Zé Pezão*
João Henriques da Silva
(In Memoriam
20/09/1901 – 16/04/2003)
Brancão, alto e magro, Zé Pezão
vivia em pé de guerra. Subia as paredes, esbravejava, soltava palavrões de
todos os tamanhos e ameaçava matar um peste qualquer.
- Será
o primeiro que eu botar a mão em cima.
Coitado.
Não tinha culpa de haver nascido com aquele desproposito. Pés chatos, chatíssimos,
como uma taboa, largos, dedos abertos e exageradamente grandes. Certamente não
aconteceria nada se o apelido fosse esquecido.
Mas
Zé Pezão que já andava encabulado com a monstruosidade, ficava espoletado
quando a garotada gritava de longe seu apelido. E o pior é que o formato e a
extensão das soleiras não permitia correr. Ameaçava comprar uma arma de fogo
para destampar os miolos de um fio da puta qualquer. No entanto, faltava-lhe o
dinheiro. Valia-se, então de pedras. Andava com bolso sempre carregado.
Desgraçadamente tinha uma péssima pontaria. Não acertava uma. E isto o irritava
cada vez mais. Não havia número de sapato que desse na sua medida. Saia das
lojas encabulado, ou melhor, envergonhado. Tinha que mandar um sapateiro
fabricar. Colocar os pés em cima de um papelão para o sapateiro riscar. E tinha
que fazer isso em sua casa.
No
sapateiro sempre juntava gente e haveria mangação. Levava uma vida de cachorro
com sarna. E o pior de tudo é que era estafeta do correio. E nem dava para
outra coisa. Seria, por outro lado, uma burrada abandonar um emprego efetivo.
Quando
menos se esperava, era o alvoroço. E não tinha o que perguntar. Era Zé Pezão
vendendo azeite as camadas. Na verdade era uma figura ridícula. Quando
comparecia a uma festa ou uma reunião, procurava sempre um lugar onde pudesse
esconder as lanchas. E o bicho até não era feio. Do tornozelo pra cima parecia
gente, mas o diabo é que só olhavam para os pés, e mesmo que não olhassem, era
o que lhe parecia.
Certa
feita resolveu corrigir o desproposito. Procurou o sapateiro e encomendou um
sapato apertado. Tinha lido que se fazia isso na China. Esquecia-se,
entretanto, que já era tarde demais. Sapatos abertos com cadarços para apertar
a vontade. E era para não tirá-los. Dormia ensapatado. Mas foi o diabo. Os pés
começaram a latejar e sobreveio uma inflamação, talvez proveniente do chulé.
Quando
tirou os sapatos, os pés haviam crescido. Meteu-os n’água quente e aumentou a
dilatação. Teve que pedir uma licença de oito dias. E correu o boato:
-
Os pés de Zé Pezão, estão crescendo. Não passam mais nas portas. Só de lado.
Não
adiantava pedir transferência para outra agencia. Aonde chegasse com aquelas
lajes, chamaria logo a atenção. De tanto procurar remédio, teve uma ideia.
Fazer calças bem compridas e de boca bem larga para cobrir as soleiras.
E
entonou-se numa. Ninguém usava calças largas. Saiu pela rua entregando cartas.
Levou assovios e a meninada tentou acompanhá-lo.
Botaram-lhe
novo apelido. Esconde pé. Revoltou-se contra todos e contra tudo. Podia muito
bem ter nascido morto, morto. Mas não. Ali estava servindo para mangação. E o
pior é que não arranjava uma namorada.
-
Quem é doido para casar com Zé Pezão. Já pensaram como será um filho do Pezão.
Zé Pezão procurava se misturar com os moços de
pé grande para reduzir a diferença e o resultado era sempre o mesmo: recusa.
Nem mesmo as mulheres livres o queriam ver por perto. Não havia outro remédio
para Zé Pezão, além de conforma-se, exibir os pés, levar na brincadeira e ter
sua anormalidade como uma engraçada novidade, uma peculiaridade somente sua.
Tornar-se-ia então, uma curiosidade especial. E foi justamente isso que Zé
Pezão resolveu fazer.
-
Que diabo, somente ele tivera aquele privilégio e por que não fazer dele uma
distração ao invés de atordoa-lo?
E
um belo dia Zé Pezão, apareceu de calça estreita, calçado com sapatos brancos
para chamar a atenção. E aonde chegava fazia questão de exibir as soleiras,
como se fosse uma distinção. Entrava, saía, pisava forte, chutava coisas,
contanto que fosse visto e admirado. Ora, com um pouco tempo já ninguém via
mais os pés de Zé Pezão. E quando lhe chamavam pelo nome, reclamava.
- Não
admito. Meu nome de guerra é Zé Pezão. Respeite-me.
Tornou-se
engraçado, mandou fazer sapatos mais folgados, trazia-os lustrosos, cruzava as
pernas quando se sentava, contanto que fosse visto. Foi promovido nos correios
e passou para o serviço interno. Ganhado relativamente bem, passou a andar mais
vistoso e a botar um dinheirinho no banco. Fumava cigarros dos mais caros e a
usar gravatas mais vistosas. Dai por diante Zé passou a ser cortejado. Não lhe
faltava namoradas, e até parecia ser também um privilegio tê-lo como namorado.
- Que
bobagem. Funcionário federal, efetivo, ganhando bem e de boa aparência, é um
bom partido. Se tem pés grandes isto até é vantajoso. Firma-se bem e dizem que
é sinal positivo... Ora essa. Vai namorar outro, de pés miudinhos. O gosto é
teu.
