. Se acontecer, amanhã, terás juiz, padre, delegado, tudo contra. Perderás a tal da chefia. Passarás a ser um mamulengo, um papangu qualquer. Surge a oportunidade de te saíres e jogar fora com as mãos a tua caturrice. Vai dormir e pensa nisto, seu pateta.
- Não me ofendas!...
- Não estou te ofendendo. Estou procurando salvar-te a pele. Isto sim.
- Correio!
Dona Japira voou até à porta. Pegou a carta como um pássaro faminto que encontra um fruto doce e maduro. Felizmente o coronel Carlinho não estava. Leu-a com sofreguidão. Zulmira contava tudo. Estavam casados no padre e no juiz, vivendo otimamente. Seu sofrimento era apenas muita saudade e o sentir imensa falta da família, mas espera curar brevemente esse estado emocional. E acrescentava: “Não mando o endereço certo, responda para este que vai na carta. Dependendo da resposta, se vier favorável como esperamos, enviarei o correto. Não postamos no correio da cidade onde estamos, e sim numa bem distante de um amigo. Papai a quem tanto amo e de quem tenho ilimitadas saudades poderá estar muito brabo com a gente. Pedimos a ele que nos perdoe. Só fizemos isso por amor. Sem isso não lhe daríamos tanto desgosto”.
- Ótimo. Vamos agora ver a reação do Carlinho, o brabão, cabeça de burro velho coiceiro. Só pensa em vingança com aquele orgulho besta de chefe. Chefe uma peitica. Coisa mesmo de matutão beócio do interior.
Junto com a carta vinha um retrato dos dois, juntinhos e plenos de felicidade. Dona Japira beijou os dois e levou um tempão olhando-os e admirando-os. Findou com lágrimas e risos de alegria e de saudades.
Coronel Carlinho chegou. Notou que a mulher estava com cara de alegria, mas controlou-se.
- Alguma notícia, Carlinho?
- Nada, nada. Aquele espritado há de aparecer. Não lhe darei tréguas. Vai me pagar mais caro do que pensa. Irá saber o quanto custa bulir com filha de homem.
- Pois tenho notícias e boas...
- Boas como. Não devem ser boas mesmo por que agora eu o pegarei. Tinha certeza certa de que mais cedo ou mais tarde cairiam no meu bisaco. Só quero saber de uma coisa. Onde estão. Só isto. O resto guarda contigo. Eu mesmo irei olhar para a cara deles.
- Lê. Deixa de tanto caturrice e de tanto ódio. Não irás fazer nada contra tua filha e teu genro. Vai te confessar com o padre Adriano para ver se ele tira essa mania de chefe, esse orgulho idiota. Pode ser que te dê um banho de compreensão. E vou logo te acrescentando: Estarei ao lado deles, dê no que der. E é bom que cuides em modificar, antes que a Bitinha, nossa filhinha do coração, faça o mesmo. Só queres que casem suas filhas com os teus correligionários e do teu lado só tem babeco. Elas não iriam e nem vão querer, no que estão muito certas. Elas e eu também. Aponta alguém dos teus amigos que convenha para nossas filhas. Vai, aponta. Uns paspalhões, ignorantes, chaleiras que não valem uma crueira. Só sabem estar cheirando o chulé dos teus pés. Grandes genros seriam. O que tem de gente limpa está do outro lado. A Zulmira fez muito bem e a Bitinha não se casará com um desses fuleiras do teu partido. Nem morta. Ela mesma não quer. Não é doida. Toma lá a carta, para ver se a realidade entra no teu quengo empedernido.           
Afinal, o coronel Carlinho leu. Leu e emocionou-se. Andara pertinho de chorar. Mas era chefão e não lhe ficava bem. Seria o mesmo que cair do trono.
- Agora vê isto, o retrato dos dois.
O coronel quase o arrebata. O retrato da filha, que, inutilmente tanto desejava ter ao seu lado.
- É uma pena, uma moça tão simpática, ao lado desse safado. É um figurão, mas é um descarado. Ainda tem a coragem de estar rindo agarrado com Zulmira.
- Descarado, não. Cipriano sempre foi um moço de bem. O negocio é que sempre tivestes medo dele e te fez muita cócega. É isto.
- Medo! Olha aí nem mandou o endereço. Medo é isto. Covardia total. Se fosse homem de verdade, dizia, moro na cidade tal, rua tal, casa pintada de cor de rosa; é aqui! Estamos a esperá-los. Aquilo é um mucufa, Japira. Homem é aqui o degas, que não oculta nada, nem anda escondido. Deves te orgulhar disso.
- Sim, e me orgulho de tua coragem, mas detesto o teu orgulho e esse nomão feio de chefe... Chefe deste corrimboque... Toma papel e toma caneta. Escreve logo, agora mesmo. Estou louca para saber onde estão.
- Escreve tu, mulher, minha letra, bem sabes, é aquela garrancheira e não tenho lá muito jeito para essas coisas.
- Mas, assinarás a carta comigo. Os dois.
