quinta-feira, 5 de junho de 2014

ALZIRA


Alzira*

João Henriques da Silva

(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

 

 

Alzira envelhecera antes do tempo. Ainda uma quase moça, cheia de ilusões e precocidade sexual, abandonou a família para se entregar a vida de mulher livre.

         Moreninha, de olhos verdes, corpo apetitoso, jurava, talvez, que sua juventude seria eterna. Que os seus encantos não a abandonariam enquanto vivesse ou, pelo menos, esquecia-se de que o tempo é a ferrugem que desgasta o corpo e a alma das criaturas; muitas vezes, muito mais cedo do que se espera. E com Alzira foi assim. As noitadas e as doações intempestivas começaram a dissolvê-la, a destruir suas formas e sua beleza, antes que saciasse completamente os seus desejos aflorados tão precocemente.

Alzira supunha que o abandono em que ia ficando era coisa passageira, uma fase em sua vida de mulher livre. Outras meninas iam chegando, morenas e louras, algumas novinhas em folha, como se poderia dizer, pois haviam perdido apenas o papel da embalagem. E Alzira tentava reagir, ora se insinuando, procurando tomar o caminho das concorrentes, ora exibindo os restos de sua passada exuberância. E apesar de todos os artifícios, sua clientela diminuía, tornava-se escassa e o que aparecia era o refugo dos frequentadores da pensão. Passou, então a desiludir-se e desesperar-se. Era ainda uma mulher relativamente moça e já faziam aquilo com ela. Não compreendia como o mundo era tão perverso. Foi ao espelho barato da parede de seu quarto, olhar-se atentamente, na esperança de reencontrar-se. No entanto lá estava uma Alzira arruinada, destroçada, envelhecida antes do tempo, um desencanto de mulher. Voltou à imaginação para o que fora, tão novinha, espocando de desejos, atrativa, requentada, e afinal, na realidade estava um caco daquele, de olheiras avassaladoras, as rugas sulcando-lhe o rosto, sem despertar mais apetite. Os olhos encheram-se d’água quente e salobra que lhe descia pelas faces como um caldo quente a lhe queimar as últimas esperanças. O que lhes sobrara de suas decepções eram apenas as economias que havia feito e que, sem homens, durariam pouco.

            Fechara os olhos para ver melhor o seu destino. Estava arrasada. Não podia entender como diluíra tão rapidamente em tão pouco tempo. Foram certamente à bebida e o esforço de fingir um amor que não existia. Pois, raramente encontrava um parceiro por quem sentia algum prazer. No mais era relacionar-se pensando apenas nos poucos mil reis que iria receber no final daquela força miserável. Ter que beijar sujeitos mal cheirosos, repugnantes, para valorizar-se como mulher. Fora isto, certamente, que a consumira. E então, resolveu passar um mês em férias, tentando uma recuperação. Talvez readquirisse as apetitosas formas do corpo e as feições se tornassem agradáveis e atraentes.

            Mas nada disso deu o resultado sonhado. Só o fato de saber que a dona da pensão não tinha piedade de ninguém, e andava sempre à cata de moças mais novas, semivirgens para tornar o seu bordel mais convidativo e ter maiores lucros, deixava-a apavorada. As moças mais velhas, embora fossem mais artificiosas, falhavam na aparência e não eram frequentadas. E danava-se com os homens mais idosos que só queriam as meninas novinhas, em folha. Sabia que eles tinham razão, mas era desumano. E lembrava-se de seus primeiros tempos, que também dava preferência aos homens feitos e endinheirados, pagavam bem e sempre voltavam. A rapaziada pagava abaixo da tabela e não oferecia qualquer segurança e raramente uma dose de uísque. Andavam com ela, a frio.

Alzira teve que voltar á atividade e resolveu mudar de pensão. Talvez tivesse melhor sorte e pelo menos os companheiros não saberiam que estava sendo rejeitada. E, além disso, era uma “pensão” que mudava menos as suas mulheres.

Algumas noites, na verdade, foi novidade para a nova clientela, mas depois foi ficando só, e chamada uma ou outra vez. Percebeu que estava mesmo no final de carreira. E veio-lhe, então, o amargo arrependimento de ter caído na vida, e mais ainda de haver recusado uma amigação quando ainda era a preferida pelos seus encantos de menina quase virgem. Mas Deus que a livrasse de pertencer a um só homem e logo já de certa idade. Como era que podia ser tão infeliz em tão pouco tempo de profissão. Se houvesse se amigado, pelo que agora percebia, nem haveria decaído tanto e não estaria arruinada.

            Seu pretendente, o Santiago, apaixonara-se pelo seu corpo e pelo seu andar de mulher fogosa, mas não houve meio de convencê-la. Chegava a achar uma proposta ridícula e aconselhava-o a levar uma daquelas coroas, de fim de linha. Mas, ela não, que nem chegava para quem a queria. E só a vaidade de ser uma das mais requisitada, parecia-lhe uma grande coisa, uma grande vitória. Pois não era, mal voltava de um, já estava na cama com outro. Quase não tinha tempo de se enxugar, como ela dizia e se vangloriava. E o que era pior, agora, é que o tempo de férias consumira quase todas suas economias. E por que diabo, não lhe aparecia outro Santiago, ou seja, outro qualquer que a levasse a viver outra espécie de vida. Empregava todos os seus artifícios de mulher tarimbada, mas o tempo estava encarregado de matar suas últimas ilusões. Sentia-se perdida. Mal ganhava para pagar com atraso a pensão. Os vestidos eram os mesmos, passara a usar adereços vagabundos e os artigos de maquiagem os mais baratos e até tinha de valer-se das companheiras para colorir o rosto e a vermelhar a boca descorada. De grau em grau ia se tornando o sobejo das pensões. E de queda em queda, já frequentava as pensões mais sórdidas do mundo dos cafajestes, onde só se bebia cachaça e as camas eram de colchão de capim e dos mais ordinários. Pensara em suicídio, mas não tinha coragem. Tentava um emprego doméstico, mas ninguém queria uma mulher livre e suspeita em sua casa. Conhecia companheiras de sua idade que ainda estavam em plena forma, enquanto ela liquidara-se daquele jeito. Bebera demais e fingira demais para ser a preferida. Consumira-se assim. Agora só lhe restava mudar de ambiente, socar-se onde ninguém a conhecesse montar uma “casa de mulheres” e tentar sobreviver. Mas não tinha jeito e nem meios para isto. Desesperada foi procurar o Santiago, em casa de quem estivera antes e de quem recusara uma amigação permanente.

