terça-feira, 15 de julho de 2014

SALUSTIANO


SALUSTIANO*


João Henriques da Silva
(In Memoriam – 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Roceiro desde menino Salustiano gostava mesmo era da vida do campo. Ia à cidade por obrigação. Nos dias de feira ou comprar remédios. Isso mesmo quando não encontrava quem fosse. O seu maior prazer era plantar e cuidar de sua roça ou sair de espingarda ao ombro à procura de caças. Nunca frequentara uma escola e achava que leitura não botava alguém para frente.
Ai estava o coronel Justiniano, analfabeto de pai e mãe, rico como um danado, respeitado, dono de muitas terras e gado como folha de mato no tempo de chuva.
E depois, ter que ir á escola decorar um bocado de besteiras e quando não aprende entra no bolo, como se não tivesse nem pai nem mãe. Os coitados dos molequinhos da dona Sebastiana, só faltavam morrer de apanhar. Eles nem tem culpa de terem nascido tapados. Mas a culpa é daquela égua velha que bota os bichinhos na escola daquela veiota desgramada. Deus que me livre. Os meus tão ai ajudando na roça e não tem escola melhor. Pra que moleque letrado? Quando cresce aprendido não quer mais trabalhar. É só pelintrar por ai, comendo à custa dos bestas. Essa não! E quando os bichinhos chegam em casa, a mãe vai logo gritando, – deram a lição certa? Se não deram quebro tudo no pau. Como é que se cria filho desse jeito, apanhando dos outros e voltando pra casa todo mijado. E a mãe já sabe. - Chegou mijado apanha de novo!
            Nasci e me criei sem escola. Não sou rico, mas tenho o que comer com a minha cambada. Dr. Currupaco, como chamam o filho do dono da botica, passou a vida estudando, gastou o dinheiro do pai e não tem o que o priquito roa.
            Quem quiser ir pra cadeia é só botá-lo como advogado. Todo mundo conhece o caso de seu Dias. Buliram com a fia dele, uma menina e só porque matou o safado pegou quatro anos de xilindró. Uma vergonha. Devia andar solto, defendendo a honra das mocinhas que os sem vergonhas enganam.
            Salustiano, não via vantagem em estudo. Achava que ensinar moça a ler e escrever era a mesma coisa que “botar esquipa em besta”.
            - Não adiantava nada. Ninguém bota sela em besta. E sabem para que serve estudo em moça? Pra fazer biête pra namorado. Muié casada também. 
            E o doutor Juiz inda é pior. Estudou só pra botar gente na cadeia. Bela coisa. O delegado para prender e dar surra. Médico para matar à-toa e ninguém nem vê. Comerciante furta a gente, fica rico e quem quiser que se meta com ele. Tem dinheiro e todo mundo respeita.
            Padre vive aí sem dar um prego numa barra de sabão. E é tudo rico à custa dos bestas. Botar fio na escola pra viver dessas trapaiadas, Deus que me livre. Quero os meus trabalhando, suando comigo na roça, mas comendo comida limpa. Tem outros cabras por aí que cobram impostos até de poleiro e máquina de costurar, tomando o dinheirinho de quem trabaia. E todos eles com o pezinho no sapato, roupinha engomada, lucrando à custa dos outros. Ora, se todo mundo estivesse na roça trabaiando, não havia necessidade dessas qualidades de gente. Aprendeu a ler? ninguém pega mais no cabo da enxada. Os bestas que se danem na chuva e no sol para encher a barriga desses sabidões. Galinha gorda pra seu vigário, peru gordo pra seu Juiz, continência pra seu delegado e a peia comendo no lombo dos bestas.
            E ainda o pobre do seu Dias que pagou advogado burro para botá-lo na cadeia. Isso não tem tria.
            No dia das inleição, todo mundo é bonzinho. Saem de porta em porta, oferecendo mundos e fundos em troca de votos. – Vou acabar com os impostos, arranjar emprego para seus filhos, bota luz e água em sua casa, construir estradas, baratear o custo de vida, ninguém vai mais adoecer, comida não vai mais faltar, - e até vai arranjar com o padre pra fazer casamento e batizado de graça.  As cadeias serão derrubadas, os delegados demitidos. O povo vai ficar livre da peia e cabresto. Por fim um prometeu uma coisa feia.
            E quando menos Salustiano esperava, o filho mais velho fugiu. Ganhou o oco do mundo e nunca mais mandou notícia.
            - Imagina muié, se o bicho soubesse ler...


*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo. 

domingo, 13 de julho de 2014

A maior vergonha

A maior vergonha que o país já viveu!

Da vergonha do xingamento à vergonha real…

Por Fernando Augusto De Luca


Para Lula, vaias a Dilma na abertura são “maior vergonha que país já viveu”.


Os palavrões à instituição Presidente, realmente, não tiveram razão de ser… Uma sonora vaia já seria suficiente… Porém:


Vergonha, Lula, é sua covardia em se esconder na abertura da copa, a copa que você trouxe para o Brasil, deixando sua pupila entregue aos leões da elite…
Vergonha é você sempre agir assim, como quando do acidente com o avião da TAM…
Vergonha é você nunca saber de nada…
Vergonha é você falar que Dilma era a única com cara de pobre no estádio (coisa que ela não tem)…
Vergonha é você dizer que lá só estava a elite branca, mesmo com a presença de inúmeros de seus asseclas e a presença de duas torcidas organizadas do seu time…
Vergonha é você ter sido racista ao dizer que lá não tinha nenhum moreninho…
Vergonha é você dizer que essa é uma copa feita para o povo, sendo que sabia desde o início que só a elite teria dinheiro para pagar o ingresso…
Vergonha é você fomentar o ódio de classes dizendo que só existe uma classe de trabalhadores no Brasil…
Vergonha é você criticar a elite que acorda cedo e trabalha 12 horas por dia (coisa que você nunca fez) …
Vergonha é sua hipocrisia, pois critica a elite ao mesmo tempo em que anda de helicóptero, toma uísque 18 anos e vinhos que ultrapassam a cifra de R$ 1.000,00…
Vergonha é ter filhos já milionários, tão novos, sem justificarem tal patrimônio…
Vergonha é os amigos dos seus filhos viajarem de graça no avião presidencial…
Vergonha é o negócio escuso entre a Gamecorp e a Telemar…
Vergonha é você manter amizade com quem considera aloprado…
Vergonha é você dizer que Genoíno, Dirceu e Delúbio não são gente de sua confiança…
Vergonha é o Genoíno e Delúbio, auto proclamados sem posses, bancarem dois dos advogados mais caros do país…
Vergonha é você condenar a elite por xingar a presidente e se omitir quando um membro do conselho de “ética” do pt ameaça de morte o presidente do STF…
Vergonha é você ter chamado de hipocrisia a decisão do STF de condenar os réus do mensalão e dizer que foi uma condenação política…
Vergonha é um deputado estadual do pt fazer reuniões com membros do pcc…
Vergonha é ver você trocando agrados com Maluf, Sarney, Collor, Renan…
Vergonha é ouvir você dizer que em Cuba e Venezuela impera a plena democracia…
Vergonha é você ter extraditado os pugilistas cubanos…
Vergonha é você não ter extraditado o terrorista Cesare Battisti…
Vergonha é saber que os assassinatos do Celso Daniel e do Toninho do pt jamais serão esclarecidos…
Vergonha é você, Dilma e todos os políticos inaugurarem obras inacabadas ou inexistentes…
Vergonha é saber o que você e seu partido fizeram com a Petrobras…
Vergonha é você praticamente ter duplicado o número de ministérios para acomodar seus prosélitos…
Vergonha é você se orgulhar de não ler e de não ter estudado…
Vergonha é você enganar o povo com seus discursos dissimulados…
Vergonha é sermos taxados com impostos escorchantes e não termos nada em troca…
Vergonha é o sistema de saúde no Brasil… (você sabe bem disso, pois trata sua saúde no Sírio Libanês como todos da elite branca) …
Vergonha é o que a população brasileira enfrenta todos os dias com transporte público precário, saúde deplorável, educação e segurança inexistentes…
Vergonha é ter tido você como nosso presidente…


Sou cirurgião dentista formado pela UNESP, especialista pela USP, literalmente um membro da elite branca que acorda à 5:30 para ir trabalhar, paga impostos rigorosamente em dia e faz, dentro de suas possibilidades, o possível para aplacar o sofrimento dos menos favorecidos.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

JOSÉ NICOLAU


JOSE NICOLAU*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


Pitombeiras, povoado de cruzamento de estradas, vivia assustado com José Nicolau, cabrão alto e lazareto que não largava uma faca de ponta e uma pistola de dois canos. Morava fora dali, mas, quando aparecia, dava feriado e dia santo e até a bodega do Epaminondas fechava as portas, isto é, ficava proibida de vender. Era um Deus nos acuda. E ninguém tinha coragem de reagir. E não havia peditório. O bicho não voltava à palavra. E ainda, por cima ameaçava:
- Estou esperando que alguém me denuncie. Aí, então vão pagar inocentes e pecadores.
Alguns mais medrosos mudaram-se das Pitombeiras e o resto, que não tinha para onde ir, conserva-se calado e obediente.
- Lá vem José Nicolau. E ouvia-se o bater das portas como se estivesse vindo um redemoinho ou a própria figura do satanás.
Mas aconteceu que José Nicolau, achou que era desaforo e desconsideração á sua pessoa. E expediu uma ordem:
- Abrir já e já, todas as portas. E da próxima vez não queria ver portas fechadas.
O diabo é que sem cometer violência todo mundo tinha medo e respeitava as suas determinações. Bastava o bigodão e as armas na cintura. Comprava fiado, pagava quando muito bem entendia e pelo preço que ele mesmo marcava. Quando chegava, ninguém botava a cara de fora. O arruado parecia um cemitério quando não havia enterro. Expediu nova ordem:
- Quero todo mundo na rua. Homem, menino e mulher.
E ninguém ficava em casa. Saiam até as mulheres grávidas.
- Não quero cometer violência, mas não tolero falta de respeito.
E então contava em voz alta, para que todos ouvissem bem, as suas estripulias por onde havia andado. Lugares que o povo não conhecia. Já havia mandado mais de uma dúzia para o outro mundo, dependurado gente, carregado moças e mulheres casadas. Certa ocasião começara a tirar o couro de um cabra vivo. E descrevia o esperneado e a gritaria. – Cala esta boca, cabra senão eu te sangro, de uma vez. E a turma tinha que achar graça em suas diabruras.
O povoado não crescia, assustado com o valentão.
- Toma cuidado, gente, - recomendava seu Epaminondas. Esse cabra veio das profundezas do inferno e é bom que façam o que ele manda, senão vai haver desgraça. Uma cara daquela não engana ninguém. Cabra de olho amarelo e um bigodão daquele tem parte com o diabo.
Certo dia entra José Nicolau de surpresa, na bodega de seu Epaminondas, a turma da conversa, calou-se de repente.
- Que negócio é este. Por que se calaram assim de repente, estavam falando de mim?
Uns foram se levantando com vontade de dar o fora.
- Não sai ninguém. Quero todo mundo ai. Não sou nenhum bicho, entenderam? E continuem conversando.
- Era nada não seu José Nicolau. A gente estava combinando fazer uma festinha e convidar o senhor.
- Se era isto, ainda bem. Entretanto, quero avisar de uma coisa. Não gosto que parem as conversas quando eu chego.  Creio que ouviram bem!
- Pois não, pois não, desculpe chefe. O senhor sabe que quando não está aqui à gente sente muita falta. Todo lugar precisa de uma autoridade. Depois que o senhor começou a aparecer por aqui, tudo anda em paz. Há muito respeito e ordem. Talvez o senhor nem adivinhe, mas o povo daqui lhe adora....
- Isto é bom, pois não gosto de saber que alguém não gosta de José Nicolau.
Aquilo causou um arrepio no grupo. O homem era mesmo os pés do diabo.
 Momento depois, entra na bodega um amarelinho desconhecido. Vinha cansado e batendo o papo. Via-se que era uma figura desamparada e mal de vida. Pediu a seu Epaminondas para botar um bom trago de pinga.
- Não posso, seu moço. Seu José Nicolau já decretou feriado e hoje não vendo nada.
José Nicolau dentro da bodega, ficou satisfeito com a resposta.  Havia respeito ás suas ordens.
Mas o amarelinho insistiu rogou a seu José Nicolau que lhe deixasse tomar um trago. Andava doente, fraco, cansado e precisava se reanimar um pouco.
- Ordem é ordem.
- Não faça isso, seu José Nicolau, eu bebo e vou embora. Não incomodo ninguém. Sou de paz.
Depois de muito peditório, José Nicolau consentiu.
- Beba e suma-se, amarelo de uma figa. Aqui tem lei e quem manda sou eu. Beba e não cuspa no chão, senão vai lamber.
O amarelinho tremia as bochechas.
- E sabe de uma coisa curta e certa, deixe de tremedeira...
Afinal seu Epaminondas carregou na mão e o amarelinho engoliu a pinga de uma chamada.
- Agora seu José Nicolau, queria que o senhor deixasse eu fazer um agradecimento. O senhor nem sabe quanto esta cachacinha me fez bem.
José Nicolau atirou-lhe duas chispas de olho e concordou.
- Mas, veja lá, não sou de brincadeira. O povo daqui já me conhece.
- Não, seu José Nicolau, é uma louvação. O senhor vai gostar.
- Pois solta lá, teu fraseado.
O amarelinho temperou a goela, abrumou a cabeça, encarou Zé Nicolau e desfechou o agradecimento.
- Mandei fazer uma aguia da espinha de um bacaiau. Pra costurar a xoxota da mãe de Zé Nicolau.
Zé Nicolau estremeceu-se e ia saindo pela portinhola do balcão para pegar o amarelinho. Mas o amarelinho já estava com a faca de ponta na mão, uma lambedeira de mais de dois palmos. Zé Nicolau parou, engolindo o palavrão que ia soltar.
- Você não é besta, não, seu cabra de peia. Você pode dar feriado, seu bosta de cabra morta! Mexa-se daí que eu quero botar-lhe as tripas no chão. E suma-se daqui! Não ponha mais os pés neste povoado. Vou ficar esperando. E vá logo.
Zé Nicolau passou de lado e foi à última vez que botou as patas em Pitombeiras.
O povo cercou o amarelinho. Queriam saber quem era, de onde vinha.
- Ando procurando um lugar para ficar. Sou do oco do mundo. Doente, levado da breca.
- Agora me digam uma coisa. Nesta terra não tem homem, para deixarem um cabra de peia daquele dar dia santo. Ponha mais um trago que quero ir andando.
- Fica aqui com a gente. Não vai te faltar nada. Remédio, comida, pinga.
Era a vidoca que o amarelinho queria. Seu Epaminondas deu logo emprego ao amarelinho. Zé Nicolau poderia voltar. Com pouco tempo o amarelinho estava gordo e corado. Tinha sido um santo remédio.
Depois souberam que era cangaceiro do grupo de Antonio Silvino. Deixou de beber e findou se casando nas Pitombeiras.