- Vá lá que seja.
A pena corria como um potro no galope sobre o papel. Estavam a esperá-los com um peru gordo e muitos abraços. Estavam mortos de saudade. A Bitinha não parava de rir e de chorar. Emendava uma coisa na outra. Se demorassem muito, terminaria se derretendo. Nem era preciso mandar endereço. Saísse de volta imediatamente. Não estava escrevendo sozinha. Estavam ali os dois. Têm que vir diretos para casa do pai e sogro. Sem qualquer preocupação. Estavam todos de braços abertos! Acabara-se a inimizade política. Inclusive o Carlinho não queria ser mais chefe de nada.
Deixaria para os moços. Estava saturado de chefia. Queriam eram os dois pertinhos dele. Isto sim.
- Pronto, assina em primeiro lugar. E assina direito. Tu és danado para errar a assinatura de teu próprio nome e não me ponhas nem coronel, nem chefe. Somente, teu pai, Carlinho.
- Depois do Ca... Qual é a outra letra, Japira. Estou com a memória em frangalhos.
- Vai, escreve; C-a-r-l-i-n-h-o...
- Esqueci como se traça o diabo desse h, letra ingriziada. Passo tempo sem assinar o nome e da nisso.
- Belo chefe. Nem o nome sabe mais escrever.
- E quem foi que te disse que para ser chefe, precisa saber escrever, basta ter dinheiro e ser prepotente. O povinho gosta é disso... Um bom malabarista facilmente chega a uma chefia política.
As expectativas em casa do coronel eram de causar insônia. Poderiam chegar a qualquer momento. Amanhecia, anoitecia e a ansiedade aumentando. Uma demora mortificante.
Numa bela manhã cedo, a cidade acelerou-se. Alguém percebera a chegada de Cipriano e Zulmira. Iria haver desmantelo. O coronel Carlinho andava escavacando como touro selvagem. Pela rua, pelas portas e janelas, o povo aparecia assustado. E o casal fugitivo ia direto em direção a casa do coronel Carlinho.
- O Cipriano ou tem muita coragem ou está tresvariando. Doido varrido. De longe, iam observando os acontecimentos. E qual não foi a supressa quando, à porta do coronel, filha, genro, sogro, sogra e cunhada abraçaram-se e choraram de alegria. Coronel Carlinho, o brabão, de braço no ombro do genro conduzia-o casa adentro na mais comovente intimidade.
- Aquilo é lá coronel nem chefe de coisa nenhuma. Coronel de araque é que ele é. Esbravejava, alardeava que o mundo iria cair aos pedaços e está aí em que deu. Farofeiro!
- Também vocês não procuram entender as coisas. Quem está ali não é o coronel Carlinho é o pai que adora a filha e quer vê-la saudável e alegre ao seu lado. Teria que esquecer as tricas da politicagem.
- Vocês vão é ver que dentro de pouco tempo o genro será o chefe político. O velho é esperto. Ficará tudo em casa e com mais prestigio. Juntou-se e ninguém os vencerá. Ora si. Aquilo não bota água a pinto não. Velho matreiro. Não duvido que essa fuga da filha já tenha sido uma trama.
- Você não tem família e não sabe o quanto vale uma filhinha que se criou com todo mimo e depois se ausenta sem se saber para aonde. Quem não tem nada no coração pode abrir a boca e falar assim. E depois o Cipriano é um moço de bem. Honrado, de família importante.
- Levou a menina só e só porque sabia que o coronel Carlinho não a daria, não casaria a filha com um adversário político, sobretudo com quem lhe fazia mais acirrada oposição. O amor, meu velho, salta qualquer barreira, pula qualquer janela. Não teme as grandes alturas, nem os despenhadeiros. E termina sempre vencendo.
- Olha aí fugiram, o velho danou-se, esperneou, saltou, berrou, mandou persegui-los, inchou os bofes, mas no momento em que o coração começou a doer sentiu a falta da filha, notem a tristeza da mulher e da outra filha; desceu do cavalo, tirou as esporas, esqueceu o título de coronel, e prestígio de chefe político, e sentiu-se esmagado.
- Não tem filho e não sabe o que é ser pai. Fala besteira não. Aquelas arrancadas do coronel não era uma mostra de valentia não. Era o medo de perder a filha, de não vê-la mais, de procurá-la no seu cantinho e não encontra-la. Era o pensar que poderia estar sofrendo de alguma forma que estaria com saudades de casa. Pensar que havia fugido por causa de sua intransigência com os adversários. O coração de um pai e de uma mãe é muito maior do que pensas, mas não cabe nele uma ausência.
- Agora, quero fazer-te uma pergunta, uma vez que tens idéias bem diferente de muitos outros. Sei que tens pai e mãe. Irmãos também. Todos vivem fora daqui, não é verdade?
- É sim. E o que é que há?
