terça-feira, 15 de julho de 2014

INFLAÇÃO


INFLAÇÃO*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            A mulata Peitica não tinha jeito nem cura. Nascera praquilo mesmo e quem fosse fraco que saísse de sua frente. Não queria saber de quem era o homem. Casado, solteiro ou viúvo era tudo a mesma coisa. As mulheres que se cuidassem.
- Era só mesmo o que lhe faltava. Gostar de um sujeito ou poder arrancar-lhe dinheiro e não ia deixar para os outros. Essa, não. Era o que ela dizia habitualmente.
            E tinha tudo quanto o médico recitara para ocupar terreno. Tinha corpo e saliências bem proporcionadas para chamar a atenção e endoidar os seus preferidos. Subindo a ladeira ou descendo era à mesma coisa. Sabia morder e gingar o corpo como uma onça pintada no cio. Estava sempre assim.
Diziam os mais sabidos que a mulata era ninfomaníaca, um caso perdido. Não se satisfazia hora nenhuma. “Aquela quenga descarada, ainda vai se da mal”.  Mas tudo não passava de conversa fiada. A bichoca era mesmo atrevida. Quando a viam passar era certo que andava de bote armado. Tinha alguém em vista.
            Podia ser até o vigário da freguesia, o senhor Juiz, o sacristão ou o delegado de polícia. E tinha feitiço. Sua maneira de fazer o convite era olhar para o sujeito e agraciá-lo com um risinho safado.
            Podia, então, esperar na cama, tranqüilamente. Para isso mantinha sua casinha própria, com uma porta e uma janela, lá num cantinho discreto. Podiam entrar e sair sem serem vistos. Até nisso era esperta. Em casa tudo arrumadinho e no petisqueiro uma boa pinga e qualquer coisa, para tira-gosto.
            Tudo muito limpinho e num arranjo de fazer gosto. E ela própria só se vestia decentemente, igual a qualquer dona de casa reservada e exigente. O diabo era o balanço do corpo, aquele gingado doido.
            E tinha uma particularidade. Não gostava da rapaziada, dos pilantras, como dizia, pois geralmente era uma turma de lisos e não raro ainda preparavam fuzarcas. Gente de respeito era outra coisa.
            Na verdade o que interessava a Peitica era o dinheiro, sim, o dinheiro dos bestas. Amor mesmo, lógico que não arrepiava os nervos. Peitica negociava o que tinha de apresentável e atrativo, o corpo que Deus lhe dera de presente.
            Sozinha no meio do mundo, sem tendência pra ser empregadinha doméstica, valeu-se do material disponível. Ninguém pensasse que não tinha seus planos.
            Tostão que lhe sobrava era amealhado ciosamente, como uma reserva para o futuro, mesmo antes de sair de forma. E mais do que isso, pensava em se casar, ter um lar honesto, viver somente para um.
            O dinheiro daria jeito nisso. Teriam de chamá-la pelo nome próprio procedido de uma palavra decente. Dona Rosalinda Araújo dos Anjos. Teriam de ver. Não pensasse que era uma mariposa por vocação. Os encontros com um e com outro, não tiravam a dignidade. Para Peitica era simplesmente uma coisa à-toa...  Como cortar o cabelo, aparar as unhas ou raspar as pernas.
            O comerciante não é um ladrão porque vende mais caro que os outros. Compra que quiser. E depois não tinha sido ela quem inventou aquelas coisas.
            Quando deixasse aquele comércio que chamavam de imoral, seria a mesma mulher, com o mesmo corpo, a mesma fala os mesmos sentimentos ocultos. Não fazia aquelas coisas por safadeza, mas apenas como seu meio de vida, uma preparação para mudar e ser o que desejava.
            Certo dia foi se confessar e contou sua história. Relatou sua vida e seus propósitos. Padre Antônio recriminou-a:
- Poderia ter seguido outros caminhos.