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.



ZÉ PEZÃO





Zé Pezão*
 João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Brancão, alto e magro, Zé Pezão vivia em pé de guerra. Subia as paredes, esbravejava, soltava palavrões de todos os tamanhos e ameaçava matar um peste qualquer.
- Será o primeiro que eu botar a mão em cima.
Coitado. Não tinha culpa de haver nascido com aquele desproposito. Pés chatos, chatíssimos, como uma taboa, largos, dedos abertos e exageradamente grandes. Certamente não aconteceria nada se o apelido fosse esquecido.
Mas Zé Pezão que já andava encabulado com a monstruosidade, ficava espoletado quando a garotada gritava de longe seu apelido. E o pior é que o formato e a extensão das soleiras não permitia correr. Ameaçava comprar uma arma de fogo para destampar os miolos de um fio da puta qualquer. No entanto, faltava-lhe o dinheiro. Valia-se, então de pedras. Andava com bolso sempre carregado. Desgraçadamente tinha uma péssima pontaria. Não acertava uma. E isto o irritava cada vez mais. Não havia número de sapato que desse na sua medida. Saia das lojas encabulado, ou melhor, envergonhado. Tinha que mandar um sapateiro fabricar. Colocar os pés em cima de um papelão para o sapateiro riscar. E tinha que fazer isso em sua casa.
No sapateiro sempre juntava gente e haveria mangação. Levava uma vida de cachorro com sarna. E o pior de tudo é que era estafeta do correio. E nem dava para outra coisa. Seria, por outro lado, uma burrada abandonar um emprego efetivo.
Quando menos se esperava, era o alvoroço. E não tinha o que perguntar. Era Zé Pezão vendendo azeite as camadas. Na verdade era uma figura ridícula. Quando comparecia a uma festa ou uma reunião, procurava sempre um lugar onde pudesse esconder as lanchas. E o bicho até não era feio. Do tornozelo pra cima parecia gente, mas o diabo é que só olhavam para os pés, e mesmo que não olhassem, era o que lhe parecia.
Certa feita resolveu corrigir o desproposito. Procurou o sapateiro e encomendou um sapato apertado. Tinha lido que se fazia isso na China. Esquecia-se, entretanto, que já era tarde demais. Sapatos abertos com cadarços para apertar a vontade. E era para não tirá-los. Dormia ensapatado. Mas foi o diabo. Os pés começaram a latejar e sobreveio uma inflamação, talvez proveniente do chulé.
Quando tirou os sapatos, os pés haviam crescido. Meteu-os n’água quente e aumentou a dilatação. Teve que pedir uma licença de oito dias. E correu o boato:
- Os pés de Zé Pezão, estão crescendo. Não passam mais nas portas. Só de lado.
Não adiantava pedir transferência para outra agencia. Aonde chegasse com aquelas lajes, chamaria logo a atenção. De tanto procurar remédio, teve uma ideia. Fazer calças bem compridas e de boca bem larga para cobrir as soleiras.
E entonou-se numa. Ninguém usava calças largas. Saiu pela rua entregando cartas. Levou assovios e a meninada tentou acompanhá-lo.
Botaram-lhe novo apelido. Esconde pé. Revoltou-se contra todos e contra tudo. Podia muito bem ter nascido morto, morto. Mas não. Ali estava servindo para mangação. E o pior é que não arranjava uma namorada.
- Quem é doido para casar com Zé Pezão. Já pensaram como será um filho do Pezão.
 Zé Pezão procurava se misturar com os moços de pé grande para reduzir a diferença e o resultado era sempre o mesmo: recusa. Nem mesmo as mulheres livres o queriam ver por perto. Não havia outro remédio para Zé Pezão, além de conforma-se, exibir os pés, levar na brincadeira e ter sua anormalidade como uma engraçada novidade, uma peculiaridade somente sua. Tornar-se-ia então, uma curiosidade especial. E foi justamente isso que Zé Pezão resolveu fazer.
- Que diabo, somente ele tivera aquele privilégio e por que não fazer dele uma distração ao invés de atordoa-lo?
E um belo dia Zé Pezão, apareceu de calça estreita, calçado com sapatos brancos para chamar a atenção. E aonde chegava fazia questão de exibir as soleiras, como se fosse uma distinção. Entrava, saía, pisava forte, chutava coisas, contanto que fosse visto e admirado. Ora, com um pouco tempo já ninguém via mais os pés de Zé Pezão. E quando lhe chamavam pelo nome, reclamava.
- Não admito. Meu nome de guerra é Zé Pezão. Respeite-me.
Tornou-se engraçado, mandou fazer sapatos mais folgados, trazia-os lustrosos, cruzava as pernas quando se sentava, contanto que fosse visto. Foi promovido nos correios e passou para o serviço interno. Ganhado relativamente bem, passou a andar mais vistoso e a botar um dinheirinho no banco. Fumava cigarros dos mais caros e a usar gravatas mais vistosas. Dai por diante Zé passou a ser cortejado. Não lhe faltava namoradas, e até parecia ser também um privilegio tê-lo como namorado.
- Que bobagem. Funcionário federal, efetivo, ganhando bem e de boa aparência, é um bom partido. Se tem pés grandes isto até é vantajoso. Firma-se bem e dizem que é sinal positivo... Ora essa. Vai namorar outro, de pés miudinhos. O gosto é teu.
Zé Pezão findou noivando e casando. Dedicado como era ao seu trabalho teve nova promoção e recebeu elogios. A mulher engravidou. E surgiam os comentários:
- Coitada da Irenice vai ter um parto perigoso. Certamente uma cesariana.
-Tenho pena é da criança, tadinha. Vai calçar sapatinhos quarenta e quatro. Será mais uma vítima da hereditariedade. Mais um marcado pelo destino. Chamar-se-á Zé Pezão Filho.
Numa terça-feira o menino botou a carinha de fora. A notícia galopou. Todo mundo queria ver o garotinho.
- Deveria ser engraçado com os pezinhos chatos, e os dedões de meia légua de comprimento.
- Tadinho dizia outra: E nem é bom ver a tristeza da mãe. Não foi falta de advertência. Mas estava danada pra se casar.
Zé Pezão resolveu fazer uma brincadeira combinado com a mulher. Pedir ao médico para não permitir visitas aos parentes muitos próximos. E assim foi.
- Estão vendo aí. Tem até vergonha de mostrar a deformação e Zé Pezão já mandou encomendar os sapatinhos quarenta e quatro.
Irenice foi para casa. Houve então a correria. Nunca se tinha visto um bebê tão visitado. E veio o desapontamento. O garotinho era uma perfeição. Os pesinhos iguais aos da mãe. Dava vontade de beijá-los. Poucas vezes viram-se uns pés de criança tão perfeitos.
Os dedinhos normais, a curva do pé bem desenhado, saía todo mundo murcho, o que mostrava como a humanidade é fingida e maledicente. No íntimo, o que queriam mesmo, na maioria, era um menino deformado.
E era fácil de notar a surpresa, manifestada através de oh! Ou pelos gestos e arregalado dos olhos.
- Na verdade, Irenice, o mundo social em que vivemos é uma montureira. Notastes como admiraram de o menino ser normal? Desejavam que saísse com os pés exagerados, para servir de mangação. Mas a natureza também se vinga dos maledicentes. Houve até quem mandasse de presente, sem declarar, um par de sapatinhos de lã de mais de um palmo de comprimento. Cretinice!...
- Talvez na festa do batizado a gente descubra quem mandou. Coloca-se o par de sapatos bem a vista e fica-se observando: a pessoa que o mandou sentirá uma reação. E foi certo. Pelo visto havia sido uma ex-candidata ao casamento com o Zé Pezão. Arregalara muito os olhos, surpreendida com os sapatões.
E no fim da festa, Irenice fez-lhe presente dos sapatos. – toma lá, você é minha melhor amiga. Brevemente te casarás. Guarda para o teu primeiro filho. Foi grande para o meu e espero que não seja pequeno para o teu.
- É vou guarda-lo. - E pronunciou um obrigado com um risinho amarelo e ensosso. - Olha Irenice, quis fazer-lhes uma simples brincadeira. Não me leves a mal. Confiei em nossa amizade.
- Sim, sabia e por isso estou te devolvendo. Permita Deus que não venhas a precisar dos sapatinhos. Os pais de José tinham os pés pequenos e normais. Lembra-te disso.
E duas lágrimas caíram dos olhos de Berenice. - Juro, minha boa Irenice, foi só brincadeira. Pede a Deus que eu tenha um filhinho tão lindo quanto o teu. Perdoa-me, mas confesso-te que tinha ciúmes de ti e fiz por maldade. Desejava tanto que o teu filho nascesse deformado. Uma estúpida vingança.
- Tu podes, por acaso, perdoa-me. Perdoa, perdoa sim, Irenice. Tira-me dessa situação. Estou envergonhada e triste. Foi o diabo do ciúme. Mas agora já estou noiva e tudo acabou. Deseja-me felicidade, Irenice.
- Sempre desejei. Por nós, serás sempre feliz.
E Berenice chorou novamente.
- Reza para o meu filho nascer normal, reza. Tu rezas Irenice?
- Rezo sim, sinha boba. Dá-me estas meias. Vamos queimá-las e acabar com a brincadeira.
- Toma, toma. Nem posso olhar para elas. Vou pedir ao padre para benzer minhas mãos. Tenho medo, Irenice. Penso em acabar o noivado. Não quero ter filhos. Posso ser castigada.
- És uma tontinha. Deus não castiga ninguém. Tudo é léira desses padrecas ignorantes. É tudo exteriorização. Tiram proveitos disso. No íntimo, sabem que não existe castigo.  Casa, casa logo. Completarás tua vida.
- Cada vez compreendo mais que este mundo não presta, mesmo, Irenice.
- O mundo! Engano. São as pessoas, como nós, Berenice. Quase sempre se olham ou pensam uns nos outros com dois sentidos. Um real, outro aparente. A estima de um lado e a maldade do outro. E é sempre difícil entender a verdadeira intensão. Brinca-se para distrair e brinca-se maldosamente.
- Já me vou. Perdoa-me. Esta foi uma grande lição. Então foi bom que isso acontecesse...
- Foi, foi sim, Irenice. Ajuda-me. Sou uma pobre de espirito. Pelo amor de Deus não me olhes com desconfiança. Tenho vergonha de te ver.
- Apareças sempre sinha tolinha. O que importa é que tenho um filho maravilhoso. Venha sempre aqui.

