quarta-feira, 11 de junho de 2014

BENARA


BENARA*

 

João Henriques da Silva

(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

 

Benara transviou-se quando era ainda uma menina. Com quinze anos incompletos prostituiu-se por vontade própria, ou antes, pela força de seus próprios instintos. Queria ela mesma ser violentada, entregar-se como as novilhas do pasto, relacionasse desesperadamente e sem  compromissos com quem desejasse o seu corpo jovem. As paixões gritavam dentro dela como um animal faminto. Quando via alguém que lhe apetecia, tornava-se nervosa e tremula. Ninguém a sustentava. Afinal, perdeu-se, no dizer do povo. E numa de suas doidices amorosas engravidou e sem saber de quem.

No povoado onde morava, não havia mais ambiente para ela. Achava pequeno o seu mundo e os homens poucos, foi para uma cidade maior e oficializou-se rapariga. Caiu na pensão paraíso de D. Estefania, que a acolheu com certas reservas, pelos seus modos extrovertidos. D.Estefania já conhecia bem o estilo dessas pessoas imoderadas, e quase sempre ciumentas com as companheiras. Não notara, entretanto, sinais de sua gravidez.

- Olha Benara, aqui é uma pensão de mulheres, mas, mesmo assim há uma disciplina a seguir. Todas as meninas que convivem aqui são iguais, tem os mesmos direitos e as mesmas obrigações. Exigirmos respeito e decoro. É como se fosse uma casa de família. Não se admite rivalidades e nem ambições. Cada uma que apele para sua sorte e seus atrativos, mas muito discretamente. A escolha, aqui, é do visitante e não pode haver recusa. Dependemos exclusivamente de dinheiro que nos pagam. Caso não te sirva assim procura logo outra pensão.

Envelheci desgraçadamente nesta vida miserável, hoje ninguém me quer e tenho que viver dos amores dos outros. Quando era moça e desejada, esqueci-me de fazer economias para um dia libertar-me. Atraída pelos prazeres momentâneos e degradantes, esquecia-me de mim mesma e deu nisto, uma dona de pensão para poder ter o que comer. Aconselho a vocês que não se  iludam com os dias de mocidade e com os atrativos que as noites indormidas consomem sem a gente sentir.  

E o desespero de querer um homem que não nos quer e cai nos braços de outra à nossa vista. Há tanta miséria aqui dentro que nem se pode avaliar. Para quem está lá fora, somos umas mulheres que levam uma vida só de prazeres. Mulheres que desviam rapazes e maridos com o maior cinismo e a maior depravação. Olha Benara, não há lugar no mundo onde se sofra tanto. Quantas vezes temos que nos entregar a um salafrário qualquer, um sujo e abjeto, só para que não falte um pedaço de pão. E ainda há daqueles que não pagam os nossos encantos. É bom que te cuides enquanto é cedo e toma cuidado para não engravidares. Não se tem nem o direito de ser mãe. Uma rapariga grávida é uma pessoa condenada a todos os sofrimentos. Ninguém a quer, não tem pra onde ir e nem como criar o filho. Deus que te livre e a todas as outras.

Benara ficara pensativa. Não era possível que a D. Estefania estivesse adivinhado sua condição, para empurrar-lhe em cima aquelas advertências. Sim, poderia não ser, e não acreditava, com sua mocidade, que a coisa fosse tão negra. Em todo caso era bom preparar-se, juntar algum dinheiro e esperar pelo mau tempo anunciado.

Os primeiros dias de Benara foram de desapontamento. Por mais que se atirasse nas conquistas, não teve sorte. Os freqüentadores do bordel já tinham suas companheiras e olhavam para ela sem dar-lhe atenção. Se, pelo menos, fosse uma mulher bonita, teria melhores oportunidades. No entanto não era e nem sabia aparentar sua sensualidade. Aquela concorrência danada a afligia. O dinheiro que conseguia era uma coisa intermitente, com muitas noites falhas. Vestia-se e pintava-se igualzinha às companheiras, mas não sortia efeito. Sempre ficava para os últimos, quase sempre aqueles que tinham pouca sorte e nem sempre os mais atraentes. Faltava-lhe com certeza uma técnica especial de conquista. E o pior é que quem andava com ela não voltava a procurá-la facilmente. Havia qualquer coisa de menos nela. Queixou-se a D. Estefania e pediu-lhe conselhos.

- Há minha nega, isto é problema de cada uma. Os homens gostam de alguma particularidade das mulheres. Precisam usar certos artifícios, às vezes pequenas coisas, que a gente tem que adivinhar.