            - Ah! És tu Alzira, neste estado. Foi doença que te deixou assim, ou desgostos. Como é que conseguistes chegar a um estado deste. Mas afinal o que pretendes de mim. Posso te ser útil em alguma coisa, fala.

            - Podes, sim. Não me deixar afogar-me numa miséria maior. Todos os homens fogem de mim. Ninguém seque tem um pouco de piedade e as próprias companheiras zombam deste meu estado de decadência. E mais de uma vez tenho ouvido comentários: – É uma concorrente a menos. - Naquele tempo pensava que seria sempre uma mocinha atrativa e adorava variar, conhecer todos os homens. Era uma espécie de doença e dela sofro hoje as consequências.

            - É verdade, mas, não deveria ter procurado me humilhar, zombando de mim quando te convidava para viver comigo. Tive até que mudar meu ambiente noturno para não te ver apontando-me às tuas companheiras com aquele teu risozinho diabólico e zombeteiro. Jamais havia imaginado que seria recusado por uma mulher de vida livre, e ainda hoje me doe à humilhação que me causastes. Não desejava ter oportunidade de dizer-te essas coisas, mas vieste ouvi-las. Tudo quanto te prometia era em vão. No entanto, fizeste-me um grande bem. Casei-me com uma linda mulher, tendo dois belos filhos, um lar risonho e confortável, que poderia ter sido teu. Mas tive muita sorte em não haveres aceitado os meus insistentes convites. Em todo caso não te vou desprezar, isto é, a te propriamente, desprezo pelo que me fizeste, mas em atenção a esta miséria a que chegastes e também por haveres me procurado. O que queres, afinal.

            - Qualquer espécie de amparo, um canto onde cair viva, onde tenha o que comer e onde dormir. Pelo menos este mínimo para a sobrevivência de uma pessoa. Um emprego doméstico pra varrer chão, lavar roupa ou, sei lá, o que posso merecer. Quero também que me perdoe o que fiz. E tanto que as companheiras me aconselharam a aceitar o teu convite. Mas, supunha que fazia aquilo para se ver livre de uma concorrente. E foi visto que me enganei perdi para todo o sempre. Sou, hoje, este bagulho, sem homem, sem dinheiro e, o pior de tudo, até sem ter aprendido a profissão que adotei. E pensar ainda que fui uma mocinha criada com tanto gosto pelos meus pais que nem seque sabem onde ando. Devem ter sofrido de mais pelo meu procedimento sujo e vergonhoso. É até preferível que nunca saibam do tipo de vida que levo. Seria reavivar-lhes os desgostos. Fui uma louca ordinária. E somente agora, na miséria em que estou, percebo todos os meus erros, tarde demais.

            - Não é necessário contares mais nada, nem te lamentares. De tudo que ouvi, concluo que me fizeste um grande bem em me recusares. Terias com certeza impedido minha felicidade de hoje. Agradeço-te, por isso, e assim tenho que te recompensar. Vou dar-te o suficiente para saíres daqui e começares outro tipo de vida aonde chegares, caso aceite. Não te desejo outra coisa senão que sejas feliz. Toma, guarda e segue o teu caminho. Tenho dó do teu estado deplorável e prefiro não te ver mais e nem guardar lembrança tua. Já vistes que o teu corpo foi um fracasso. E era só exuberância que ostentavas, ou foste tu mesma que o diluístes. Procura tua família, antes que seja tarde demais. Pode ser que ela te recupere e salve. Basta pelo menos, que consiga a benção de teus pais e o bem querer de teus irmãos. Talvez não mereças, mas valerá a pena tentar.

            - Agradeço tudo quanto está fazendo por mim, inclusive os bons conselhos. E devo confessar-lhe que minha desventura começou naqueles dias que me neguei a acompanhá-lo, Queria homens e mais homens na minha vida. Era uma espécie de doidice do meu corpo de mulher nova. Mas não tardou que se saturaram de mim. E fui caindo no abandono, arruinei-me até este estado, lamentável. Do dia para a noite envelheci e o meu corpo cansado e envenenado de tanta luxúria, transformou-se nisto. Oco e vazio. De insaciável que era, é hoje, nada mais, nada menos do que uma espécie de corpo sem vida. Não sente mais nada, não deseja mais nada. Um incêndio que se apagou e onde somente restam cinzas frias. Nem sei como se morre assim, sem perder a consciência do que foi e do que é. Se ao menos tivesse como esquecer o erro que cometi recusando teu convite, mas esta minha ruína me adverte a cada instante. Adeus.

             FIM

 

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas, no prelo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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