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.






REVOLUÇÃO DE 32



A Revolução Constitucionalista de 1932, Revolução de 1932 ou Guerra Paulista, foi o movimento armado ocorrido no Estado de São Paulo, entre os meses de julho e outubro de 1932, que tinha por objetivo a derrubada do Governo Provisório de Getúlio Vargas e a promulgação de uma nova constituição para o Brasil.
Foi uma resposta paulista à Revolução de 1930, a qual acabou com a autonomia de que os estados gozavam durante a vigência da Constituição de 1891. A Revolução de 1930 impediu a posse do governador de São Paulo (na época se dizia "presidente") Júlio Prestes na presidência da República e derrubou do poder o presidente da república Washington Luís, que fora governador de São Paulo de 1920 a 1924, colocando fim à República Velha.

Atualmente, o dia 9 de julho, que marca o início da Revolução de 1932, é a data cívica mais importante do estado de São Paulo e feriado estadual. Os paulistas consideram a Revolução de 1932 como sendo o maior movimento cívico de sua história.
Foi a primeira grande revolta contra o governo de Getúlio Vargas e o último grande conflito armado ocorrido no Brasil.

No total, foram 87 dias de combates, (de 9 de julho a 4 de outubro de 1932 - sendo o último dois dias depois da rendição paulista), com um saldo oficial de 934 mortos, embora estimativas, não oficiais, reportem até 2200 mortos, sendo que numerosas cidades do interior do estado de São Paulo sofreram danos devido aos combates.

São Paulo, depois da revolução de 32, voltou a ser governado por paulistas, e, dois anos depois, uma nova constituição foi promulgada, a Constituição de 1934.

ANTECEDENTES DO MOVIMENTO


Em 1932 a irritação dos paulistas com Getúlio Vargas não cedeu com a nomeação de um paulista, Pedro Manuel de Toledo, como interventor do Estado, pois tanto este quanto Laudo Ferreira de Camargo (que havia renunciado por causa da interferência dos tenentes no governo), não conseguiam autonomia para governar.

A primeira grande manifestação dos paulistas foi um megacomício - na época se dizia meeting - na Praça da Sé, no dia do aniversário de São Paulo, em 25 de janeiro de 1932, com um público estimado em 200 000 pessoas, e, na época, chamados de "comícios-monstro". Em maio de 1932, ocorreram vários comícios constitucionalistas.

As interferências da ditadura no governo de São Paulo eram constantes, não se deixando os interventores formarem livremente seu secretariado, nem do Chefe de Polícia de São Paulo. Pedro de Toledo não governava de fato, as interferências de Miguel Costa, Osvaldo Aranha, João Alberto Lins de Barros, Manuel Rabelo e Pedro Aurélio de Góis Monteiro eram constantes.

Os tenentes do Clube 3 de outubro eram totalmente contrários a que se fizesse uma nova constituição, tendo eles entregado, a Getúlio Vargas, em 3 de março de 1932, em Petrópolis, um documento no qual dão seu total apoio à ditadura e no qual se manifestam contrários a uma nova constituição.

Júlio Prestes acreditava, já em 1931, que a situação da ditadura estava se tornando insustentável e declarou no exílio em Portugal:
 "O que não compreendo é que uma nação, como o Brasil, após mais de um século de vida constitucional e liberalismo, retrogradasse para uma ditadura sem freios e sem limites como essa que nos degrada e enxovalha perante o mundo civilizado"!
O Partido Republicano Paulista e o Partido Democrático de São Paulo, que antes apoiara a Revolução de 1930, uniram-se, em fevereiro de 1932, na Frente Única para exigir o fim da ditadura do "Governo Provisório" e uma nova Constituição. Assim, São Paulo inteiro estava contra a ditadura.

Os paulistas consideravam que o seu Estado estava sendo tratado pelo Governo Federal, que se dizia um "Governo Provisório", como uma terra conquistada, expressão de autoria de Leven Vanpré, governada por tenentes de outros estados e sentiam, segundo afirmavam, que a Revolução de 1930 fora feita "contra" São Paulo, pois Júlio Prestes havia tido 90% dos votos dos paulistas em 1930.

O estopim da revolta foi a morte de cinco jovens no centro da cidade de São Paulo, assassinados a tiros por partidários da ditadura, pertencentes à "Legião Revolucionária", criada por João Alberto Lins de Barros e orientada pelo Major Miguel Costa, em 23 de maio de 1932.
Pedro de Toledo tentara formar um novo secretariado independente das pressões exercidas pelos tenentes, quando chegou a São Paulo Osvaldo Aranha, representando a ditadura, querendo interferir na formação do novo secretariado. O povo quando ficou sabendo saiu às ruas, houve grandes comícios e passeatas, e no meio do tumulto a multidão tenta invadir a sede da "Legião Revolucionária". Ao subirem as escadarias do edifício, são recebidos a balas.


Pedro de Toledo, com o apoio do povo, conseguiu, porém montar um secretariado de sua livre nomeação (que ficou conhecido como o Secretariado de 23 de maio), neste dia 23 de maio de 1932 e romper definitivamente com o Governo Provisório.

O MMDC

A morte dos jovens deu origem a um movimento de oposição que ficou conhecido como MMDC, atualmente denominado oficialmente de MMDCA:

Mário Martins de Almeida (Martins)
Euclides Bueno Miragaia (Miragaia)
Dráusio Marcondes de Sousa (Dráusio)
Antônio Américo Camargo de Andrade (Camargo)
Orlando de Oliveira Alvarenga (Alvarenga)
 Cartão Postal do MMDC.jpg

O MMDC foi organizado como sociedade secreta, em 24 de maio de 1932, tendo sido projetado durante um jantar no Restaurante Posilipo, por Aureliano Leite, Joaquim de Abreu Sampaio Vidal, Paulo Nogueira e Prudente de Moraes Neto entre outros. Inicialmente, a sociedade foi chamada "Guarda Paulista", mas, depois, foi fixada em MMDC, em homenagem aos jovens mortos a 23 de maio. Em 10 de agosto, o Decreto nº. 5627-A, do governo do Estado oficializou o MMDC, cuja direção foi entregue a um colegiado, presidido por Waldemar Martins Ferreira, secretário da Justiça, e tendo, como superintendente, Luís Piza Sobrinho. O MMDC foi instalado na Faculdade de Direito e depois transferido para o antigo Fórum, na rua do Tesouro, e depois para o prédio da Escola de Comércio Álvares Penteado.