Um cheiro  qualquer esquisito, a maneira de atraí-los, um nadinha, podem desencantá-los. É, por vezes, necessário até que a mulher se faça de virgem, de envergonhada. A entrega comum cheia de lassidão desagrada. Há uns que gostam de luz acesa, outros, apagadas. Até essas bobagens influem no relacionamento. Tem-se que aparentar recato, ciúmes, pudor. O que é fácil demais tira todo o prazer. Procura tu mesma descobrires o que está te faltando, ou então abandona a vida livre. E lembra-te que tens muitas concorrentes espertas e treinadas. E como isto aqui é uma luta de vida e de morte, não contes com tuas amiguinhas...

Benara saiu desapontada. Aquilo era uma vida sem regulamentos, sem regras determinadas. Cada uma que se fizesse. Além de tudo, o filho estava lá dentro, crescendo e mais tarde revelaria o seu grave problema. Aí então ninguém iria querer ficar com ela. E a comida e o enxoval e as outras coisas necessárias na vida de uma mulher. Quem haveria de lhe dar.

Não fizera economias. O que lhe davam mal permitia a hospedaria  e a parte de D. Estefania, que, aliás, já havia lhe aberto os olhos para os casos de gravidez. Sentiu-se completamente perdida. Quem diabo havia lhe atiçado o fogo de moça para enfiar-se na prostituição. Havia sido empurrada por desejos incontroláveis. Perdera-se por culpa  do próprio destino. Aquela ânsia de relacionamento não era comum nas outras moças. E as coisas lhe estavam saído pelo avesso.

Supunha-se uma dominadora de homens e ninguém a queria. Bem que a mãe lhe advertira centenas de vezes. E não ouvira como se estivesse querendo trazê-la subjugada e infeliz. Agora estava percebendo o seu erro. E o pior é que suas ansiedades cresciam. Se pudesse devoraria de uma só vez todos os homens. Tinha um inferno dentro de si. E, apesar disso, dormia muitas noites sem ter contato pelo menos com um, o que aumentava seu desespero. Afinal de contas o filho começou a mostrar-se. Dona Estefania percebera e chamou-a a parte.

- E agora, minha tonta, o que será de ti e desse menino que vem por aí! Não tenho como te sustentar. Sempre me deste pouco rendimento. Não vieste ao mundo para esta vida. Deves ser uma dessas insossas, de fogo apagado. E agora, com esse buchão, adeus  lucro. O que pensas fazer, então?

- Nada! Não sair daqui e esperar que me ajudem.

- Como? Achas que vou transformar minha pensão de mulheres numa maternidade. Não dá minha filha. Procura tua família, conta-lhe o teu estado, as tuas desventuras e te aguenta por lá.

- Ora, D. Estefania, mamãe não quer nem me ver. E a mataria de desgosto e vergonha. É uma mulher tão direita e tão boa que nem quero pensar em voltar. Cometi o maior erro deste mundo, mesmo sem saber o que fazia. E como desejaria poder voltar, não ao meu passado, mas ao meu lar para juntinho de minha mãe que tanto me pedia e me aconselhava. Era este corpo miserável que me fazia  endoidar e desobedecer. Agora está aí, quase ninguém o quer nem eu mesma tenho mais aquele fogo maldito que me queimava. E o que mais me preocupa é ter um filho que jamais saberá quem é o pai. Um filho das ervas, como se costuma dizer.

- Creio que não haverá outra saída para o teu caso, se não procurar tua família onde quer que esteja ou pelo menos escrever à tua mãe que talvez te perdoe. Uma mãe sempre perdoa. E então mudarás de vida, mesmo porque não tens atrativos para esta profissão. Tenho pena de ti. Vai, escreve, dá o teu endereço e espera resposta. Terás uma grande alegria ou uma grande desilusão.

- É desta que tenho medo.

- Tua mãe é tão pobre que não possa te ajudar? Mesmo que não te queira, poderá te mandar amparo nesta emergência.

- É, irei tentar.

E semana depois, chegou à resposta de D. Alvina.

