quarta-feira, 4 de junho de 2014

A REZADEIRA



 

A REZADEIRA*

 

João Henriques da Silva

(In Memoriam 20/09/1901 – 16/4/2003)

 

 

Quando terminava a cidade, lá um pouco mais adiante, cercada de mangueiras, cajueiros e pitombeiras, estava à casa de taipa da preta Rosalina. Rezadeira afamada sempre metida em suas saias compridas ornadas de babados e casaco meio arriado para mostrar os rosários coloridos que volteavam o pescoço e lhe davam ares de santidade. Por trás da casinha e sempre bem cuidada, a horta de plantas misteriosas, plantas medicinais: Arruda, alecrim, manjericão, alfazema, jurema de feiticeiro, louro cheiroso, semente de embira e quanta coisa havia de plantas cheirosas.

            Rosalina não fazia outra coisa senão atender os doentes e nem sobrava tempo para mais nada. Não cobrava de ninguém. Dava o que queriam em dinheiro, ovos, galinhas, frutas e quantas coisas mais. Rosalina guardava as sobras em moedas de prata que ia adquirindo com o que lhe davam. As rezas seguiam-se os banhos cheirosos, os defumadores aromáticos que afugentavam os espíritos maus e fechavam o corpo contra qualquer espécie de doenças e maldades.

            Em corpo fechado não entra bala. Além do mais uma reza especial tornava a pessoa invisível, numa surpresa ou apertura qualquer que o sujeito se encontra. A velha Rosalina bancava também Santo Antônio, arranjando casamento ou desencalhando moça velha.

            Possuía plantas milagrosas que impediam os maridos ou as mulheres de se bandearem.

- Leve, planta um pezinho de resedá do roxo, na entrada da casa e vais ver como tudo anda certinho. O cabra perde a influência e fica em casa feito um gato capado. E as mulheres se acalmam. Contra mau olhado ou azar, um pé de pinhão roxo na frente da casa. Em casa não entra desgraça. Mas não se tira galho do bichinho. Deixa crescer a vontade.

Uma das especialidades era rezar em espinhela caída e moleira baixa.

            Essas doenças de crianças curavam com uma ou duas rezadas. O tratamento de doido ou aluado, este sim, exige mais tempo. Além de reza forte, exigia uma série de banhos com entrecasca de mulungu. Quando a coisa já estava muito adiantada, se não curava totalmente, acalmava e passava a violência. Mas, havia uma coisa que Rosalina não fazia por preço nenhum: aborto. - Não senhora, - Deus proíbe essas coisas. - Quem mandou você se meter com homem. O bichinho que vai nascer não tem culpa do que você fez. No entanto, uma coisa posso fazer: derrubar o bicho que fez isto contigo. Dou-lhe uns chás que ele nunca se levanta e vai ficar somente nesse.

            - Mas dona Rosalina, o meu problema é grave.

- Sim, sei que é problema de gravidez, mas vai procurar outra ou o doutor. Rosalina, não. Se fizer uma coisa dessas, perco as forças para as curas. E o que é que tem demais, dar a luz a um filhinho. Somente porque não te casastes. Bobagem. Eu tive os meus e nunca fui ao padre, nem juiz. Nasceram direitinho, estão crescidos, casados e vivem muito bem. Água benta e conversa fiada de doutor não vale nada para essas coisas. Então, só porque seu vigário ou o doutor juiz manda vocês se juntarem, acabou-se o pecado. Bobagem, menina. Tanto faz, como tanto fez. É só formalidade. Deixa a barriguinha crescer, ou então corre logo pros pés do padre.

            - Mas não é isso dona Rosalina. É que vou ficar morta de vergonha.

            - Põem a vergonha de lado. Quantas outras já tiveram filhos sem se casarem, hein?

            - Ora, não é por isto, minha tia. É outra coisa pior. É que eu fui enganada por um preto quase retinto. E o menino, com certeza vai sair negro. Já pensou a vergonha. Eu branca, de família toda branca, com um menino de cor e sem pai. É um caso diferente. Ajude-me.

            - E o que é que tem nascer um pretinho, de cabelo de carapinha. Negro também é gente. Olha os meus são pretinhos e estão ali, sem fazer vergonha a ninguém.

            - Lá em casa é diferente. Mamãe nem toma sol para não queimar a pele. Imagine quando me vir com um negrinho botando a cara de fora. Deus me acuda, ela vai me matar. Sei que a senhora vai dar um jeito. Tem menos de um mês. É só aquela coisinha começando.