O dia 23 de maio é sagrado em São Paulo como o Dia do soldado constitucionalista.
Esse fato levou à união de diversos setores da sociedade paulista em torno do movimento de constitucionalização que se iniciara em janeiro de 1932. Neste movimento, liderado pelo MMDC, se uniram o PRP e o Partido Democrata, chamados pela ditadura de "oligarquia", que pretendiam a volta da supremacia paulista e do PRP ao poder e queriam, também, reparar a injustiça ocorrida em 1930, quando o candidato dos paulistas Júlio Prestes foi eleito a presidência mas não pôde tomar posse impedido pela Revolução de 1930, quanto segmentos que desejavam a implantação de uma verdadeira democracia no Brasil, mais ampla que a democracia da Constituição de 1891.
Começou-se, então, a se tramar um movimento armado visando à derrubada da ditadura de Getúlio Vargas, sob a bandeira da proclamação de uma nova Constituição para o Brasil.
Desde seu início, a revolução de 1932 contou com o apoio decisivo da maçonaria paulista, através de suas lideranças e de seus membros como Pedro de Toledo, Júlio de Mesquita Filho, Armando de Sales Oliveira, Ibraim Nobre e outros.

Em 9 de julho, Getúlio Vargas já havia estabelecido eleições para uma Assembleia Nacional Constituinte (As eleições foram convocadas em fevereiro de 1932) e já havia nomeado um interventor paulista - as duas grandes exigências de São Paulo. Porém a interferência do governo federal e dos tenentes em São Paulo continuava forte. Os tenentes eram contra a instalação de uma assembleia constituinte, tendo, seus representantes entregado a Getúlio Vargas um manifesto contrário à constituinte em 3 de março de 1932, em Petrópolis, um documento no qual dão seu total apoio à ditadura e no qual se manifestam contrários a uma nova constituição.

Estes atos do Governo Provisório, porém, não evitaram o conflito, já que o que o PRP, agora unido ao seu rival Partido Democrático paulista, almejava voltar a dominar a política nacional, como fazia anteriormente, reparando a injustiça de Júlio Prestes não ter tomado posse como presidente da República em 1930, e dar uma constituição ao Brasil e terminar com as interferências da ditadura no governo de São Paulo.
Era especialmente humilhante para São Paulo a nomeação do major Miguel Costa para comandante da Polícia Militar de São Paulo, então chamada de Força Pública, pois Miguel Costa havia sido expulso da Força Pública em 1924 por tentar derrubar o governo paulista na Revolução de 1924.

O combatente-médico da revolução de 1932, Ademar Pereira de Barros que governaria São Paulo por três vezes, assim explicou, em Santos, em 1934, as razões da revolução de 1932:

"São Paulo levantou-se em armas em 9 de julho de 1932 para livrar o Brasil de um governo que se apossaria de sua direção por efeito de uma revolução… e se perpetuava indefinidamente no poder, esmagando os direitos de um povo livre... e que trazia o sempre glorioso São Paulo debaixo de das botas e o chicote do senhor"! — Ademar de Barros

O MOVIMENTO ARMADO
Em 9 de julho eclodiu o movimento revolucionário, com os paulistas acreditando possuir o apoio de outros Estados, notadamente Minas Gerais, Rio Grande do Sul e do sul de Mato Grosso, para a derrubada de Getúlio Vargas, o que acabou não ocorrendo. Pedro de Toledo, que ganhara forte apoio dos paulistas, foi proclamado governador de São Paulo e foi o comandante civil da revolução constitucionalista. Foi lançado uma proclamação da "Junta Revolucionária" conclamando os paulistas a lutarem contra a ditadura. Formavam a Junta Revolucionária, Francisco Morato do Partido Democrático, Antônio de Pádua Sales do PRP, Generais Bertoldo Klinger e Isidoro Dias Lopes. O general Euclides Figueiredo assumiu a 2º Região Militar.

Alistaram-se 200 000 voluntários, sendo que estima-se que destes, 60 000 combaterem nas fileiras do exército constitucionalista.
No estado de São Paulo, a Revolução de 1932 contou com um grande contingente de voluntários civis e militares e o apoio de políticos de outros Estados, antigos apoiadores da Revolução de 1930, como, no Rio Grande do Sul, Raul Pilla, Borges de Medeiros, Batista Luzardo e João Neves da Fontoura entre outros, que formaram a Frente Única Rio-Grandense, e que tentaram fazer uma revolta mas foram capturados (salvo Batista Luzardo que conseguiu fugir) e exilados pelo interventor gaúcho.
No atual Mato Grosso do Sul foi formado um estado independente que se chamou Estado de Maracaju, que apoiou São Paulo. Em Minas Gerais, a revolução de 1932 obteve o apoio do ex-presidente Artur Bernardes, que terminou também exilado.
São Paulo esperava a adesão do interventor do Rio Grande do Sul, o estado mais bem armado, mas este na última hora decidiu enviar tropas não para apoiar São Paulo, mas para combater os paulistas.

Quando se inicia o levante, uma multidão sai às ruas em apoio. Tropas paulistas são enviadas para os fronts em todo o Estado. Mas as tropas federais são mais numerosas e bem-equipadas. Aviões são usados para bombardear cidades do interior paulista. Quarenta mil homens de São Paulo enfrentam um contingente de cem mil soldados. Os planos paulistas previam um rápido e fulminante movimento em direção ao Rio de Janeiro pelo Vale do Paraíba, com a retaguarda assegurada pelo apoio que seria dado pelos outros estados.

Porém, com a traição dos outros estados, o plano imaginado por São Paulo não se concretizou: Rio Grande do Sul e Minas Gerais foram compelidos por Getúlio Vargas a se manterem ao seu lado e a publicidade de pretensão separatista do movimento levou São Paulo a se ver sozinho, com o apoio de apenas algumas tropas mato-grossenses, contra o restante do Brasil.[19] Comandados por Pedro de Toledo, aclamado governador revolucionário, e pelo general Bertoldo Klinger, as tropas paulistas se viram lutando em três grandes frentes: o Vale do Paraíba, o Sul Paulista e Leste Paulista.