Zé
Pezão findou noivando e casando. Dedicado como era ao seu trabalho teve nova
promoção e recebeu elogios. A mulher engravidou. E surgiam os comentários:
- Coitada
da Irenice vai ter um parto perigoso. Certamente uma cesariana.
-Tenho
pena é da criança, tadinha. Vai calçar sapatinhos quarenta e quatro. Será mais
uma vítima da hereditariedade. Mais um marcado pelo destino. Chamar-se-á Zé
Pezão Filho.
Numa
terça-feira o menino botou a carinha de fora. A notícia galopou. Todo mundo
queria ver o garotinho.
- Deveria
ser engraçado com os pezinhos chatos, e os dedões de meia légua de comprimento.
-
Tadinho dizia outra: E nem é bom ver a tristeza da mãe. Não foi falta de
advertência. Mas estava danada pra se casar.
Zé
Pezão resolveu fazer uma brincadeira combinado com a mulher. Pedir ao médico
para não permitir visitas aos parentes muitos próximos. E assim foi.
-
Estão vendo aí. Tem até vergonha de mostrar a deformação e Zé Pezão já mandou
encomendar os sapatinhos quarenta e quatro.
Irenice
foi para casa. Houve então a correria. Nunca se tinha visto um bebê tão
visitado. E veio o desapontamento. O garotinho era uma perfeição. Os pesinhos
iguais aos da mãe. Dava vontade de beijá-los. Poucas vezes viram-se uns pés de
criança tão perfeitos.
Os
dedinhos normais, a curva do pé bem desenhado, saía todo mundo murcho, o que
mostrava como a humanidade é fingida e maledicente. No íntimo, o que queriam
mesmo, na maioria, era um menino deformado.
E
era fácil de notar a surpresa, manifestada através de oh! Ou pelos gestos e
arregalado dos olhos.
-
Na verdade, Irenice, o mundo social em que vivemos é uma montureira. Notastes como
admiraram de o menino ser normal? Desejavam que saísse com os pés exagerados,
para servir de mangação. Mas a natureza também se vinga dos maledicentes. Houve
até quem mandasse de presente, sem declarar, um par de sapatinhos de lã de mais
de um palmo de comprimento. Cretinice!...
-
Talvez na festa do batizado a gente descubra quem mandou. Coloca-se o par de
sapatos bem a vista e fica-se observando: a pessoa que o mandou sentirá uma
reação. E foi certo. Pelo visto havia sido uma ex-candidata ao casamento com o
Zé Pezão. Arregalara muito os olhos, surpreendida com os sapatões.
E
no fim da festa, Irenice fez-lhe presente dos sapatos. – toma lá, você é minha
melhor amiga. Brevemente te casarás. Guarda para o teu primeiro filho. Foi
grande para o meu e espero que não seja pequeno para o teu.
- É
vou guarda-lo. - E pronunciou um obrigado com um risinho amarelo e ensosso. - Olha
Irenice, quis fazer-lhes uma simples brincadeira. Não me leves a mal. Confiei
em nossa amizade.
-
Sim, sabia e por isso estou te devolvendo. Permita Deus que não venhas a
precisar dos sapatinhos. Os pais de José tinham os pés pequenos e normais. Lembra-te
disso.
E
duas lágrimas caíram dos olhos de Berenice. - Juro, minha boa Irenice, foi só brincadeira.
Pede a Deus que eu tenha um filhinho tão lindo quanto o teu. Perdoa-me, mas confesso-te
que tinha ciúmes de ti e fiz por maldade. Desejava tanto que o teu filho
nascesse deformado. Uma estúpida vingança.
-
Tu podes, por acaso, perdoa-me. Perdoa, perdoa sim, Irenice. Tira-me dessa
situação. Estou envergonhada e triste. Foi o diabo do ciúme. Mas agora já estou
noiva e tudo acabou. Deseja-me felicidade, Irenice.
-
Sempre desejei. Por nós, serás sempre feliz.
E
Berenice chorou novamente.
-
Reza para o meu filho nascer normal, reza. Tu rezas Irenice?
-
Rezo sim, sinha boba. Dá-me estas meias. Vamos queimá-las e acabar com a
brincadeira.
-
Toma, toma. Nem posso olhar para elas. Vou pedir ao padre para benzer minhas
mãos. Tenho medo, Irenice. Penso em acabar o noivado. Não quero ter filhos.
Posso ser castigada.
-
És uma tontinha. Deus não castiga ninguém. Tudo é léira desses padrecas
ignorantes. É tudo exteriorização. Tiram proveitos disso. No íntimo, sabem que
não existe castigo. Casa, casa logo.
Completarás tua vida.
-
Cada vez compreendo mais que este mundo não presta, mesmo, Irenice.
- O
mundo! Engano. São as pessoas, como nós, Berenice. Quase sempre se olham ou
pensam uns nos outros com dois sentidos. Um real, outro aparente. A estima de
um lado e a maldade do outro. E é sempre difícil entender a verdadeira
intensão. Brinca-se para distrair e brinca-se maldosamente.
-
Já me vou. Perdoa-me. Esta foi uma grande lição. Então foi bom que isso
acontecesse...
-
Foi, foi sim, Irenice. Ajuda-me. Sou uma pobre de espirito. Pelo amor de Deus
não me olhes com desconfiança. Tenho vergonha de te ver.
-
Apareças sempre sinha tolinha. O que importa é que tenho um filho maravilhoso.
Venha sempre aqui.
*O conto pertence ao
livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
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