            - Bem, vou te dar uns chás. Mas tomas em casa e não digas nada. É a mesma coisa que puxar a tampa de uma garrafa, com um saca-rolha novo. E não tem perigo. Para curar o resto, toma este outro chá. E não tomes forte demais. Uma folhinha só. Mas não me venhas mais aqui com essas coisas. E não diga patavina, senão vou contar tudo a tua mãe.

             Estou quebrando minhas promessas, mas tenho pena de ti. Agora te enroles com outro negro...

            - Deus me livre. Sabe de uma coisa. Depois do que aconteceu, vou morrer solteira.      - Então leva estas folhinhas e manda-o tomar três chás fortes. Não gosto de negro enxerido... Nunca mais vai se meter a cavalo do cão.

             Moleque filho de branco, não tem um que dê pra nada. Eu mesma nunca fiz negócio com branco... A mistura é uma lástima. E depois o bicho nem sai branco nem preto, sempre um ruzagá de cabelo encolhido e amarelado. Uma coisa esquisita... Negro só presta puro. E olhe lá! Vá e crie vergonha. Não se junte mais com negro para não fazer quebrar a jura. De outra vez o moleque botará a cara de fora.

             Rosalina usava uma franqueza um tanto crua. Guardava, entretanto, segredo absoluto. Um dia levaram um adoidado para o tratamento. Bicho moço, corado, com mania de mulheres. Quando a lua apertava ninguém de saia podia passar por perto dele.

- Deixe-o que vou tirar-lhe o fogo. Basta trazê-lo aqui duas vezes por semana. Preparou uma garrafada com mistura de muitas ervas e deu-lhe um banho concentrado de entrecasca de mulungu. Banho demorado. Uma garrafada para tomar três vezes ao dia. Nunca mais irá se assanhar. Nem pensar mais em mulheres.

            E de fato, três semanas depois, o bicho esfriou e passou a ter nojo de mulheres.

            - Bem que eu disse. Um santo remédio. Inutiliza qualquer um. Quem tiver marido vadio, pode mandá-lo aqui. Tiro-lhe as forças sem o cabra suspeitar. Invento alguma doença e tranco-lhe uma garrafa de deixá-lo bambo. E o melhor é que o bicho fica com vergonha e não diz nada a ninguém. Fica um sujeito caseiro dá até para lavar pratos e ajudar no fogão.

Dona Querência tinha um marido sem vergonha, desses cachorrões que nem respeita a esposa. Dona Querência contou tudo à dona Rosalina.

            - Como é o bicho, tem alguma doença?

            - Nada, é um demônio. Sadio, corado como um touro das caatingas.

- Então leva este remedinho e põe na comida, uma vez por dia. Não tem gosto e nem tem cheiro enjoado. O bicho, depois de uma semana, vai começar a sentir-se impaciente, nervoso. Aconselha-o, então a procurar-me. O resto deixa por minha conta. Acalmo-lhe os nervos e depois o resto. Vai até querer fazer renda ou crochê. Acabo com a fúria do malandro.

            Dito o feito. E não demorou. Sair de casa, pra que... Desapareceu das pensões e das esquinas.

            - O Dandão deve estar muito doente. Nunca mais botou o nariz de fora.

E os amigos de farra foi se ter com ele, saber o que estava acontecendo.

-Nada, meninos! Enjoei-me e cansei-me daquela vida. Quando se quer é assim.

            - Mas rapaz um visitinha por semana, ao menos.

            - Nada disso. Não quebro meu juramento. Força de vontade é isso.

            - Oi! Dona Querência. Como vai o cornão?

            - Macio e calmo como seda. Já está até me enjoando, só dentro de casa, a fumar e metido no arranjo de casa.

- Quer que eu lhe dê um pouco de vigor? Tenho ervas para isto.

            - Deixa como está. Já está esquecido do mundo. É da loja para casa e da casa para a loja e a igreja. Vai bem, obrigado.

            De outra feita deu-se o contrário. Mestre Cantídio, andava de cabeça baixa com os passeios da patroa. Sempre tinha compras a fazer, visita, dentista, médica e ganhava a rua para as viradas. Cantídio morria de paixão pela mulher e suportava tudo para não perdê-la. Mas um dia lembrou-se da rezadeira. Poderia dar um jeito.