O estado de São Paulo, apesar de contar com mais de quarenta mil soldados, estava em desvantagem. Por falta de apoio e a traição de outros estados, São Paulo se encontrava num grande cerco militar.
Como as fronteiras do estado foram fechadas, não havia como adquirir armamento para o conflito, fora do país, assim muitos voluntários levaram suas próprias armas pessoais e engenheiros da Escola Politécnica do Estado (hoje EPUSP) e do IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas) passaram a desenvolver armamentos a serem produzidos pelo próprio estado para suprir as tropas. Um navio que trazia do exterior armamento para os paulistas foi apreendido pela Marinha do Brasil.
No teste de um novo canhão, um acidente matou o Comandante da Força Pública, Coronel Júlio Marcondes Salgado. Uma das armas mais sofisticadas feitas pela indústria paulista foi o trem blindado, usado na campanha militar no Vale do Paraíba.
São Paulo criou moeda própria, que foi falsificada pela ditadura e distribuída na capital paulista para desestabilizar a economia do estado. O dinheiro paulista era lastreado pelo ouro arrecadado pela campanha "Ouro para o bem de São Paulo", também chamado de "Ouro para a vitória".
Também foram compradas armas nos EUA, mas o navio que as transportava foi apreendido. Houve muita falta de munição, o que levou os paulistas a inventarem e usarem um aparelho que imitava o som das metralhadoras, chamado de "matraca".
Houve intensa mobilização através do rádio, uma novidade na época, onde se destacou César Ladeira da Rádio Record. Usaram-se muita propaganda e contra-propaganda ideológica por parte da ditadura que acusava São Paulo de estar nas mãos do fascismo italiano trazido pelos imigrantes. Eram recrutados, pela ditadura, brasileiros de outras regiões para combaterem São Paulo dizendo-lhes que São Paulo queria se separar do Brasil.
A ditadura colocava elementos infiltrados em reuniões e comícios em São Paulo que pregavam o derrotismo e o desânimo da população.
O crime mais bárbaro, ocorrido durante a Revolução de 1932, ocorreu na cidade de Cunha onde as tropas da ditadura torturaram e mataram o agricultor Paulo Virgínio, por este se recusar a dizer onde estavam as tropas paulistas. Paulo Virgínio foi obrigado a cavar sua própria sepultura e morreu dizendo: "Morro mas São Paulo vence"!   
Paulo Virgínio, junto com os jovens do MMDC, está enterrado no ponto central do Mausoléu do Ibirapuera e é homenageado dando seu nome a rodovia SP-171, que corta a região onde ele foi assassinado.
O movimento estendeu-se até 2 de outubro de 1932, quando foi derrotado militarmente.
Fonte: Wikipédia