- É que nunca te ouvi falar deles. Será que não tens saudade ou vontade de vê-los? Devem viver bem e, por isto, não te preocupas com eles.
- Ao contrário. São pobres e de família numerosa.
- Será que, por isto, te envergonhas deles? Esta seria uma hipótese absurda, mas dá para se supor.
Abreu calou-se, o que equivalia a uma confirmação.
- Talvez seja por isto que censuras o coronel Carlinho. Olha, diz o ditado que o mau filho é um mau em tudo na vida. Vai lá, rapaz, vai rever teus parentes, abraça-los, ver o que lhes falta, ajuda-los, ou será, ainda, que és indesejável em tua casa?
- Está sendo criada a “Sociedade da Boa Família” e apesar de nossa camaradagem, irás ficar fora dela, até que se comprove o contrário do que se pensa a teu respeito. Ficaras isolado e verás que o teu comércio cairá e cairás também. Todos estão elogiando a atitude do coronel e isto porque demonstrara bons sentimentos. Aqui em Baixa Verde irá faltar lugar para muita gente. O coronel Carlinho seria mau, mais agora deu um exemplo de grandeza moral e afetiva. Toma o mesmo cominho, meu velho. Vai onde está tua família e pede-lhe perdão. Trazes para cá, e divide com ela o que a boa sorte te deu. Nunca sigas os maus exemplos. Só as boas ações florescem. O coronel sempre foi um homem rude e conserva aquele padrão moral dos tempos antigos, o que não deixa de ser admirável. Queria para sua filha uma pessoa amiga, mas não era o dono dos seus sentimentos. Temia perde-la para sempre. Mas está aí.
- Percebeu que ela era feliz e abraçou os dois. Nunca é tarde para um reconhecimento. O único defeito de Cipriano era ser contrário a política do coronel. Homem de bem a toda prova.
Cipriano reinstalou-se em sua cidade e recomeçou suas atividades. O coronel chamou-o em particular. Estava ficando cansado e pretendia ir abandonando a política. Cipriano deveria, aos poucos, ir assumindo o seu lugar. Era óbvio que caberia a ele chefiar o partido. Iria penetrando aos poucos até eleger-se prefeito e mais tarde deputaria um lugar na câmara estadual. E não teve para onde fugir. Praticamente dissolvia-se a oposição, o que era, afinal, uma das intenções do coronel. Ele ficaria por traz das cortinas. Manobrando sorrateiramente.
Abreu não esquece o conselho do amigo. Na verdade estava sendo um ingrato. Melhorara de vida e esquecera vilmente a família pobre.
Foi então visita-los. Estavam lá no mesmo cantinho, lutando desesperadamente pela sobrevivência.
 Depois dos primeiros contatos e de sentir a desigualdade de vida, afastou-se sozinho e não teve alternativa se não chorar para aliviar as angustias daquele abandono. Havia sido um miserável, um filho desnaturado. À hora do almoço percebeu mais nitidamente a pobreza em que viviam. Um almoço tão sumário e tão pobre que nem sabia como ainda estavam vivos. Os pais, os irmãos não podiam esconder o mau passadio. Que tristeza, que ingratidão que fora.
- Bem, minha gente vamos embora daqui. Vende-se o terreno, os bichinhos, inclusive o jerico e vamos morar comigo. O que tenho dará para nós todos.
- Mas a gente não tem nem como sair. Sem roupas, sem sapatos, sem nada. E sempre se viveu aqui. Lá não se tem o que fazer.
- Tem sim. Trabalho só para os manos. Vosmecê dois vão cuidar somente da casa e com alguém para ajudar. Hão de ver como vai ser.
Não havia para onde fugir. O vizinho comprou a terra e as miunças. As duas cabras de leite e as galinhas. Dois dias depois estava na cidade, sem ninguém saber. Entraram à noite e ficaram reservados. Havia primeiro, que comprar roupas e tudo o mais, para uma apresentação aceitável.
Abreu esmerou-se no preparo da aparência da família. Precisava desfazer a impressão que poderiam ter de seu relacionamento com a família.
A família não podia entender como o Abreu adquirira tantos bens. E vieram as perguntas.
- Abreu de quem é este casarão?
- Ah! Mamãe dá senhora.
- E esta casa comercial, meu filho?
- Do senhor meu pai.
- Mas como chegastes a tudo isto?
- Muito simples. Sai de casa daquele jeito. Liso, liso. Trabalhei e comecei algumas economiazinhas. Muito pouco, mas deu para comprar algumas bugigangas que passei a vender de porta em porta. E fui juntando tostões e fui aumentando o negócio. Em segunda, abri uma casinha para vender miudezas. E fui indo, indo, fiquei quase rico. Riquíssimo em relação ao que era. E, agora, graças a Deus, estamos todos ricos, riquíssimo... Comprar e vender é a melhor forma de viver bem. Tomem conta de tudo e me ajudem a continuar.