- Ora, é muito simples, curo isso com uma reza forte. Nem preciso vê-la. Muito bem.

- Reze dobrado porque a mulherzinha é endiabrada. Não pode ver homem que fica logo assanhada. Deve ser uma doença.

            - Doença coisa nenhuma. É safadeza e falta de homem em casa.

            - Ah! Essa não. Homem tem, mas a bichinha tem azougue. Vê aquilo miudinha com cara de anjo, pois é, vive no pega-pega, não para em casa e todo mundo falando dela.

            - Não se preocupe homem. Vai ver como se apaga um fogo. Volte e aguarde tranquilo.

            Dias depois, mestre Cantídio reapareceu. Cara de desapontado e desiludido. Dona Rosalina. Deu tudo errado. A senhora trocou a reza. Inverteu tudo. A Miudinha está é cada vez mais espritada. Não para mais em casa. Devora tudo. Encurtou as saias em baixo e me cima. Cada vez mais sassaricando. Sai na minha cara e não dá bolas.

            - Aonde vai?

            - Vou ali. Quer saber o que é? E já esta com o pé na rua. Antes ainda procurava disfarçar um pouco. Mas hoje... E agora dona Rosalina.

            - Fiz o que sabia. Gente miudinha assim é sempre teimosa. Faz que não vês ou te mudes. É o remédio.

- Já falei em sair. Sabes o que me respondeu?

- Era só o que faltava. Casei-me contigo para que? Para ter um marido atencioso e cordato. Nem te mexas. Quem vai me dar casa, comida, vestidos, sapatos e bons perfumes; preciso me apresentar elegante e cheirosa. Sou uma mulher exigente. Uma vez que não me dás tudo que esperava de ti, terás que cuidar de uma parte, que cuidarei da outra. Quando saio volto para a casa inteirinha como saí. Apenas me divirto um pouco. Só isso.

- Tem jeito. Diz isto de cara lisa, como uma santa.

            - Olha! Não te aflija, tua mulher tem razão. Aquilo que não encontra em casa, vai procurar fora. E deve ter nojo desse teu amolegado. Mulher gosta e respeita homem decidido, que manobra ela, e seja obedecido no duro. Não gosta de paspalhão. Traça o teu riscado e põe a miudinha no cerco.

            - Isto mesmo. Não havia pensado nisto para não desagradá-la. Mas agora vai ver com quantos toros se faz uma jangada. Não preciso mais de reza nem xaropada. Começo logo que chegar a casa.

 E entrou de porta adentro pisando duro.

            - Vai ver Miudinha. Desaforo!...

            A casa estava vazia, o guarda-roupa e as gavetas da cômoda abertas. Coisa esquisita. Foi algum ladrão na certa. Chamou à Miudinha e nem o eco de sua voz. Estava em cima da mesa um bilhete:

 Não te preocupe Cantídio, vou passar uma temporada fora. Caso não me der bem, voltarei. Não fui só, estou bem acompanhada e bem guardada. Saí com o teu grande amigo, Prudêncio, em que podes confiar totalmente. Não é verdade? Amigo é para essas ocasiões mesmo. Portanto fiques tranquilo que estou em boas mãos. Não ponhas ninguém em meu lugar. Poderei voltar. Um abraço e um beijo de tua miudinha. Levo saudades. Sempre foste muito compreensivo. É difícil encontrar um marido igual a ti. Reparas que deixei duas lágrimas no papel. Guarda este bilhetinho como lembrança. Teu amigo Prudêncio manda-te forte abraço e diz que não precisas te preocupar. Cuidará bem de tua miudinha. Caso precise de algum dinheiro, mandarei meu endereço. Portanto, é bom que vás juntando para qualquer emergência. Sabes muito bem que se gasta muito numa viagem assim. Prudêncio confia em ti. Sem outro assunto urgente, aguarde nossas notícias. Caso algum outro amigo teu e meu, venha a me procurar ou perguntar por mim, dize-lhe que saí em gozo de férias. Os verei depois e transmita-lhes minhas saudades. Foram muito bonzinhos comigo. Pede-lhes desculpas por não haver me despedido.