domingo, 6 de julho de 2014

Zé Piaca


ZÉ PIACA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

Zé Piaca nasceu e se criou na roça e no trabalho pesado. Mas também havia nascido sem sorte. Não perdia hora, exceto aos domingos reservados a igreja. Rezava, confessava-se e fazia promessas que pagava religiosamente. Dava espórtulas para igreja e, afinal, cumpria fielmente os mandamentos das leis de Deus.
Não rezava mais por que não havia aprendido. E com tudo isso, os seus caminhos eram sempre cruzados. As coisas que tentava ou fazia nunca dava certo. Vivendo no Sertão brabo, ora com chuvas de mais, ora sem chuva, não lograva acertar.
O milharal se perdia e quando lograva colher, o gorgulho devorava as colheitas. Era assim com os demais legumes. Se não fosse somente pela mulher, passaria fome. Até as cabrinhas que criavam, perdiam os cabritos ou o carcará arrancava-lhe os olhos se nasciam na caatinga. Um azar danado.
Resolveu, então, ir ao vigário fazer umas consultas, numa tentativa de salvação. Padre Damião o recebeu atenciosamente, mesmo porque já o sabia católico fervoroso. A mulher e ele.
Contou-lhe sua longa e mortificante história. Não perdia missa, confessavam-se sempre e levavam uma vida honesta. No entanto, não prosperavam. As lavouras se perdiam, os cabritos morriam e até o leite das cabras talhava.
Por mais amor que tinha a mulher e por maior que fosse a diligência dos dois, não nascia um filho que tanto queria.
Padre Damião ouvia tudo calado e atenciosamente. Era realmente um caso curioso. E como não tinha outra saída, valeu-se da falta de fé, - Sim a fé era pouca.
- Como que era pouca, se eram católicos de convicção e de herança. Fé tinha até demais. Não, não podia ser, Deveria ser mesmo azar e era isto que queriam que o padre tirasse. Fosse a sua propriedadezinha e rezasse nos quatro cantos para tirar os esconjuros.
O padre condoeu-se e foi. Aspergiu água benta, andou em cruz de canto a canto e rezou a reza mais forte que sabia.
- Está aí. Agora pode plantar ou semear sem susto. O capeta não botará mais os pés aqui dentro.
As terras estavam prontas esperando as chuvas de dezembro.
- Agora sim mulher, vamos ter boas safras de tudo. Vamos por as sementes ao sol, pra nascerem melhor e quando a chuva riscar, eu cavo e tu plantas, o padre garantiu.
- É, eu ouvi.
E quando a trovoada abalou os céus e a terra molhou, as sementes foram para o chão. A germinação foi soberba. Só faltou mesmo nascerem duas plantas de uma semente só. E a chuva não faltava. As lavouras cresciam como se fossem bem adubadas.
Rezaram uma novena em Ação de Graça. Estavam salvas e já não tinham a menor dúvida que a reza havia espantado o “pé de pato”. Maus olhos não podiam olhar suas roças. Era uma exuberância nunca vista.
Mas quando foi na segunda-feira, o diabo estava solto. Uma praga de lagarta devoravam o milho, feijão, e todas as plantações. Em cima disso, um verão prologado para dar mais força a lagarta. Uma semana depois só existiam praticamente, os talos.
Correram para o vigário. Encontraram-no de sono solto, já às três horas da tarde. Depois de uma longa espera, apareceu sem lavar o rosto e com sinais de preguiça nos olhos.
- Olá seu Zé Piaca. Como vai dona Salomé.
- Nós não vamos bem. Nem nós nem as lavouras. A lagarta, ou a “mundiça”, como chamamos, devorou tudo, tudo. A benzedura não serviu de nada. Parece que chamou a lagarta que veio desesperada. Só deixou os talos e estamos perdidos e mais ainda com este verãozão terrível.
- Não fale assim. Que a reza serviu, não tenha dúvida, poderia ter sido pior.
- Pior como, seu vigário?
- Ora como. Um terremoto que rachasse a terra derrubasse a casa e matasse os bichos e vocês dois. Além disso, não foi reza contra lagarta. Foi reza contra os poderes do capeta. E quanto a ele, aposto como não botará mais os pés em sua terra. Pelo menos dele estarão livres. Tenham mais fé.
- Não seu vigário, fé nós temos; mais me diga uma coisa. Fé enche barriga de pobre? Se encher, ensina-nos como prepará-la, pois a mulher, minha Salomé, só sabe cozinhar feijão, milho, batata doce e jerimum.
- Fé não se come, se tem.
- E pra que serve afinal?
- Para confortar as pessoas nos momentos difíceis. Dar-lhes confiança. Por exemplo, no seu caso agora. Resignar-se e esperar para o próximo ano. Plantar de novo e acreditar na boa sorte
- Ah! É disto. Serve para isto? Pois, olhe padre, se nós já tínhamos pouca fé, acabamos de perdê-la. Toda as vezes é esta mesma cantilena. Vamos mudar de crença. Procurar outra igreja. A dos crentes fazer uma tentativa.
Mudaram e deu na mesma farinha. O desespero continuou. Nem filho, nem feijão, nem batata que prestasse.
Perderam a primeira plantação e foram à casa do fazendeiro comprar novas sementes, aliás, pelos olhos da cara. Eram umas tais de sementes selecionadas.
- Podiam confiar!