            - Foi o destino, padre, o destino. Mas não tenciono continuar. Tão logo, junte algum dinheiro, caio fora dessa vida suja. Não engano ninguém. Recebo quem me procura e esqueço logo. Já estou completando meu tempo e ansiosa para despedir-me, embora todos os homens queiram que eu continue. Gostam de mim, mas eu na verdade não gosto de ninguém. Sou como bodegueiro que desconhece a freguesia. Pretendo casar-me e ter minha casa e meus filhos, vão ver a vira-volta que eu vou dar.
            - É minha filha, o mundo tem dessas coisas. Poderias ter me procurado que eu lhe teria dado um bom emprego de arrumadeira...
            - Mais o povo iria falar. “Seu vigário empregou Peitica, uma mulher da vida”.
            - Não tenho nada a ver com a língua do povo, Não dou satisfação a ninguém...
            - Pois, assim, o desejo ainda está no meu corpo. Largo a vida hoje mesmo. Ponho meu dinheirinho na caixa. Será que o senhor está falando sério, ou só para me contentar?
            - Que nada sinha tolinha, se muda para cá e deixa essa vida de mariposa. Podes até pegar alguma doença braba... Cuidará somente do arranjo da casa e me farás companhia nas noites de solidão. Não sabes o que é viver só, falando com as paredes ou com o invisível.
            - Não sei, porque nunca dormi sozinha, mas deve ser terrível.
- Minha ama – cozinheira - é uma velhota rabugenta, nervosa, sempre cheirando a tempero, coisa detestável. E depois da ceia sai de porta fora como um bicho. Nem diz boa noite seu vigário. Passa pra cozinha com o seu alho e seu cominho e suas infames folhas de hortelã, atrás de sua orelha.
            - Vou pensar.
            - Pensar uma ova. Vai, aluga tua casinha ou passa-lhe a chave e balança o corpo pra cá.
            - Seu vigário essa confissão está comprida demais. Não acha? E ali tem uma velhota esperando pra contar os pecados.
            - Que espere. Aquilo não tem mais nada para pecar... E como é? Vens ou não vem fazer companhia ao padre Antonio?
            - É perigoso, seu vigário. Onde foi casa é tapera. Não posso parar assim de repente. Depois me dá alguma agonia e o senhor não vai me deixar sair.
            - Sair para onde? Tenho santo remédio para acalmar essas agonias.
            - Mas remédio não cura essas coisas, seu padre.
            - Verás. Caso não cure, poderás sair à noite ou a qualquer hora.
            - Quer dizer...
            - Uma mão lava a outra sinha burrinha. Eu te curo e tu me curas.
- Apareça lá em casa. Sem batina ninguém conhece. Qualquer hora.
- É difícil menina louca. Sou um padre. Espero-te lá em casa.
            - Então tenho que demorar uns dias enquanto vendo a casa. Já tenho quem queira.
            - Vai pelo menos me visitar. Não precisas demorar muito. Podemos até ir agora.
            Peitica tinha suas cisma. Andar com padre virava mula sem cabeça. Olhou para o corpo, bamboleou-se e imaginou aquele corpo bonito e atrativo transformado numa mula. Deus que a livrasse.
            Levantou-se do confessionário e foi saindo. Espera-me que eu chego. Irei para ficar para sempre. E não vai demorar. Já estou sonhando com a nova vida.
            Saiu às pressas. Passou logo pela casa de dona Zumira fechou o negócio. Recebeu o dinheiro, arrumou a mala e pegou a primeira boléia de caminhão.
            Padre Antonio, impaciente amolava as pontas. Esqueceu o breviário. Virou incêndio. Inquieto, ia e vinha com o olho na porta da entrada. Dentro dele, gritavam tumultuadamente, todos os desejos. E a Peitica não aparecia. Não havia outro jeito. Tinha mesmo que procurá-la.
            Desabotoou a batina, entonou-se a paisano, penteou-se a rigor, perfumou-se e botou-se pra lá. Bateu palmas e apareceu-lhe dona Zumira.