            Cantídio ia rasgar o bilhete, com as veias do pescoço inchadas. Pegou-a com as duas mãos e ia começar o trabalho, mas refletiu. A coitadinha pediu para guardá-lo. E deixou nele duas lagrimas. Saiu morta de saudades. Coitada da Miudinha. E é capaz de já estar precisando de dinheiro. O Prudêncio sempre foi meio liso. Se houvessem me falado teria feito um adiantamento. Bem que poderia ter saído com Cavalcanti, cheio das granas. Essas mulheres nunca pensam direito nas coisas. E agora que fique eu com essa preocupação de que poderão passar dificuldades. Como é que se viaja assim... É o diabo. Já sofro de insônias e agora com essa preocupação, como é que vai ser.

            No dia seguinte foi logo ao banco, ver o saldo de sua conta corrente, com medida de prevenção. Encontrou-o quase a zero. E foi então que se lembrou de que havia dado o talão com um cheque assinado. A Miudinha havia levado tudo. Ainda bem. Assim fico menos preocupado. Mas onde andarão a estas horas. A Miudinha sempre teve medo de dormir sozinha e é capaz daquele idiota nem saber disso. E agora, sim. Ficar com mais esta dúvida. Eita mundo velho cheio de complicação.

E neste vai e vem das ideias, Cantídio lembrou-se de dona Rosalina, de suas recomendações.

            Sou idiota lavado. Pois não é que havia me esquecido de tudo. Incrível, esta falta de memória. A sem vergonha, foge com um cabra safado, deixa um bilhete cínico, furta-me o saldo do banco, bota chifre dia e noite e ainda me fico com essa maldita pieguice. Deus queira que apodreçam os dois, roídos de sífilis, sequem de fome e não tenha quem faça o enterro. Tem vergonha na cara Cantídio. Vai procurá-los e mate todos dois. Não, isto não, matar é um ato selvagem. E depois quero bem a Miudinha e o Prudêncio sempre foi o melhor amigo. Espantou as ideias com a mão, como quem espanta mosquito e foi á janela respirar aliviado. Numa mulher não se bate nem com uma flor. E depois a Miudinha é tão bonitinha. Vou fazer tudo que me pediu. Quem é que pode deixar de fazer alguma coisa pelas mulheres. E especialmente para Miudinha que usa tanta sinceridade. Se fosse outra ocultava tudo. Ela não. Não me esconde nada. Além disso, zela minhas amizades. Se fosse outra jamais faria tal sacrifício de sair por ai acompanhando um amigo precioso como é o Prudêncio, solteirão, sem sorte com as mulheres. Vou mandar ampliar o retrato da Miudinha para tê-lo no salão das visitas, como uma homenagem a tanta dedicação.

            Dois meses depois, chegava um aviso: meu bem estamos quase sem dinheiro, vai o endereço de sua saudosa Miudinha. E era justamente isto que Cantídio queria saber. Colocou o dinheiro no banco, ordem de pagamento urgente e tomou o primeiro transporte.

Saltou em Nova Pedreira, esperou a noite para se esconder da luz e pegou os dois em plena exultação, isto é, avistou de longe, tomou posição e desfechou-lhes quatro tiros de 38, munição novinha. Esperou para ver se estavam prontos, certificou-se retornou tranquilamente a casa. Havia cumprido o seu sagrado dever.

A notícia chegou e Cantídio a recebeu em prantos. Mandou rezar missa de sétimo dia. Cobriu-se de luto e sempre enxugava as lágrimas quando alguém lhe falava no acontecimento trágico. Certamente fora alguém rival do Prudêncio.

 Dias depois chega de volta o aviso de crédito. A destinatária havia morrido.

Estava confirmada, sua inocência. Quando lhe falavam em novo casamento, benzia-se.             

- Deus me livre. Onde iria encontrar outra Miudinha, tão fiel que me fora. - O revolver, o Cantídio deu um banho de água benta, lubrificou-o e guardou carinhosamente, fica ai até que apareça outra Miudinha. Demorei preparando as coisas, mas funcionou direitinho. Desculpe minha querida. Deus te reserve uma nesguinha no céu. Dona Rosalina não conseguiu apagar-te o fogo com suas rezas, e quando reza não cura, 38 faz milagre. Descansa em paz ao lado do teu Prudêncio. Assim viverão sempre juntinhos aquecendo um ao outro. Bonzinho, não é minha queridinha...

 E mandou colocar no tumulo da Miudinha: Morreu por amar demais. “Saudades – Cantídio”.

 

 Setembro: 1985

 

*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

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