domingo, 6 de julho de 2014

Zé Piaca


ZÉ PIACA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

Zé Piaca nasceu e se criou na roça e no trabalho pesado. Mas também havia nascido sem sorte. Não perdia hora, exceto aos domingos reservados a igreja. Rezava, confessava-se e fazia promessas que pagava religiosamente. Dava espórtulas para igreja e, afinal, cumpria fielmente os mandamentos das leis de Deus.
Não rezava mais por que não havia aprendido. E com tudo isso, os seus caminhos eram sempre cruzados. As coisas que tentava ou fazia nunca dava certo. Vivendo no Sertão brabo, ora com chuvas de mais, ora sem chuva, não lograva acertar.
O milharal se perdia e quando lograva colher, o gorgulho devorava as colheitas. Era assim com os demais legumes. Se não fosse somente pela mulher, passaria fome. Até as cabrinhas que criavam, perdiam os cabritos ou o carcará arrancava-lhe os olhos se nasciam na caatinga. Um azar danado.
Resolveu, então, ir ao vigário fazer umas consultas, numa tentativa de salvação. Padre Damião o recebeu atenciosamente, mesmo porque já o sabia católico fervoroso. A mulher e ele.
Contou-lhe sua longa e mortificante história. Não perdia missa, confessavam-se sempre e levavam uma vida honesta. No entanto, não prosperavam. As lavouras se perdiam, os cabritos morriam e até o leite das cabras talhava.
Por mais amor que tinha a mulher e por maior que fosse a diligência dos dois, não nascia um filho que tanto queria.
Padre Damião ouvia tudo calado e atenciosamente. Era realmente um caso curioso. E como não tinha outra saída, valeu-se da falta de fé, - Sim a fé era pouca.
- Como que era pouca, se eram católicos de convicção e de herança. Fé tinha até demais. Não, não podia ser, Deveria ser mesmo azar e era isto que queriam que o padre tirasse. Fosse a sua propriedadezinha e rezasse nos quatro cantos para tirar os esconjuros.
O padre condoeu-se e foi. Aspergiu água benta, andou em cruz de canto a canto e rezou a reza mais forte que sabia.
- Está aí. Agora pode plantar ou semear sem susto. O capeta não botará mais os pés aqui dentro.
As terras estavam prontas esperando as chuvas de dezembro.
- Agora sim mulher, vamos ter boas safras de tudo. Vamos por as sementes ao sol, pra nascerem melhor e quando a chuva riscar, eu cavo e tu plantas, o padre garantiu.
- É, eu ouvi.
E quando a trovoada abalou os céus e a terra molhou, as sementes foram para o chão. A germinação foi soberba. Só faltou mesmo nascerem duas plantas de uma semente só. E a chuva não faltava. As lavouras cresciam como se fossem bem adubadas.
Rezaram uma novena em Ação de Graça. Estavam salvas e já não tinham a menor dúvida que a reza havia espantado o “pé de pato”. Maus olhos não podiam olhar suas roças. Era uma exuberância nunca vista.
Mas quando foi na segunda-feira, o diabo estava solto. Uma praga de lagarta devoravam o milho, feijão, e todas as plantações. Em cima disso, um verão prologado para dar mais força a lagarta. Uma semana depois só existiam praticamente, os talos.
Correram para o vigário. Encontraram-no de sono solto, já às três horas da tarde. Depois de uma longa espera, apareceu sem lavar o rosto e com sinais de preguiça nos olhos.
- Olá seu Zé Piaca. Como vai dona Salomé.
- Nós não vamos bem. Nem nós nem as lavouras. A lagarta, ou a “mundiça”, como chamamos, devorou tudo, tudo. A benzedura não serviu de nada. Parece que chamou a lagarta que veio desesperada. Só deixou os talos e estamos perdidos e mais ainda com este verãozão terrível.
- Não fale assim. Que a reza serviu, não tenha dúvida, poderia ter sido pior.
- Pior como, seu vigário?
- Ora como. Um terremoto que rachasse a terra derrubasse a casa e matasse os bichos e vocês dois. Além disso, não foi reza contra lagarta. Foi reza contra os poderes do capeta. E quanto a ele, aposto como não botará mais os pés em sua terra. Pelo menos dele estarão livres. Tenham mais fé.
- Não seu vigário, fé nós temos; mais me diga uma coisa. Fé enche barriga de pobre? Se encher, ensina-nos como prepará-la, pois a mulher, minha Salomé, só sabe cozinhar feijão, milho, batata doce e jerimum.
- Fé não se come, se tem.
- E pra que serve afinal?
- Para confortar as pessoas nos momentos difíceis. Dar-lhes confiança. Por exemplo, no seu caso agora. Resignar-se e esperar para o próximo ano. Plantar de novo e acreditar na boa sorte
- Ah! É disto. Serve para isto? Pois, olhe padre, se nós já tínhamos pouca fé, acabamos de perdê-la. Toda as vezes é esta mesma cantilena. Vamos mudar de crença. Procurar outra igreja. A dos crentes fazer uma tentativa.
Mudaram e deu na mesma farinha. O desespero continuou. Nem filho, nem feijão, nem batata que prestasse.
Perderam a primeira plantação e foram à casa do fazendeiro comprar novas sementes, aliás, pelos olhos da cara. Eram umas tais de sementes selecionadas.
- Podiam confiar!