Em 1.8.1985.

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

SETE SABIOS DA GRECIA

SETE SÁBIOS DA GRÉCIA


Filosofia Pré-Socrática
Data de nascimento:  Séculos VII e VI A.C.
Local:  Grécia
Aos Sete Sábios da Grécia era atribuída grande quantidade de máximas e preceitos (sentenças proverbiais), por todos conhecidas. Algumas eram tão famosas que foram inscritas no templo de Apolo em Delfos. A lista dos Sete sábios não foi sempre a mesma.
Fora do âmbito mítico, vinte e dois homens foram citados como pertencentes ao grupo dos sete sábios, sendo eles: Tales, Pítaco, Bias, Sólon, Quilon de Esparta, Cleobulo, Periandro, Míson, Aristodemo, Epiménides, Leofanto, Pitágoras, Anacarses, Epicarmo, Acusilau, Orfeu, Pisístrato, Ferecides, Hermióneo, Laso, Panfilo e Anaxágoras. Nunca houve um consenso entre os historiadores, os únicos que sempre pertenceram ao grupo são os quatro primeiros da lista.
No texto atribuído a Higino, os sete sábios são: Pítaco de Mitilene, Periandro de Corinto, Tales de Mileto, Sólon de Atenas, Quílon de Esparta, Cleóbulo de Lindos e Bias de Priene.
Plutarco lista os sete sábios como Tales, Bias, Pítaco, Solon, Quílon, Cleóbulo e Anacarses.
Como características, os sábios eram muito sintéticos em suas afirmações. De Sólon, temos: "Se sabes, cala"; de Bias: "Odeia o falar ligeiro"; de Cleobulo: "Ser ávido de escutar e não de falar" e de Quilon de Esparta: "Que a tua língua não corra à frente do teu pensamento". De Bias de Priene temos a seguinte máxima, profunda e atual: "A maioria dos homens é perversa" Numa rápida averiguação histórica, até o momento, sempre que o homem se fez maioria, a perversidade foi duramente percebida.

Máximas e Preceitos

Tales de Mileto
Conhece-te a ti mesmo
Ter certeza absoluta é precursor da ruína
A ignorância é incômoda
Espera receber de teus filhos, quando fores velho, o mesmo tratamento que dispensaste a teus pais
Evita as palavras que possam ferir os amigos
Evita enriquecer por vias desonestas
Evita os adornos exteriores e procura os interiores
Perto ou longe, importa lembrar os amigos
Quem promete, falta.
Se és chefe, começa por saber dominar-te

Pítaco de Mitilene
A ambição é insaciável
Ama a educação, a temperança, a prudência, a verdade, a fidelidade, a experiência, a gentileza, a companhia dos outros, a exatidão, os cuidados domésticos, a arte e a piedade.
Dá-te ao respeito
Não faças o que não gostares que te façam
Não reveles projetos para, se falhares, não seres motivo de troça
Sabe aproveitar a oportunidade
Sábio é quem sabe discernir o futuro; o passado é passado, mas o porvir é incerto.