Mas nem nasceram que prestasse. O azar continuava a persegui-los. Foi então, quando lhes apareceu um agrônomo a quem narraram sua velha e longa história.
- Bem, vamos tentar dar um jeitinho. Só não podemos é fazer chover. Mas se tem água de cacimba ou açude ainda se dá uma solução.
- Mas, seu moço, já perdemos a fé.
- Fé? Não sei não. Bastam que tenhas confiança e façam o que lhe vamos ensinar. Plantem sementes nascedouras e trate a lavoura. Lembre-se que na falta de chuva uma boa limpa, vale por uma chuva. Mexer com a terra da roça, isto ajuda um pouco.
E encontraram casualmente o padreca.
 Como vão meus filhos. A roça este ano produziu muito, as lagartas apareceram? A chuva foi boa com certeza e o lucro garantido como todos os outros tiveram! Está vendo que a fé nunca morre. É só esperar um pouco que Deus manda com fartura!
E desceu a ripa em cima do padre:
- É. O senhor está pensando que fazer roçado de milho e feijão é prometer pedaço de céu que o senhor nem sabe onde, nem se existe, e a troco de dinheiro dos carolas. Andar de mãozinha lisa, sem sinal de calos, comendo do bom e do melhor, sem dar um prego numa barra de sabão. Dormir como um justo, sem se preocupar com a chuva ou com o sol, com o mato das roças ou se lagartas devoram as lavouras. O senhor está muito enganado, e procure não enganar os bestas. Fomos na sua conversa de fé e o resultado foi perder até o jeito de andar. Quem dorme de barriga e bolsa cheias, pode muito bem confiar nessa sua santa fé. Salomé e eu sabemos muito bem do valor de suas pregações. Fomos em sua conversa fiada e perdemos as lavouras. Passamos um ano cruel. Quem nos salvou este ano foi a água da cacimba e, nem era benta e veneno nas lagartas. Conserve sua fé e deixe os outros em paz. Fé é para quem tem vida folgada, como essa do senhor. Mesa, cama, boas conversas, dinheiro entrando sem suar. Assim vale apena ter fé. Mas vá pegar no cabo da enxada, lutar contra as pragas!
- Mas é com sacrifício que se alcança os reinos dos céus, a vida eterna. Isto tudo aqui é passageiro.
- Não, seu vigário, nós não embarcamos em canoa furada. Não temos receio dessas suas ameaças com as penas do inferno, que não deixa também de ser conversa fiada. Deus não iria criar tais monstruosidades para castigar os seus filhos. Quem deve temê-las é quem não faz nada e vive de tripas forra. Aí sim. Mas nós, pobres sertanejos sofredores, passando fome e bebendo água ruim, nem nos bate o papo. Já perdemos o medo dessas coisas. O Dr. Ambrósio explicou certa feita que quem criou inferno ou purgatório fora os padres mesmos para fazerem medo ao povo e poder viver as custas deles. Deus não iria criar coisa ruim para castigar os seus filhos. Sabe de uma coisa seu reverendo. Estamos conversados. Seu roçado é um e o meu é outro. O seu produz de inverno a verão, com chuva ou sem chuva, só com água benta. Sem adubo e sem esforço e a semente e a fé de quem não perde o poder germinativo. O meu é regado com suor e água de chuva. A terra se esgota e a semente custa dinheiro e não nasce só com fé, e nem produz com reza. Até loguinho felizardo!
- É, mas não conte com o reino do céu. Lá não se entra com saco de feijão, nem de milho. Vá se preparando para o pior. Onde Deus não está o capeta chega. Peça então a ele para lhe ajudar.
- Não se preocupe não, meu velho. Não tenho medo de quem não existe. Vosmecê que o criaram que fiquem com ele. E tenha cuidado que não dê lagarta ao seu roçadinho ou formiga de roça corte as suas roças. Fumaça de incenso não mata formiga.
- Tenha fé, homem!
- No que faço tenho muita... Não é Salomé?
- É sim. E ele tem toda razão. O que é ruim, quem criou foi essa gente mesma que explora o povo ignorante ou medroso. Ele, o doutor falou também que os padres perdoaram os piores criminosos, abrindo o caminho do céu e estimulando o que continha novos crimes. Não foi mesmo Piaca?
- Está lembrada, Salomé, do Antônio Furiba, que matou a mãe e na hora da morte o vigário o perdoou. Como pode ser. Ao mesmo tempo quem tem um pecadinho à-toa e não se confessou por isso ou por aquilo, no mínimo pega uma temporada no purgatório.
- Antônio Furiba, um monstro, confessou-se e foi direto se apresentar a São Pedro, com carta branca para entrar no reino dos santos. Ouviu seu reverendo, seu roçado é numa terrinha pé de dinheiro, mas pode ir tirando a sela do cavalo, que com mais algum tempo vai andar de jegue, o seu cavalo esquipador vai perder a passada. A sola desse sapatinho preto, de verniz, vai se acabar. Essas mãozinhas finas e macias, vão engrossar. Olha as minhas: só tem calo seco. No começo criam calos d’água que dói pra danado. Reza tuas rezas, conserva lá tua fé, mas vai fazer alguma coisa útil, bicho. A lagarta vem aí. E água benta não mata formiga...

23.3.86 Campina Grande/PB

*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.