Mas nem nasceram que prestasse. O azar continuava a persegui-los. Foi então, quando lhes apareceu um agrônomo a quem narraram sua velha e longa história.
- Bem, vamos tentar dar um jeitinho. Só não podemos é fazer chover. Mas se tem água de cacimba ou açude ainda se dá uma solução.
- Mas, seu moço, já perdemos a fé.
- Fé? Não sei não. Bastam que tenhas confiança e façam o que lhe vamos ensinar. Plantem sementes nascedouras e trate a lavoura. Lembre-se que na falta de chuva uma boa limpa, vale por uma chuva. Mexer com a terra da roça, isto ajuda um pouco.
E encontraram casualmente o padreca.
 Como vão meus filhos. A roça este ano produziu muito, as lagartas apareceram? A chuva foi boa com certeza e o lucro garantido como todos os outros tiveram! Está vendo que a fé nunca morre. É só esperar um pouco que Deus manda com fartura!
E desceu a ripa em cima do padre:
- É. O senhor está pensando que fazer roçado de milho e feijão é prometer pedaço de céu que o senhor nem sabe onde, nem se existe, e a troco de dinheiro dos carolas. Andar de mãozinha lisa, sem sinal de calos, comendo do bom e do melhor, sem dar um prego numa barra de sabão. Dormir como um justo, sem se preocupar com a chuva ou com o sol, com o mato das roças ou se lagartas devoram as lavouras. O senhor está muito enganado, e procure não enganar os bestas. Fomos na sua conversa de fé e o resultado foi perder até o jeito de andar. Quem dorme de barriga e bolsa cheias, pode muito bem confiar nessa sua santa fé. Salomé e eu sabemos muito bem do valor de suas pregações. Fomos em sua conversa fiada e perdemos as lavouras. Passamos um ano cruel. Quem nos salvou este ano foi a água da cacimba e, nem era benta e veneno nas lagartas. Conserve sua fé e deixe os outros em paz. Fé é para quem tem vida folgada, como essa do senhor. Mesa, cama, boas conversas, dinheiro entrando sem suar. Assim vale apena ter fé. Mas vá pegar no cabo da enxada, lutar contra as pragas!
- Mas é com sacrifício que se alcança os reinos dos céus, a vida eterna. Isto tudo aqui é passageiro.
- Não, seu vigário, nós não embarcamos em canoa furada. Não temos receio dessas suas ameaças com as penas do inferno, que não deixa também de ser conversa fiada. Deus não iria criar tais monstruosidades para castigar os seus filhos. Quem deve temê-las é quem não faz nada e vive de tripas forra. Aí sim. Mas nós, pobres sertanejos sofredores, passando fome e bebendo água ruim, nem nos bate o papo. Já perdemos o medo dessas coisas. O Dr. Ambrósio explicou certa feita que quem criou inferno ou purgatório fora os padres mesmos para fazerem medo ao povo e poder viver as custas deles. Deus não iria criar coisa ruim para castigar os seus filhos. Sabe de uma coisa seu reverendo. Estamos conversados. Seu roçado é um e o meu é outro. O seu produz de inverno a verão, com chuva ou sem chuva, só com água benta. Sem adubo e sem esforço e a semente e a fé de quem não perde o poder germinativo. O meu é regado com suor e água de chuva. A terra se esgota e a semente custa dinheiro e não nasce só com fé, e nem produz com reza. Até loguinho felizardo!
- É, mas não conte com o reino do céu. Lá não se entra com saco de feijão, nem de milho. Vá se preparando para o pior. Onde Deus não está o capeta chega. Peça então a ele para lhe ajudar.
- Não se preocupe não, meu velho. Não tenho medo de quem não existe. Vosmecê que o criaram que fiquem com ele. E tenha cuidado que não dê lagarta ao seu roçadinho ou formiga de roça corte as suas roças. Fumaça de incenso não mata formiga.
- Tenha fé, homem!
- No que faço tenho muita... Não é Salomé?
- É sim. E ele tem toda razão. O que é ruim, quem criou foi essa gente mesma que explora o povo ignorante ou medroso. Ele, o doutor falou também que os padres perdoaram os piores criminosos, abrindo o caminho do céu e estimulando o que continha novos crimes. Não foi mesmo Piaca?
- Está lembrada, Salomé, do Antônio Furiba, que matou a mãe e na hora da morte o vigário o perdoou. Como pode ser. Ao mesmo tempo quem tem um pecadinho à-toa e não se confessou por isso ou por aquilo, no mínimo pega uma temporada no purgatório.
- Antônio Furiba, um monstro, confessou-se e foi direto se apresentar a São Pedro, com carta branca para entrar no reino dos santos. Ouviu seu reverendo, seu roçado é numa terrinha pé de dinheiro, mas pode ir tirando a sela do cavalo, que com mais algum tempo vai andar de jegue, o seu cavalo esquipador vai perder a passada. A sola desse sapatinho preto, de verniz, vai se acabar. Essas mãozinhas finas e macias, vão engrossar. Olha as minhas: só tem calo seco. No começo criam calos d’água que dói pra danado. Reza tuas rezas, conserva lá tua fé, mas vai fazer alguma coisa útil, bicho. A lagarta vem aí. E água benta não mata formiga...

23.3.86 Campina Grande/PB

*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.








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