Bias de Priene
A maioria dos homens é perversa
Adolescente, sê ativo; velho, sê sábio
Aprende, a saber ouvir
Fala sempre com propósito
Não sejas nem mau, nem tolo
O cargo revela o homem
Persuade pelo bem, e nunca pela força
Reflete nos teus atos.
Sê cuidadoso na realização de um projeto e, uma vez iniciado, prossegue sem desfalecimento.
Vê-te num espelho.

Sólon de Atenas
Aconselha o que for justo, não o que aches agradável
Evita a mentira, confessando a verdade
Evita o prazer, se ele for causa de remorso
Guia-te pela razão
Honra pai e mãe
Mede as tuas palavras pelo silêncio e o silêncio pelas circunstâncias
Nada em excesso
Nunca digas tudo o que sabes
Procura ser honesto, porque a honestidade é melhor do que uma palavra honrada
Respeita os amigos
Quando souberes obedecer, saberás chefiar
Se exiges a honestidade dos outros, começa por ser honesto
Toma a peito as coisas importantes

Cleóbulo de Lindos
A moderação é coisa ótima
A sabedoria é preferível à ignorância
Aconselha retamente os teus concidadãos
Casa com uma mulher da tua condição; se casares com uma rica, em vez de sogros arranjarás patrões
Considera inimigo público quem odiar o povo
Cuidado com a língua
Evita a violência
Evita acariciar a tua esposa em público; quem a desfruta em público procede mal, mas quem a acaricia, desperta paixões fúteis

Periandro de Corinto
Tudo deve ser estudado com cuidado

Quílon de Lacedemonia
Conhece-te a ti mesmo
Nada em excesso
Foge dos intriguistas
Não desejes o impossível
Não maldigas dos outros, para não ouvires críticas desagradáveis
Põe a razão antes da língua
Quando beberes, fala pouco para não cometeres indiscrições

