segunda-feira, 7 de julho de 2014

ZÉ PEZÃO





Zé Pezão*
 João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Brancão, alto e magro, Zé Pezão vivia em pé de guerra. Subia as paredes, esbravejava, soltava palavrões de todos os tamanhos e ameaçava matar um peste qualquer.
- Será o primeiro que eu botar a mão em cima.
Coitado. Não tinha culpa de haver nascido com aquele desproposito. Pés chatos, chatíssimos, como uma taboa, largos, dedos abertos e exageradamente grandes. Certamente não aconteceria nada se o apelido fosse esquecido.
Mas Zé Pezão que já andava encabulado com a monstruosidade, ficava espoletado quando a garotada gritava de longe seu apelido. E o pior é que o formato e a extensão das soleiras não permitia correr. Ameaçava comprar uma arma de fogo para destampar os miolos de um fio da puta qualquer. No entanto, faltava-lhe o dinheiro. Valia-se, então de pedras. Andava com bolso sempre carregado. Desgraçadamente tinha uma péssima pontaria. Não acertava uma. E isto o irritava cada vez mais. Não havia número de sapato que desse na sua medida. Saia das lojas encabulado, ou melhor, envergonhado. Tinha que mandar um sapateiro fabricar. Colocar os pés em cima de um papelão para o sapateiro riscar. E tinha que fazer isso em sua casa.
No sapateiro sempre juntava gente e haveria mangação. Levava uma vida de cachorro com sarna. E o pior de tudo é que era estafeta do correio. E nem dava para outra coisa. Seria, por outro lado, uma burrada abandonar um emprego efetivo.
Quando menos se esperava, era o alvoroço. E não tinha o que perguntar. Era Zé Pezão vendendo azeite as camadas. Na verdade era uma figura ridícula. Quando comparecia a uma festa ou uma reunião, procurava sempre um lugar onde pudesse esconder as lanchas. E o bicho até não era feio. Do tornozelo pra cima parecia gente, mas o diabo é que só olhavam para os pés, e mesmo que não olhassem, era o que lhe parecia.
Certa feita resolveu corrigir o desproposito. Procurou o sapateiro e encomendou um sapato apertado. Tinha lido que se fazia isso na China. Esquecia-se, entretanto, que já era tarde demais. Sapatos abertos com cadarços para apertar a vontade. E era para não tirá-los. Dormia ensapatado. Mas foi o diabo. Os pés começaram a latejar e sobreveio uma inflamação, talvez proveniente do chulé.
Quando tirou os sapatos, os pés haviam crescido. Meteu-os n’água quente e aumentou a dilatação. Teve que pedir uma licença de oito dias. E correu o boato:
- Os pés de Zé Pezão, estão crescendo. Não passam mais nas portas. Só de lado.
Não adiantava pedir transferência para outra agencia. Aonde chegasse com aquelas lajes, chamaria logo a atenção. De tanto procurar remédio, teve uma ideia. Fazer calças bem compridas e de boca bem larga para cobrir as soleiras.
E entonou-se numa. Ninguém usava calças largas. Saiu pela rua entregando cartas. Levou assovios e a meninada tentou acompanhá-lo.
Botaram-lhe novo apelido. Esconde pé. Revoltou-se contra todos e contra tudo. Podia muito bem ter nascido morto, morto. Mas não. Ali estava servindo para mangação. E o pior é que não arranjava uma namorada.
- Quem é doido para casar com Zé Pezão. Já pensaram como será um filho do Pezão.
 Zé Pezão procurava se misturar com os moços de pé grande para reduzir a diferença e o resultado era sempre o mesmo: recusa. Nem mesmo as mulheres livres o queriam ver por perto. Não havia outro remédio para Zé Pezão, além de conforma-se, exibir os pés, levar na brincadeira e ter sua anormalidade como uma engraçada novidade, uma peculiaridade somente sua. Tornar-se-ia então, uma curiosidade especial. E foi justamente isso que Zé Pezão resolveu fazer.
- Que diabo, somente ele tivera aquele privilégio e por que não fazer dele uma distração ao invés de atordoa-lo?
E um belo dia Zé Pezão, apareceu de calça estreita, calçado com sapatos brancos para chamar a atenção. E aonde chegava fazia questão de exibir as soleiras, como se fosse uma distinção. Entrava, saía, pisava forte, chutava coisas, contanto que fosse visto e admirado. Ora, com um pouco tempo já ninguém via mais os pés de Zé Pezão. E quando lhe chamavam pelo nome, reclamava.
- Não admito. Meu nome de guerra é Zé Pezão. Respeite-me.
Tornou-se engraçado, mandou fazer sapatos mais folgados, trazia-os lustrosos, cruzava as pernas quando se sentava, contanto que fosse visto. Foi promovido nos correios e passou para o serviço interno. Ganhado relativamente bem, passou a andar mais vistoso e a botar um dinheirinho no banco. Fumava cigarros dos mais caros e a usar gravatas mais vistosas. Dai por diante Zé passou a ser cortejado. Não lhe faltava namoradas, e até parecia ser também um privilegio tê-lo como namorado.
- Que bobagem. Funcionário federal, efetivo, ganhando bem e de boa aparência, é um bom partido. Se tem pés grandes isto até é vantajoso. Firma-se bem e dizem que é sinal positivo... Ora essa. Vai namorar outro, de pés miudinhos. O gosto é teu.
