NAÍRA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
Naíra era uma menina
angustiada. No entanto não deixava transparecer. Internada desde a infância,
num orfanato. Desde os oito anos, começara a sonhar com o mundo lá de fora. Os
passeios que faziam, enfileiradas duas a duas, aguçava-lhe ainda mais a
ansiedade de se ver livre daquele ambiente fechado e sem perspectivas.
Atendendo aos apelos
da diretora do orfanato, famílias mais famílias iam ali e levavam outras
companheiras que seriam adotadas e teriam a vida que Naíra tanto desejava. Mas
parecia uma maldição. Ela sempre ficando dentro daquelas quatro paredes que
limitavam os seus sonhos. As Irmãs preferiam que ela ficasse. Era, enfim, uma
pessoa útil aos trabalhos do internato. Conduta exemplar, diligente e estimada.
Mas ignorando essa particularidade, julgava que era simplesmente má sorte.
Nunca era apresentada nos momentos das escolhas. Sua aplicação em tudo que
fazia, tirava-lhe o interesse das Irmãs em facilitar sua saída. Dava-lhe vontade
de pedir, mas retraia-se diante do acolhimento que recebia. A ingratidão seria
um sentimento desprezível, no seu entender. Mas o que pretendiam fazer dela
naquele internato. Quanto tempo ainda levaria metida ali dentro naquele
cotidiano amargo. É verdade que os estudos enriqueciam seu espírito e poderiam
mudar inteiramente sua vida mais tarde. Mas, se nunca lhe viesse oportunidade
de libertar-se, para ir ver o mundo lá fora, o mundo que ela imaginava e via
apenas de longe, superficialmente, parecia-lhe, então, que o meio seria fugir,
aproveitar-se da confiança que merecia, e não ficar mais uma hora sequer só a
sonhar.
Naíra, entretanto,
não aprendera a ser indigna e falsa. Era esperar que chegasse sua vez. Não era
possível que um dia qualquer, chegasse a ser vista e convidada. Antes pensava
que teria direito de escolher um casal que lhe agradasse, que lhe fosse
simpático e que Deus a livrasse de cair em casa de velhos conservadores, gente
do passado. O ideal seria gente moça, que sempre saísse, e freqüentasse lugares
alegres. No entanto já estava disposta a tudo. Afinal de contas era confiar sua
sorte ao próprio destino.
E numa quarta-feira
de setembro, um casal de velhinhos de uma aparência agradável, entrou em
companhia da Irmã Superiora. Talvez fosse apenas uma visita e esse pensamento
entristeceu Naíra. Sentia fugir-lhe mais uma oportunidade.
A Irmã pediu que
todas se levantassem. Foi um momento de expectativa. Quem seria a escolhida.
Todas o desejavam, exceto as menores que não possuíam ainda uma noção exata do
que era o internato. O casal demorava na escolha. Conversavam em particular até
que apontaram em direção a Naíra. Mas poderiam não ser para ela. Em todo caso
sentiu-se nervosa. Depois de entendimento com a Irmã, Naíra notou um gesto
negativo.
- Porque, Irmã.
Aquela é a moça de nossa escolha, mas já que não pode ser, deixaremos para
outra ocasião. Iremos a outro orfanato.
– Mas, com tantas
moças para escolha?
- Sim Irmã. É uma
questão de simpatia. Foi aquela que nos agradou e seria desinteressante
conviver com uma pessoa que não nos despertou simpatia. Se não pode ser
aquela...
- É , ela não
tenciona sair.
- Não podemos lhe
falar. Talvez conversando ela se convença. Como é mesmo o nome dela?
- Naíra. Naíra das
Graças. É uma moça temperamental, voluntariosa. Gosta de fazer o que entende.
- Não aparenta.
- Mas, é assim. E por
isto ainda está aqui.
- Podemos conversar
um pouco com a menina?
- Podem, mas irão se
arrepender da escolha. Depois não queiram devolve-la.
- Chame-a, por favor.
- Vem aqui Naíra.
- Boa tarde, Naíra.