Respeita os velhos

quinta-feira, 19 de março de 2015

DEODONIO

DEODÔNIO*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


            Quando Deodônio saiu da roça para freqüentar escola na cidade, já havia completado seus doze anos e tudo quanto sabia era o pouco que a mãe lhe havia ensinado em casa, nas horas vagas. Entretanto, sobre a vida do campo, menino de sua idade não teria lição a lhe dar. O que o preocupava era o internato, o afastamento de casa, o pai e a mãe longes dele. Entretanto, fora ele mesmo que pedira para ir estudar, para ser como era o filho do fazendeiro vizinho que já sabia ler qualquer livro ou revista que pegava. Era uma pena que não fosse para o mesmo colégio. Internou-se e lá ficou no meio de desconhecidos que lhe faziam perguntas e mais perguntas. Como se chamava, donde tinha vindo se era rico ou pobre, se tinha pai e mãe.
            Deodônio, mais rápido do que esperava ambientou-se. A coisa não era lá tão feia como pensara. Foi mandado para a divisão dos médios, meninada do seu tipo pela idade e pelo tamanho.
            Colégio de padre, com uma disciplina um tanto rigorosa, Deodônio só entranhava uma coisa que era rezar em todos os atos mais importantes. Deitar, levantar, refeições, missas. Não era habituado a rezar ajoelhado e só o fato de ter que se ajoelhar na taboa dura dos bancos demoradamente, fazia-o perder a graça. Os joelhos doíam como se estivessem em chagas. E o resultado é que não dava a mínima atenção às orações. Falou com o padre que não podia mais de ajoelhar.
            - Isso é somente agora, enquanto não crias calos. Depois de uns dois meses, não sentirás mais nada. Um rapagão forte como era ele, uma dorzinha nos joelhos não valia nada, e, além disso, era uma ótima penitência.
            - Não posso e não posso mesmo. Só se levar uma almofada.
            - É luxo. Deixa de conversa fiada.
            - Vou ficar sentado ou em pé. Só faço o que posso.
            - Tomarás um castigo. Oras ajoelhado em cima de caroço de milho.
            Chegou à hora da missa. Deodônio estava preparado para o que desse e viesse. Iria mostrar que não era filho de padre, nem de sacana nenhum.
            - Ajoelhe-se, moço! Não está vendo todos ajoelhados?
            - Estou sim senhor. Mas não posso. Vou ficar sentado.
            - Depois conversaremos.
            - É. Mais não me ajoelho. Não mandei fazerem bancos duros deste jeito.
            O padre fez um gesto com a mão para que se calasse e esperasse.
            Deodônio, nem viu mais para onde foi à missa. O padreca estava enganado com ele. Não era nenhum boboca, criado com mingau d’água e farinha azeda. Bem que havia pedido e explicado. Agora que se danasse com suas rezas e padre nosso, a ave Maria, e o credo e o ato de contrição. E nunca havia precisado deles pra nada. Nem naquele momento estava lhe valendo de nada. Havia chegado ali para aprender coisas úteis. Ler, cantar, escrever.
            Se quisesse rezar mais teria ido para o seminário, para onde vão os preguiçosos, os que não querem nada com trabalho.
            Depois da missa.
            - Vai me chamar o Deodônio, aquele sertanejinho malcriado Quero ensinar-lhe o caminho do bom viver. Está pensando que isto aqui é a casa de mãe Chica.
            - Pra que me querem. É melhor para ele, nem eu ir lá. Não vai resolver bulhufas. Só me ajoelho quando puder e bem entender. Não pedi a ninguém para rezar, mesmo por que até hoje as únicas pessoas que vivem de rezar são os padres. Diga a ele que pode tirar o cavalinho da chuva. Deodônio não vai lá não. Aliás, se ele é que tem negócio comigo, que venha. O caminho é o mesmo e do mesmo comprimento.
            O padre deu um esturro de se ouvir légua e meia.
            - Volte lá e me traga aquele atrevido pela orelha, ou pelas duas, dependurado como um morcego!...
            - Olha, o padre mandou te buscar. Vamos logo.
            - Vou porque quero. Ninguém me obriga, ora esta! Era melhor não ir.
            - Então, seu peralta. Desobediente, indisciplinado e atrevido, donde saiu você?
            Da casa de meu pai que sabe criar os filhos. Foi daí que saí. E fiquei logo sabendo que mandaram aqui para estudar e não para rezar. De reza já estou entupido e os joelhos podres. Não posso nem mais dobrar as pernas... E afinal o que vosmecê que de mim.
            - Ajustar contas.
            Não devo a corno nenhum. Nem eu, nem meu pai.
            - Vou te expulsar cabrito malcriado!
            Já vai tarde. Agora, tem uma coisa. Meu pai vai se danar, quando souber que me expulsam por que não agüento rezar de joelhos feridos. E nem tem pra que tanta reza. Lá na minha terra todo mundo vive bem sem essa rezaria toda. Reza não enche barriga e nem bota ninguém no céu. Tudo isto é conversa fiada, lorota de quem vive sem querer fazer força. Bem, resolva logo e avise a meu pai para vir me buscar. Enquanto isso vou assistindo missa sentado...