Zé Pezão findou noivando e casando. Dedicado como era ao seu trabalho teve nova promoção e recebeu elogios. A mulher engravidou. E surgiam os comentários:
- Coitada da Irenice vai ter um parto perigoso. Certamente uma cesariana.
-Tenho pena é da criança, tadinha. Vai calçar sapatinhos quarenta e quatro. Será mais uma vítima da hereditariedade. Mais um marcado pelo destino. Chamar-se-á Zé Pezão Filho.
Numa terça-feira o menino botou a carinha de fora. A notícia galopou. Todo mundo queria ver o garotinho.
- Deveria ser engraçado com os pezinhos chatos, e os dedões de meia légua de comprimento.
- Tadinho dizia outra: E nem é bom ver a tristeza da mãe. Não foi falta de advertência. Mas estava danada pra se casar.
Zé Pezão resolveu fazer uma brincadeira combinado com a mulher. Pedir ao médico para não permitir visitas aos parentes muitos próximos. E assim foi.
- Estão vendo aí. Tem até vergonha de mostrar a deformação e Zé Pezão já mandou encomendar os sapatinhos quarenta e quatro.
Irenice foi para casa. Houve então a correria. Nunca se tinha visto um bebê tão visitado. E veio o desapontamento. O garotinho era uma perfeição. Os pesinhos iguais aos da mãe. Dava vontade de beijá-los. Poucas vezes viram-se uns pés de criança tão perfeitos.
Os dedinhos normais, a curva do pé bem desenhado, saía todo mundo murcho, o que mostrava como a humanidade é fingida e maledicente. No íntimo, o que queriam mesmo, na maioria, era um menino deformado.
E era fácil de notar a surpresa, manifestada através de oh! Ou pelos gestos e arregalado dos olhos.
- Na verdade, Irenice, o mundo social em que vivemos é uma montureira. Notastes como admiraram de o menino ser normal? Desejavam que saísse com os pés exagerados, para servir de mangação. Mas a natureza também se vinga dos maledicentes. Houve até quem mandasse de presente, sem declarar, um par de sapatinhos de lã de mais de um palmo de comprimento. Cretinice!...
- Talvez na festa do batizado a gente descubra quem mandou. Coloca-se o par de sapatos bem a vista e fica-se observando: a pessoa que o mandou sentirá uma reação. E foi certo. Pelo visto havia sido uma ex-candidata ao casamento com o Zé Pezão. Arregalara muito os olhos, surpreendida com os sapatões.
E no fim da festa, Irenice fez-lhe presente dos sapatos. – toma lá, você é minha melhor amiga. Brevemente te casarás. Guarda para o teu primeiro filho. Foi grande para o meu e espero que não seja pequeno para o teu.
- É vou guarda-lo. - E pronunciou um obrigado com um risinho amarelo e ensosso. - Olha Irenice, quis fazer-lhes uma simples brincadeira. Não me leves a mal. Confiei em nossa amizade.
- Sim, sabia e por isso estou te devolvendo. Permita Deus que não venhas a precisar dos sapatinhos. Os pais de José tinham os pés pequenos e normais. Lembra-te disso.
E duas lágrimas caíram dos olhos de Berenice. - Juro, minha boa Irenice, foi só brincadeira. Pede a Deus que eu tenha um filhinho tão lindo quanto o teu. Perdoa-me, mas confesso-te que tinha ciúmes de ti e fiz por maldade. Desejava tanto que o teu filho nascesse deformado. Uma estúpida vingança.
- Tu podes, por acaso, perdoa-me. Perdoa, perdoa sim, Irenice. Tira-me dessa situação. Estou envergonhada e triste. Foi o diabo do ciúme. Mas agora já estou noiva e tudo acabou. Deseja-me felicidade, Irenice.
- Sempre desejei. Por nós, serás sempre feliz.
E Berenice chorou novamente.
- Reza para o meu filho nascer normal, reza. Tu rezas Irenice?
- Rezo sim, sinha boba. Dá-me estas meias. Vamos queimá-las e acabar com a brincadeira.
- Toma, toma. Nem posso olhar para elas. Vou pedir ao padre para benzer minhas mãos. Tenho medo, Irenice. Penso em acabar o noivado. Não quero ter filhos. Posso ser castigada.
- És uma tontinha. Deus não castiga ninguém. Tudo é léira desses padrecas ignorantes. É tudo exteriorização. Tiram proveitos disso. No íntimo, sabem que não existe castigo.  Casa, casa logo. Completarás tua vida.
- Cada vez compreendo mais que este mundo não presta, mesmo, Irenice.
- O mundo! Engano. São as pessoas, como nós, Berenice. Quase sempre se olham ou pensam uns nos outros com dois sentidos. Um real, outro aparente. A estima de um lado e a maldade do outro. E é sempre difícil entender a verdadeira intensão. Brinca-se para distrair e brinca-se maldosamente.
- Já me vou. Perdoa-me. Esta foi uma grande lição. Então foi bom que isso acontecesse...
- Foi, foi sim, Irenice. Ajuda-me. Sou uma pobre de espirito. Pelo amor de Deus não me olhes com desconfiança. Tenho vergonha de te ver.
- Apareças sempre sinha tolinha. O que importa é que tenho um filho maravilhoso. Venha sempre aqui.

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.






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