Estamos aqui à procura de uma moça para nossa companhia. Não se agradaria de ir
para nossa casa? É verdade que somos um casal de velhos já sem muita animação,
mas em todo caso acreditamos que poderá viver bem com a gente.
- É! Só depende da
Irmã Superiora, se ela consentir, irei.
– E então, Irmã?...
- É como já
expliquei, mas o gosto é dos dois.
- Veja bem, Naíra,
irá para a companhia de um casal de velhos, sem atração. Em todo caso poderá
ter uma vida um tanto folgada. Não será nossa empregada. Será, sim, nossa
filha. Será adotada em cartório. Queremos é uma filha, uma pessoa que nos ajude
o viver. Nos acompanhará para onde formos. Ou pensa em sair para a casa de seus
pais?
- Não. Nunca tive
pais. Não sei se existem e se existem, nunca quiseram saber de mim. Logo não
tenho pai e não tenho mãe. E mesmo que me aparecessem, jamais os acompanharia.
Quem abandona um filho à porta de um orfanato, não tem amor a ninguém. Devo
tudo às Irmãs do orfanato. Até hoje têm sido meus únicos parentes e meus
amigos. Irei se me quiserem levar. Ao menos darei descanso às Irmãs.
- Irmã. Que nos diz.
- Uma vez que Naíra
quer ir, está em suas mãos.
- Ótimo. Então, mande
que apanhe seus pertences e vamos assinar o documento de responsabilidade.
- Vai, Naíra,
prepara-te. Queres nos deixar, então teremos que nos despedir.
- Quero que me de
tempo a despedir-me de todas as companheiras e pessoas desta casa. Assim não
sentirei tantas saudades.
- Ora, menina poderá
vir aqui quantas vezes quiseres. Lembra-te que será nossa filha. Os trabalhos
de casa já estão todos entregues as empregadas. Farás apenas o que desejares
fazer o que te agradar.
Uma hora depois,
Naíra entrava no automóvel do casal, dirigido por um motorista de quepe. Teve
até certo acanhamento. Não estava habituada a conviver com gente rica e
importante.
Quase se arrependia
de haver aceito o convite. Mas era tarde. O carro rodava, entrando em novas
ruas que ela nunca sonhara que existissem. Parou diante de um portão de chácara
que um vigilante abriu. Naíra sentiu-se aniquilada com aqueles aparatos todos,
embora notasse que os seus protetores viam as coisas com a maior simplicidade.
Era como se estivesse chegando a um lugar qualquer. Estava perplexa. Como iria
se ajeitar naquele ambiente novo, naqueles espaços todos. Talvez a Irmã Superiora
tivesse razão. E ela com aquela roupinha de orfanato, aqueles sapatinhos
baratos. Dobrou-se dentro de si mesmo e entregou-se a seu próprio destino.
- Está aí Naíra, onde
iremos conviver. Tomarás conta da casa e de nos dois. Não servíamos mais para
quase nada. Foi para isto que fomos te buscar. Não te acanhes de nada, faças de
conta que nascestes e crescestes aqui. Amanhã já será outra Naira. Está vendo esta
velhinha aqui, a dona Angelina, minha mulher. Ela tomará conta de ti. Depois
tomarás conta de nos dois. Estás certo?
- Sim senhor. Mas não
sei nem andar aqui dentro.
Muitas vezes chegava
a pensar que o mundo todo era um grande orfanato. Toda minha vida enfiada lá
dentro, sem perspectivas.
No dia seguinte Naíra
nada tinha mais em cima de si que lembrasse o orfanato e um mês depois já
estava adotada. Afinal, o casal passava a sentir o prazer de ter uma filha. A
preocupação era fazê-la feliz. Completar os seus estudos e capacitar-la a
dirigir mais tarde, os bens da família. Naíra desfazia-se em atenções sem
precisar forçar sua sensibilidade. O que fazia era tão natural e espontânea que
nem dava para perceber qualquer esforço ou artificialismo de sua parte.