            - Mas, que bichotinho chato.
            - Aí! E vosmecê sabe o que é “chato”, um piolhinho que dá nas virilhas das pessoas. Pensava que padre não conhecia.
            - Vou mandar chamar o diretor do colégio, monsenhor Epifânio pra te tirar o sarro.
            - Pode me tirar outra coisa. Sarro quem tem é cachimbo e nem fumar, fumo...
            - Eu vou te pegar pelo gogo e dar-te uma lição.
            - Quem tem gogo é ema, seu tapado.
            Afinal o diretor chegou de cabeça para o ar, com a altivez de superior.
            - O que é que há padre.
            - Nada. É este peralta desobediente e respondão. Parece um bicho do mato. Quer ouvir missa sentado o tempo todo e já me disse coisas cabeludas.
            Esta vendo aí seu diretor, como é o palavreado dele. Coisa cabeluda. Acho que o senhor sabe o que é. E ainda que bancar o durão.
            - E porque não te ajoelhas como os outros, hem?
            - Olhe aí o senhor também, com esta história de “como os outros” Vote!...
            - Você é muito maledicente, seu capadócio.
            - Lá vem outra. Capadócio.
            - Bem, responde logo. Por que não te ajoelhas?
            - Vou mostrar.
            E Deodônio, arregaçou as calças e mostrou os joelhos em petição de miséria. Vermelhos, inflamados.
            - Como é, padre, o senhor viu isto?
            - Ainda não.
            - Pois então vou resolver a questão. O Deodônio só irá à missa quando estiver curado dos joelhos.
            - Não senhor, sou católico, apostólico, romano e não quero perder missa. Foi o que mais me recomendou minha mãe. E que mal faz em ficar sentado, fazendo minhas orações?
- Esta vendo aí, padre, pode exigir do mesmo um sacrifício deste. Deixe o Deodônio, sentado, de pé, como ele quiser.
- E os desaforos que ele já me disse, como vão ficar. Sem um bom castigo?
            - Ora, senhor diretor, padre é para perdoar. E, além disso, não toquei na mãe dele, não disse nome feio e nem ofendi a religião. Disse só umas bobagens com ele porque me aperreou.
            - Está certo senhor diretor. Farei o que o senhor determinar.
Padre Nilo, saía desapontado, mas não havia outra saída. Chegou à hora da missa e Deodônio lá estava em seu lugarzinho. Padre Nilo celebrava, mas não se esquecia de passar o rabo do olho em Deodônio, sentado e bem sentado. Deodônio também de olho cravado no altar e nele. Toda vez que o padre lhe botava os olhos, Deodônio fazia um gesto de macaquice. O padre mordia os beiços em tom de ameaça. No momento mais solene da missa, padre Nilo deu-lhe uma espiada e Deodônio fez-lhe uma careta. O cálice caiu da mão do padre, o vinho ainda não sacro derramou-se e foi aquela celeuma. O diretor estava assistindo a missa e não via Deodônio de frente. Foi socorrer o padre. Deveria estar com algum mal súbito.
            - Nada não, disse baixinho, foi o Deodônio, aquele pequeno demônio. Fez-me uma careta quando olhei para ele. Além do desrespeito o atrevimento.
            O diretor riu.
            - O senhor está achando graça?
            E olhou também para Deodônio. Lá estava ele de cabeça baixa, rezando o seu terço. Nem dava atenção à outra coisa.
- O menino até parece um santo. Comportamento exemplar...
- Fique escondido e verá o que ele me faz, quando ponho a vista nele.
O diretor fez que se ia e ficou na moita, de observação. Dentro de dez minutos, Deodônio fez dez gestos engraçados para o padre Nilo. Terminada a missa, o diretor veio ao padre Nilo.
Então, senhor diretor, viu o comportamento do danado...
- Vi sim. E não ri mais porque estava num ato tão solene. O bicho é engraçado mesmo. Nem sei como pode fazer tantos trejeitos com aquela cara de santo. O menino é mesmo uma graça. Só pode ser muito inteligente e espirituoso é até demais.
- Pois veja que quase me perco na missa. Todas às vezes que olhava para ele, fazia um trejeito safado. Tive vontade de sair do altar e esganá-lo.
- Ora padre Nilo, entenda. O menino é uma distração. Se eu fosse o senhor dava-lhe um premio. Acabe com esse enfezamento e abrace o bicho com carinho. Deixará, assim, de lhe contrariar. Do contrário vai morrer de uma trombose.
- O senhor achar?
- Faça o que lhe aconselho e verá. Terá um amigo. Aproveite a verve do bicho e faça rir a turma. Quer ver:
- Vem cá. Deodônio!
- Por que gostas tanto do padre Nilo que não o deixa um minuto?
- O senhor já olhou direito para a cara dele. Esse nariz torto, esse testão liso, a boca miúda, o pescoço comprido e a ponta de nariz vermelho. Não é mesmo engraçado e ridículo? Mesmo assim, com inveja de minha boa aparência, fica me perseguindo. Mas eu vou dar um jeito nele.