“ Sim, foi um alivio saber que ainda estás viva e que lembrastes tua casa. Não me dissestes de que estás vivendo. No entanto presumo entender. E si é como penso, só contarás comigo, retornando a tua casa e mudando tua vivência. São estes os meus conselhos. Terás o teu filho em nossa companhia. Sempre me afligiu o pensamento de tua vida irregular e pouco ou nada honesta. Espero-te a qualquer momento e com uma condição. Nunca me falarás do teu passado. Prefiro não saber de tuas alegrias ou de teus dissabores. Jamais me esqueci de ti, mas infelizmente nunca nos deste uma notícia. Certamente as alegrias e os prazeres se foram e caístes na dura realidade da vida. Neste mundo tudo é passageiro. Os impulsos da mocidade conduzem quase sempre a grandes desenganos. Minha experiência de vida poderia ter te ajudado de teus impulsos. Espero que entendas que poderei ainda ser tua tábua de salvação. Venhas, pois, disposta a salvar-te. Sem essa condição talvez seja melhor permaneceres onde estás.”

Benara correu para casa. Por precaução deixou todos os objetos de sua vida de mulher livre, inclusive as roupas atrativas. Teria que simular que era uma serviçal doméstica e que o filho  era fruto de seus próprios erros iniciais.

Entrou em casa assustada e chorando como uma criança que havia andado perdida. Não esperava que a mãe recebesse com tanto carinho.

- Mãe, minha mãe, perdoe-me por haver sido tão má e ingrata. Deixei-a só, sem pensar em ninguém. Nem em mim, nem na senhora. Era uma louca varrida. Mas a própria vida ensinou-me a viver. Faça de mim o que desejar. Já devo ter pago todos os meus pecados. Andei por onde não deveria andar. Sofri o que não deveria sofrer.

Mas tudo isto me deixou uma boa lição. Aprendi a viver dentro da realidade. Isto acontece quando não se confia na experiência daqueles que já percorreram longos caminhos da vida. Os arroubos da juventude são maus conselheiros.

Via tudo tão fácil e tão cor de rosa que dei um mergulho no mar de minhas fantasias. Do outro lado encontrei-me com o inesperado, um mundo diferente e cruel. E como estava desprevenida e despreparada para enfrentá-lo, afoguei-me nas desilusões. O que me resta é este filho que vai nascer e que infelizmente, não tem pai certo. E há de perguntar-me um dia quem é. E terei que mentir para esconder os meus erros.

- Bem, o importante é que chegastes de volta, com ou sem filho e reconheces que tens e sempre tivestes uma mãe.

Com menos de dois meses depois nasceu Tecílda. Uma menina perfeita, de olhos esverdeados e um rosto bonito.

- Deus queira mãe que não herde minha teimosia e burrice. Terei que lhe dar bons exemplos.

Foram-se os anos e Tecílda já era uma mocinha. Um perigo de mulher. Inquieta. Quem a via uma vez, não a esquecia facilmente. Benara vivia assustada. Ela tinha sido assim. E se fosse como ela iria passar pelas mesmas angustias. No entanto e felizmente estava enganada com Tecílda. Era voluntariosa, mas tinha a cabeça dominando o corpo.          O que ela queria era se casar, ter o seu lar e dois ou três filhos. Mas não seria casar com qualquer mequetrefe para viver às suas custas e fazer dela uma criada. Cercada como vivia, pela sua beleza física e desembaraço no relacionamento amistoso, tinha espírito de decisão para não se deixar envolver como uma mocinha inexperiente e tola. Ou aparecia o que ela queria, ou continuaria à espera, sem pressa, sem agonias íntimas. Despachava-os com a maior tranqüilidade. Poderia ser até o seu tipo desejado fisicamente, mas faltava o mais importante que era a conduta moral e a capacidade para manter uma família com paz e o conforto relativo com que ela sonhava. Não havia pressa em se tornar mulher. Conhecia através de amigos, a historia da mãe, com as suas doidices e os seus sofrimentos. Poderia cometer um erro, mas se acontecesse saberia livrar-se dele. O casamento duraria apenas até quando lhe conviesse. Não que se tornasse exigente e impertinente, mas não toleraria um homem que não fosse honesto e compreensivo.

Voltaria à sua casa da mesma forma que saíra. De escolha em escolha, decidiu-se pelo Amâncio que lhe fazia o cerco como se fosse ela única mulher de toda sua vida. Antes do casamento colocou os pontos nos ís. Não adiantaria ter ilusões. Queria um bom companheiro e um lar com filhos, mas, sem arrepios ou discordância. Não tolerava ciúmes e não daria motivos. Que não confundisse relacionamento social com traição.

- Mas Tecílda, ciúme é sinal de amor.

- Não! No meu entender é sinal de desconfiança. Uma doença dos fracos. Se não tens certeza de minha sinceridade, procura outra que não te cause ciúme. Não adiantará um casamento passageiro. Depois de me tornar mulher, serei outra inteiramente outra.