Ao mesmo tempo o
casal Costa Cirneiros devotava a
Naíra uma estima especial. Naíra assumira facilmente todos os encargos
domésticos e servia ainda de mensageira para algumas ocupações externas. Naíra
cantava e enchia o casarão de uma alegria e vivacidade comovedoras. Tudo se
tornara jovem naquele ambiente antes povoado de silencio e velhice. Por mais
que o casal quisesse antes torná-lo ameno e alegre, faltava-lhe sempre qualquer
coisa viva para animá-lo. Com a chegada de Naíra foi como se houvesse acordado
todos os passarinhos.
- É verdade, santa,
envelhecer sozinhos é um perigo. Têm-se a experiência, a prudência, os meios
para viver despreocupados, mas falta o essencial, aquela alegria da juventude.
Cada passo que se dá já é descendo a ladeira da vida, sem esperança de voltar.
Há uma névoa que encurta os horizontes.
O amor é um amor
tecido só de lembranças. Tudo já era. A gente vai ficando espiritualizado e dos
prazeres da vida nem mais as recordações. O corpo tão cheio de atração no
passado, passa a ser apenas uma forma material da existência. O espírito não
serve se não para reviver saudades e gerar desilusões. Morrer nessa fase já é
um quase nada. O mundo perdeu as cores e não existem mais os bons desejos. Uma
mulher que passa, só nos deixa um perfume vago e distante. As vibrações da
matéria não acendem mais o fogo dos desejos. Era a vida se apagando como uma
lamparina que vai consumindo o restinho do azeite.
Naíra reavivou a
chama com o óleo verde de sua juventude. Dois anos depois se reuniram os três
para uma conversação muito íntima.
- Olha, Naíra, não
desejamos que um dia fique sozinha. Certamente que não temos época marcada para
deixar-te e esperamos que isto não aconteça, pelo menos, nesses próximos anos.
Mas ser previdente nunca fez mal a ninguém. Já deves ter percebido que o que é
nosso te pertencerá um dia. Pois bem, filha, desejamos que te cases, mas com
uma condição única, alias, isto é, com a pessoa que escolheres e que seja de
nosso agrado e aprovação. Não queremos que esse alguém, por qualquer
circunstancia, venha a causar-te o menor dissabor. Por isto essa pessoa não
deverá saber que és nossa herdeira. Assim, será interessada apenas por ti e não
pela tua situação econômica. É provável que já tenhas pensado em casamento
- Sim, pensar,
pensei, mas não enquanto estiver a fazer-lhe companhia e enquanto me quiserem. Não
desejo que alguém possa a vir trazer-lhes a menor preocupação. Uma pessoa
estranha, nunca se sabe o que será na intimidade. A simulação encobre muitas
manhas. Portanto, acho melhor não falar em casamento. Francamente, ainda não senti
necessidade dele.
- É, Naíra,
entendemos os teus propósitos, mas estás falando de uma coisa da qual a
experiência é nossa. O que existe de bom na vida é justamente em tua idade,
enquanto se tem no corpo, o fogo sagrado do amor, dos sonhos e das ilusões.
Depois tudo são cinza fria, os restos de velhos amores e lembranças. Cuida em
escolher um noivo, se é que já não o fizestes, minha sonsinha... Queremos que
seja plenamente feliz e realizada. É isto que desejamos. E mereces muito mais.
Não te preocupes com riqueza. O que terás sobrara para viverem
despreocupadamente. Pensa apenas no amor e na boa compreensão dos dois. Dois
que se querem realmente e sempre se entenderão bem. Mas olha, não te deixes
levar por paixão, que é uma péssima conselheira. O amor sim, e que é duradouro
e permanente.
- É, minha filha, eu
e o Posidônio, vivemos de amor, só de amor. Paixão é coisa passageira. É como
quem corre atrás de um fruto dourado e que afinal de contas é azedo ou amargo.
Ainda hoje somos dois namorados, mesmo de fogo apagado... Queremos que te cases
e cuida nisso, sem tempo marcado. Mas não esqueças que a velhice é como uma
mola que perde a ação. Não funciona mais. Um molho que não arde mais...
Em 16.10.1986
*O conto faz parte do
livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
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