Monsenhor Aprígio riu gostosamente e na verdade o frontispício do padre Nilo era ridículo.
- Olha Deodônio, vamos ser bons amigos. Mas me respeita como padre e teu professor.
- Sempre respeitei. Mas não posso deixar de rir quando olho para o senhor, enfiado nessa saia preta, com esse narigão de papa vento e esses pés de meia légua. Se eu fosse o senhor usaria uma máscara e virava os pés pra traz. É escritinho uma figura que tem num livro de papai que ele comprou aqui em João pessoa.
- E que livro e esse, perguntou o Monsenhor.
- Um livro de anedotas... E o senhor já o viu nu em pelo? Nem queira ver. Deve ser uma marmota. Eu já vi sem camisa. Tem o estomago pra dentro e é cheio de pelancas. Tive pena. A sorte dele é ter vindo para o Seminário.
- Sorte, por que, Deodônio?
- Não casaria nunca e se casasse a mulher largaria logo. O homem é uma coisa, seu diretor...
- Está vendo aí, Monsenhor. Quem possa aturar um traste deste. Também o pai vai dar livro de anedotas para um destemperado deste. Se fosse meu filho...
- Deus que me livre. Ia morrer de desgosto. Nosso Senhor sabe muito bem o que faz.
- Monsenhor, dê licença. Não posso mais aturar este bichote. Imagino como é esta “pedra” em casa. Foi por isto que mandaram pra cá. Pra se verem livres...
- Puro engano. Eu acho que mandaram para conhecer bicho que ainda não tinha visto. Donde ele é senhor diretor?
- Ah! É de Alagoa Grande.
- Já passei lá com papai e ele me disse:
- Filho, quando você vir alguma pessoa afeiçoada (nem digo bonita) não pergunte a ninguém. Já sabe que não é filho daqui. Desculpe padre Nilo. O senhor não tem culpa. Está tudo explicado. É de alagoa Grande. Por favor, não vá ser vigário de lá. Fique por aqui mesmo, para ver se sua terra vai perdendo a fama de ser a terra da feiúra. Dizem que foi desde o começo. Juntaram-se a família Zé Naidé e a família Nóbrega e deu nesse angu de caroço. Lá é proibido casarem dois de lá mesmo. Foi o jeito que acharam para melhorar a raça do padre Nilo. Foi pai que contou. Pai sabe de muita coisa. Queriam que ele fosse juiz de lá, mas ele espantou-se. Preferiu perder uma promoção. O senhor já foi a Alagoa Grande. Vá não. Quando quiser ter uma idéia, olhe aqui para o padre Nilo...
Padre Nilo saiu pisando em brasas.
- Volte aqui padre Nilo. É brincadeira do Deodônio. Padre Nilo, sentiu certo alívio.
- É não, seu Diretor. Eu vi. Reze por aquela gente. E pelo padre também. Ver é uma coisa, contar é outra. Um dia de festa lá, é uma exposição de marmotas. Padre Nilo está perdoado. Ele tem razão de ser complexado e sádico. Uma feiúra daquela dá desgosto mesmo e sede de vingança. Vá ser feio assim em Alagoa Grande...
O diretor chamou padre Nilo ao seu gabinete. Precisava orientá-lo, fazer com que ele se confessasse com a sua própria caricatura. Deus que havia lhe dado à sorte de haver nascido em Alagoa Grande, o encaminhou para o Seminário, como uma espécie de fuga e nada tinha mais a fazer do que aceitar os desígnios de Deus. Além disso, feiúra não era uma condenação.
- É o que o senhor pensa. Não pode haver maior. Nunca tive vocação sacerdotal. Foi esta minha feiúra física que me desiludiu das coisas belas do mundo e forçou-me a esconder-me dentro desta batina que tem sido o meu próprio inferno. Pelo menos é uma desculpa que dou à sociedade.
- O senhor me perdoa se eu disser uma coisa?
- Desde que não seja uma de tuas molecagens. Vê bem!
- Não senhor. É coisa muito seria e certíssima. Se não for, me castigue.
- Fala Deodônio.
E foi ao ouvido do diretor.
- É o seguinte: A feiúra do padre Nilo espanta as mulheres. Não há uma que olhe pra ele, a não ser de mangação. Ensine a ele o pulo do gato. O senhor que é professor velho nestas coisas...
O monsenhor riu!
- Deixe comigo. É mesmo um desventurado. E toma o meu conselho, Deodônio. Vai para o seminário. Tem bom faro, menino. Quem te ensinou tanta coisa?
- Papai. Mas não vá dizer nada a mamãe!... Puxei a ele. Mamãe, coitada é uma santa. Enquanto ela vive a rezar, fechada no quarto dos santos, pedindo por nós, ele cai na buraqueira. A Miriam, a Madalena, a Zila, a Dida e até a preta Belira, uma lapa de negra que dá agonia.
- E qual é mesmo tua cidade?
- É a cidade Pau Ferro.
- Posso ir passar as férias lá?
- Pode, pode. Contando que não bula na roça de papai. A não ser que ele esteja mudado. Aliás, acho que os dois farão uma boa junta, pegarão bem o carro...
- E o vigário de lá?
- Ora, envelheceu antes do tempo. Está um caco, mas não foi de dizer missa não senhor, deu demais na fruta e amunhecou.
- E tem muita fruta lá?
- Tem, mas não é manga, nem abacate, nem caju, nem jaca. É maça, a frutinha que Adão beliscou... Vai, vai lá...
*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.