            - O senhor por aqui, a estas horas? A quem procura?
            - A Peitica. Mandou me chamar para se confessar. Estava doente. Foi o recado que mandou.
            - Mais confessar assim sem batina, padre Antonio? Aproveite e me confesse também.
            - A Peitica já se foi? Disse-me que ira ser minha arrumadeira. Deve estar por lá a estas horas.
            Padre Antonio voltou correndo. A endiabrada bem que disse que não demoraria mais. Seria para sempre. Desencontrei-me. Não quis ir pelo dia para não ser vista. Espertinha a endiabrada. O certo é que está no papo.
            Mas, Peitica já andava longe.
E foi um desapontamento. Tomou um banho quente e quase estopara pensando na traição. E o pior é que tinha sido visto fora de hora sem batina, em casa suspeita.
            Enquanto isso, Peitica, com o seu nome verdadeiro instalava-se noutra cidade. Colocou o dinheiro no banco, empregou-se como balconista, e tempos depois se casou com um babaca, gente direita e que dispensava suas economias para manter a casa.
            Mandou ao padre Antonio um cartão participando-lhe o casório. Padre Antonio rasgou-o em pedacinhos, como se estivesse fazendo em pedaços sua primeira e frustrada aventura. O diabo é que havia assanhado a fera dos instintos e não teve outro jeito senão ir visitar dona Zumira. E foi outra decepção. Não posso sair, estou com visitas.
            - Apareça outro dia. E sempre que ia, chegava atrasado. - Tenho visita.
            Moleca da peste. Acendeu a coivara e danou-se no mundo.
            Quando menos esperava dona Zumira foi se confessar. Contou seus pecados, todos eles amorosos. Padre Antonio não se conteve.
            – A senhora recebe muitas visitas, não é?
            - Como sabe o senhor?
            - Ora, fui visitá-la vários dias e sempre está com visitas.
            - Estou sempre sobrando. E a Peitica? Quer mais de uma?
- Que Peitica que nada. A mulata me enganou. Foi embora daqui e já se casou.
Marque um horário pra seu vigário.
            - Deus me livre. Estaria perdida pro resto da vida. Quem iria perdoar tão horrível pecado.
            - Pecado coisa nenhuma, criatura. Um padre é um bicho como outro qualquer.
            - Então vá mais cedo. Antes das oito horas. Mas leve dinheiro. Minha profissão é muito penosa. É a pior de todas.
            - Mas eu sou o vigário. Podia ser só por amor.
            - Então, deixa como está. O que não custa dinheiro é sonho, continua sonhando com a mulata Peitica.
            - Quanto mais ou menos?
            - Como se trata de um caso especial, e, o senhor é rico, vinte mil cruzeiros por cada vez.
            - Estás louca. Vinte mil!
            - Então se vire como puder. Tenho muitos compromissos e a inflação leva tudo...
            - Faz um abatimentozinho, criatura.
            - Quem quer o que é bom, paga caro.
            - E se eu não gostar?
            - Paga mais!
            Viciou-se. E não teve outra saída. Aumentou os preços das missas, batizados e casamentos. Tinha que enfrentar o custo de vida e a inflação... Não adiantam reclamar!
            É isto mesmo, quem quer o que é bom, paga caro. É necessário manter o roçadinho limpo, o caminho do céu...
            - E sabe de uma coisa curta e certa? Traga-me dinheiro novo. Aquele dinheiro velho, de escola, dilacerado e sujo, mande pro bispo. E da próxima vez traga-me dois contos de reis emprestados, vou pagando com o serviço... Senão...
            - É isto mesmo. Só quem não prestava era a negra Peitica. Mas o pior de tudo foi minha burrice. De hoje em diante não me escapa nem as corujas do sótão.
            Mas nesse momento bateram à porta.
             Padre Antonio foi sondar quem era. Peitica nua e crua.
            - Cheguei padre Antônio! ... Demorei mas cheguei.
            - Entre e vai direta arrumar meu quarto...
           

            *O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

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