- E já será difícil conseguir o companheiro que desejo.

- Não, Tecílda, não é bem isto que estás a pensar. Queria apenas te dizer que te amo demais e que o destino me livre de te  perder.

- Olha, não acredito em conversa de namorado ou de noivo. Todos eles são quase uns santos. E quando se casam e tomam conta da mulher, começam as exigências, as desconfianças, as proibições, o autoritarismo, o que jamais aceitaria. E o pior de tudo são as mentiras. Nunca dizem onde andam e sempre têm um trabalho especial ou urgente lá fora. Um amigo que chegou ou vai chegar, um negócio importante a resolver. E a mulherzinha fica em casa a esperar com o maior cuidado, desejando boa sorte.

Mas comigo essas conversas fiadas não calham. Portanto, pondera bem no que pretendes fazer. Não é que deseje prender-te em casa, mas é um aviso de que não conseguirá me enganar. Não serei escrava de ninguém. A roupa será lavada de acordo com o sabão. Entendes onde quero chegar? Espero que sim!

- Olhe Tecílda, também não esperes que seja um marido subjugado, controlado como os botões de minhas calças ou os colchetes de tuas saias. Sempre fui um sujeito honesto e tenho confiança em ti. Achas por ventura que quem se casa com uma mulher igual a ti, ainda precisa fazer escamoteações. Onde iria encontrar alguém que me fizesse te esquecer por um minuto. Do contrário, terminemos aqui.

Nem quero mandar em ti e nem quero ser manobrado. Tem que ser de igual para igual. Falas dos homens e te esqueces que existem muitas mulheres simuladoras e manhosas; estou falando em tese, é lógico, pois se não confiasse em ti, andaria longe em minhas pretensões. Parece que somos iguais. No entanto, Tecílda, já imaginas-te um casal, sem uma briguinha uma vez por outra. Não achas que fica muito insosso, não? Amanhecer e anoitecer na mesma doçura. O bom mesmo é uma briguinha e depois fazer as pazes, num reencontro. O amor exige essas coisas, senão perde a graça. Sem turras é a mesma coisa que comer goiabada a vida toda. Pode enjoar. Pensa, pensa bem...

- Pelo que noto já tens experiência disso. Abre teus olhos!

- Não te enganes. A própria comida requer temperos diferentes. O mesmo tempero enjoa. E é por isto que a comida da casa dos outros é sempre mais saborosa, mais gostosa. A gente deve mudar até de lugar na mesa, criatura.

Sei que irei te adorar, vendo-te zangada comigo, com a carinha amuada e com vontade de fazer as pazes, olhando-me às escondidas, arranjando um pretexto qualquer para que te faça um carinho.

- Já começas com as tuas sem-vergonhices. A gente pode experimentar, mas se não der certo, não se repete.

- Farei como  quiseres, mas aposto como irás adorar. Ficar correndo atrás um do outro e terminar naquele lugar...

Afinal, casaram-se. Tecílda não dava tréguas ao marido que, por isto mesmo, já tardava em voltar para casa. Não havia outro meio para um descanso, se não, dar uma brigada. No entanto, Tecílda não lhe dava um motivo. Quando mais Amâncio a desafiava, mais carinho recebia. Ficava feio confessar suas fraquezas. Inventou uma viagem, mas Tecílda à última hora resolveu acompanha-lo.

- Mas mulher, será uma viagem desconfortável, demorada. Deixar o conforto de casa para andar por aí, comendo mal, fora de hora, dormir em camas duras. Vê bem, onde queres te enfiar.

- Ora, não me dissestes que o bom é variar. Pois é o que quero.

- Então, não irei. Não quero te sacrificar. Entendes?

- Entendo não. Não poderei passar uma noite sequer, sozinha. Perco o sono, fico inquieta, só pensando, pensando. E quando me atraso fico pior...

- Esta bem. Farás como quiseres.

- Irei não. Era só para ver tua reação. Iniciar um comecinho de briga! Mas, antes de saíres, vamos à máquina de costura para acabar a briga...

- Vai costurar sozinha. A agulha quebrou-se.

- Já esperava por isto. Demores o quanto quiseres, mas só me voltes com um papel de agulhas novas. E de agulhas “Singer” legítimas. Agulhas de carregação destemperam logo.

- E se não encontrar?

- Não costuro mais. Interromper costura por causa de agulha falsificada, de material fraco e mole, não dá...

 

Em 21.10.1986.

*O conto pertence ao livro “ Vidas Nordestinas”, no prelo.

 

 

 

 

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