terça-feira, 20 de janeiro de 2015

SANTELMO



SANTELMO*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Chovia e fazia frio quando Santelmo foi se deitar em sua redinha encardida para dormir. Enrolou-se com o lençol de retalhos e fechou os olhos para tentar esquecer o estômago vazio e o sofrimento do pai, com as juntas endurecidas e as pernas trôpegas, amarradas pelo reumatismo crônico que não lhe deixava sair para trabalhar e que nem dinheiro tinha para comprar remédio. Mas o sono não chegava como se quisesse castigá-lo ainda mais.
            Já eram nove anos de sacrifício e o pouco que arranjava limpando jardins e fazendo mandados não dava mais de que para comprar umas migalhas. Se, pelo menos, tivesse mãe e a irmã já fosse uma moça feita, mas a mana com 13 anos apenas, pouco podia fazer lavando roupa em casa. O pai, coitado, magro e reumático, entretinha-se em fazer palitos para a bodega do turco, que empacotava e os vendia como sendo importados.
            Santelmo jurava que um dia aquela miséria teria de acabar. A salvação até então, eram os restos de comida que juntava nas casas ao meio dia e à tardinha. A irmã, Zaíra, nem era bom pensar. Esforçava-se como uma louca e quem a via tinha a impressão que ela era somente aqueles olhos grandes e tristes. Calada, sempre calada, via o pai naquele estado, afiando o canivete desgastado, já fininho, fazendo palitos sem reclamar. E também não tinha a quem. A culpa era do próprio destino. Ninguém lhe havia tomado nada.
            Por sua vez o pobre Ferreira vivia a se lastimar daquela vida impotente sem poder dar um jeito melhor para os filhos, choramingava dizendo:
- Quando eu era bom, sempre tinham qualquer coisa para comer. No entanto, a desgraça entrara de portas adentro, a mulher morrera e a doença o entrevara-lhe as pernas.
            O filho - o Santelmo – ainda comia por onde trabalhava, mas a filha, de feições tão delicadas, um mimo de menina, sempre, pacientemente à espera de quem lhe desse alguma coisa. E ele parado, impossibilitado de cuidar dela. Só não rebentava os miolos, porque seria ainda pior para Zaíra. Pedia a Deus que o tempo passasse a galope, ela ficasse moça e o filho crescesse para enfrentarem as forças do destino. Ele mesmo poderia levar o breca a qualquer hora, mas Zaíra, mesmo ele aleijado como estava, servia-lhe de companhia e de proteção. O meio que havia era esperar por Santelmo.
Para que chegassem as coisas ruins, o tempo voava, mas para as boas, andava a passo de cágado. Assim parecia.
Santelmo levantou-se no dia seguinte com expressão de quem não dormira. Mas estava destinado. Teria que arranjar um trabalho fixo. Havia rezado para todos os santos. Não suportava mais ver o pai e a irmã passando fome e naquela agonia terrível. Não tinha naquela manhã, nada para comer. Engoliu a saliva magra, tomou a benção do pai, falou com Zaíra e saiu. Iria de casa em casa, de armazém em armazém implorar um emprego. Contaria tudo que estavam sofrendo. Pediria que os salvassem, não os deixassem em tamanha miséria. Mas, de modo geral, a quem não falta nada, não importa o sofrimento dos outros. Quem se interessa para saber as causas. Todos que pedem estão nivelados aos vagabundos e pilantras que andam a pedir pelas ruas.
E saiu a ouvir:
- Não tenho, não posso.
- Vá bater noutra porta.
Para um rapazinho ainda jovem aquilo deveria ser uma maldição. Na dobra de uma esquina, parou e chorou. Sabia que o pai e a mana estavam com fome em casa esperando que ele voltasse. Chegou a pesar em coisas proibidas. Mas não tinha instinto para fazê-lo. No momento de suas maiores aflições, com as mãos nos olhos chorando.
Oportunamente, ou coisas do destino, naquele momento passava o merceeiro Brasiliano.
- O que é que há meu rapazinho. Bateram em você. Diga, diga. Conte sua história. Pare de chorar.
- Não foi não, senhor. Quem está judiando com a gente é o destino. Foi pai quem disse. Lá em casa só se passa fome. Pai doente, entrevado, Zaíra, minha irmã, ainda não pode ajudar, e o homem que tem sou eu, deste tamanho, e sem achar emprego. Vai morrer tudo. E se o senhor visse Zaíra, morreria de pena dela. Parece um anjinho magro. Só tem os olhos. Não fala, não pede, não se maldiz. Uma santinha morrendo de fome.
Saí para pedir emprego. Ninguém tem, ninguém pode, ninguém me deu. E o que é que vou dizer em casa, sem levar nada para os dois que esperam por mim, como acontece todos os dias, ao meio dia e à tardinha. Lá em casa não tem nada. Só tem mesmo a fome. Tenho até medo de voltar, de sair quebrando a cabeça pelos muros, batendo nas árvores. Vontade de cair morto, morto de uma vez. Pai está sem comer, Zaíra está se acabando de fome. O senhor já pensou; pai doente e só dois meninos em casa. Pai ainda faz palitos para vender ao Turco. Mas é tão pouco. Trabalha a semana toda, sentado num banquinho, raspando os pauzinhos. Levo pro Turco e volto com umas besteiras.
- Bem, então, agora depende de ti e de tua irmã, uma vez que teu pai não pode trabalhar. Preciso dos dois, caso queiram ir passar o dia em minha casa. Tu comigo e ela com minha mulher. Teu pai anda?
- Pouco, quando o dia esquenta.
- E pode ficar sozinho em casa?
- Pode, acho que pode, tendo o que comer bem entendido. Moramos ali na ponta da rua, quase no fim da Rua Dos Tamarindos. Eu mesmo me chamo Santelmo. Minha irmã é a Zaíra. Meu pai o Ferreira, seu Ferreira. E minha mãe que está no céu, chamava-se Madalena. Morreu quando eu tinha dois anos. Nem me lembro direito das feições dela.
- Vamos, então, lá na loja que vou lhe adiantar umas coisas para vocês comerem. E depois vamos ajeitar as coisas para vocês trabalharem. Concorda?
- Deus me livre de não querer. Foi mesmo que cair um presente do céu. Mas, a Zaíra depende do pai. Ele pode ter medo de ficar sozinho. Doente, o senhor sabe como é.
- Ora, ao meio dia, um irá lá ver como está e se precisa de alguma coisa. Lá casa somos só dois, eu e a mulher, uma magricela, é meio nervosa mas é uma excelente criatura. Todos os dias, procuro uma pessoa para fazer-lhe companhia e ajudá-la. Não fica bem assim, meu rapaz?
- Parece que foi Deus que mandou o senhor. Já não sinto mais nem fome. A alegria fez passar tudo. Vou correr para casa depois que o senhor entregar alguma coisa para fazer a comidinha dos dois.
- Ora, Santelmo, tenha calma. Vamos depressa à mercearia.
Preparou um pacote com feijão, arroz, farinha, carne de charque, um pacote de café e um quilo de açúcar.
- Que bom. Nunca mais se cozinhou nada lá em casa. Só se acendia o fogão para ferver água quando tinha café.
- Então, corre. Leva, preparem, comam, fala com teu pai volta depois do almoço.
Zaíra acendeu o fogo como se estivesse enfiando as mãos em ouro líquido. A panela começou a ferver e o cheiro do feijão com carne de charque encheu a casa toda e saia de porta a fora. Dava até pena perder o cheiro gostoso daquele.
Lá do fundo da rede seu Ferreira gritou:
- Vem cá, Zaíra. O que é que estás cozinhando. Que cheiro bom é este?
- Foi Santelmo que trouxe feijão, carne de charque, arroz e farinha. Já estão no fogo. O cheiro é mesmo uma gostosura.
- Chama aí Santelmo.
- Estou aqui.
- Onde arranjou essas comederias. Onde achou ou quem te deu.  Fala a verdade. A fome faz qualquer coisa, mas é melhor morrer de fome do que pegar no alheio. Não tinhas dinheiro para comprar. E então?
- Não foi nada do que o senhor esteja pensando. Arranjei emprego para mim e para Zaíra. Zaíra, se o senhor concordar. É na casa do seu Brasiliano, aquele homem que tem uma mercearia. E foi ele quem me deu a comida. E quer que eu volte já depois do almoço. Zaíra e eu se o senhor deixar. Ela vai ajudar a mulher dele e eu vou trabalhar na bodega.
- Ora Santelmo e por que não. Só assim tua irmãzinha não passará mais fome. Nos somos homens, aguentamos, mas ela, Deus nos livre. Já não aguentava mais vê-la naquela tristeza que a fome traz. Tristeza de quem está com uma vela acesa na mão. Atiça o fogo, bota lenha de miolo para matar a última fome de tua irmã. Sim a última, Santelmo. Sei que pela primeira vez irei dormir tranquilo. Mas, pergunto uma coisa, filho. A casa onde vai trabalhar tua irmã, é casa séria? Se não for, deixa-a mesmo como está.
- É sim, pai. E talvez seja melhor que ela fique lá, morando, dormindo. Tenho tanta pena dela, pai. Não lhe faltará nada.
Empregaram-se os dois e não faltou mais nada em casa de seu Ferreira.
- Santelmo! Irás para a escola com a Zaíra, à noite. É necessário aprender a ler e contar. Sem alguma instrução sofre-se muito. A leitura é útil e distrai. E agora, outra coisa, Zaíra, vamos cuidar de teu pai. Não é humano deixa-lo preso em casa com aquele reumatismo possivelmente curável. Vamos levá-lo num médico e começar o tratamento. Não me fará falta o pouco que despender. Dinheiro só tem valor quando se torna útil. Guarda-se, não se desperdiça à toa, esta certo, mas em beneficio de alguém, é uma aplicação abençoada. E verão que com isto se recebe muito mais de volta.
Zaíra ficou comovida e propôs não receber seus salários como uma justa retribuição.
- Ora, Zaíra, assim meu desejo não teria o sentido que quero. Alias, vamos fazer um aumento no preço que estamos pagando aos dois. Se não nos deixarem, por qualquer motivo, mais ainda, receberão no futuro. Já expliquei aos dois que o dinheiro que nos sobra tem valor muito relativo. Não haverá maior compensação do que ver teu pai andando normalmente, trabalhando como antes. Disto só tenho um receio, é que quando estiver curado e capacitado a sustentá-los, não os queira levar de volta. Ele quer muito bem a vocês.
- Não, não fará isto. Pelo menos não acreditamos. E seria um disparate.
Seu Ferreira, pouco a pouco, ficou curado e passou ao trabalho. Já fortalecido das pernas que o reumatismo paralisara, fez o seu primeiro exercício indo à casa de seu protetor Brasiliano. Apresentou-se como se houvesse ressuscitado. Fez o seu agradecimento.
- Com palavra não se agradece tamanho benefício. Serei uma espécie de escravo por todo o resto de minha vida. E meus filhos o terão de ser sempre. Quem os vê agora, como eu; é como se os visse saindo de uma ruina. O que a fome vinha fazendo, vinha me fazendo também descrer de tudo. Que alívio, meu Deus, nos deu o senhor, acabando com as angústias de todos os dias e noites de quem vivia a maior tristeza do mundo que é a tristeza de quem não tem o que comer. De mim, eu mastigava a fome para me entreter. Mas os meus filhos pequenos ainda olhavam para mim com os olhos compridos e ansiosos. Era a fome que me olhava! E lá de cima ninguém via a gente.

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

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