terça-feira, 13 de janeiro de 2015

CASADA POR CONVENIÊNCIA

CASADA POR CONVENIÊNCIA*

João Henriques da silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


Entre o céu e o inferno há espaço imensurável, onde se agitam todas as formas de vida, com os seus encontros e desencontros. Nunca se sabe onde está a felicidade, nem a razão de ser da existência do diabo, onde deveria existir um santo.
            Um mundo de contradições inexplicáveis. Um mundo onde cada ser humano é um enigma. A pessoa que se vê, quase sem exceção, não é a verdadeira. A legítima não aparece. Fica escondida para trair, enganar, ou raramente, surpreender pela bondade, pela compreensão e pelo amor.
            Jacinta era do tipo comum, dessas mulheres de aparência cativante, dócil e meiga. Comportava-se como um sorriso de criança. Fácil de enganar, fácil de trair. Por dentro, no entanto, morava outra Jacinta, interesseira, ambiciosa, e sem sentimentos de moral. Procurava uma vítima que lhe propiciasse conforto. Apenas isto. Alguém de boa fé, sem maldade e que, portanto, fosse incapaz de fotografar sua segunda pessoa. Amor, respeito, eram coisas secundárias.
            Quando lhe surgia um bom partido, mas, a parecer-lhe vigilante e perspicaz, logo o deixava de lado. Sabia que poderia mais tarde por em risco sua vocação de criatura, intimamente extrovertida que considerava a fidelidade matrimonial, coisa do passado.
            Viver com um homem só não se ajustava ao seu temperamento e muito menos aos traçados da sociedade ultra evoluída. Ciosa de suas convicções de manter-se no plano social em que vivia sem se banalizar como uma mocinha qualquer de programas tinha que se casar primeiro, para, então, desfrutando de uma situação legal, entrar no esquema de segurança. Só assim poderia ter amigos e ser respeitada.
            Havia, custasse o que custasse, de encontrar um marido compreensivo e confiante. Os maridos “espertos” deveriam ser das outras mulheres, isto sim, desses que gostasse de beber champanhe em casas dos amigos e admirar a beleza e o donaire de suas esposas. Jacinta saberia se apresentar e tinha material para impressionar. Levava parte de seu tempo, enquanto procurava marido, a estudar seu comportamento social, em relação aos maridos alheios. De suas analises aprofundadas, chegara a conclusão que para manter o estatus, seria imprudência aventuras com solteiros.
            Os casados, estes sim, seriam obrigados a guardar sigilo, com receio de escândalos. Gente solteira, neste particular, é sempre irresponsável. Diz mais do que faz e tem  a vaidade de se vangloriar. Comenta com os companheiros e facilmente a mulher se vulgariza. Os casados são sigilosos, convenientes, reservados.
            Jacinta teria de escolher um que, além das outras “virtudes”, fosse moldável e gostasse de receber amigos e fazer novas amizades, para ampliar o seu campo de ação. Melhor ainda se fosse um marido cochilador, desses que, nas festas, nas reuniões, fica-se para um lado a bebericar em conversa com alguns companheiros e deixam o campo aberto, só se lembrando da mulher quando a festa acaba. Pouco-se-lhe daria que mantivesse algum namorico de salão. Ao menos ficaria mais distraído e adorando a complacência da esposa querida.
Jacinta considerava-se uma mulher vitoriosa. Casada, que fosse com um sujeito rico, acomodado e complacente e que nem gostasse de sair acompanhado. A mulher que fosse sozinha, ao médico, ao dentista, aos mercados e até às festas de aniversario e batizados. E se não fosse teria de convencê-lo e habitua-lo.
– Ora fulano, que coisa mais chata, ter que ir a essas festinhas, só e só por obrigação social. Vai que eu fico. Ajuda-me, homem de Deus. Não agüento mais.
- Deus me livre. Mesmo sem gostar vá você, criatura. Mulher tem mais jeito e mais paciência para essas coisas.
            Teria que ser assim. Perto dela, só homem de outras mulheres. E teria que ser. Não daria para suportar, a mesma cara, o mesmo cheiro, o mesmo homem a dormir com ela. Só mesmo para essas mulheres sem it e sem ambiente social ou então, feias e mortas de espírito.
            Jacinta estava com todos os preparatórios para fazer um casamento ao seu modelo e gosto. Um marido para oficializar sua condição de mulher honesta e liberdade para os vôos de andorinha que gosta de mudar de ninho. Agora era entrar em atividade e pegar o primeiro palerma endinheirado que lhe viesse aos pés. Não fazia questão de idade e nem de cara. Eram coisas secundárias para os seus planos tão bem delineados. Havia mesmo de partir pra a ofensiva.
            E lá estava o Herculano, solteirão, meio barrigudo, afeito à vida caseira, mansinho, um verdadeiro cordeiro desmamado. Foi a ele com toda desenvoltura de moça que deseja ardentemente casar.
            Herculano sentiu um verdadeiro impacto. Não, não era possível que aquela moça de tantos dotes, tão retraída, com cara e jeito de anjo, estivesse atraída por um solteirão boboca como ele. Mas não restava a menor dúvida. Os seus olhares ternos, sua conversação sempre falando em amor, em lar, em filhos, em coisas bonitas e honestas, não poderia ter outra finalidade. E Jacinta era realmente um modelo de moça recatada, simples, como o são as virgens que desejam um lar puro e harmonioso. Poderia parecer incrível, mas ali estava ela com todos os seus dotes de uma perfeita dona de casa e esposa dedicada.
            Caía a sopa no mel. E foi então quando não havia mais o que pensar em contrário, que o namoro firmou-se. Herculano iria passar a perna em muita gente, especialmente à rapaziada de seu bairro.
            Acertaram-se e o pedido não tardou. Noivos; marcaram o casamento. Herculano não queria festa e muito menos Jacinta.
            - Para que festa, meu adorado Herculano. Sempre fui uma moça simples, modesta, recolhida e até um tanto tímida. Está visto que nascemos um para o outro. O amor nasce sem se esperar. Alias, há muito tempo tenho conversado minha grande afeição por você. Tinha receio de que não me aceitasse e por isto, sofria calada e angustiada. Problema de formação e de temperamento.
            - Ora, para mim foi uma enorme surpresa e uma grande felicidade. Só acredito por que estou vendo e sentindo. Quem havia de dizer que me caísse do céu uma dádiva tão preciosa.
            - Felicidade é a minha, encontrando o ideal de meus sonhos. Parece até que estou sonhando acordada e ao meio dia em ponto. Os maldosos poderão até pensar que ando atrás de dinheiro, mas sua fortuna, no meu caso foi pura coincidência. Sempre levei uma vida modesta e assim desejo continuar.
            Considerava-se realizada. Dinheiro à vontade e um paspalhão fácil de enganar. Além disso, deveria gostar de exibir a esposa, mostra-la à sociedade, envaidecer-se da sorte que lhe caíra às mãos, alias, sem correr atrás dela. Era humana essa vaidade. Mulher bonita, nova ainda, de fina educação social, era mesmo para ser mostrada, exibida, elogiada, adorada. E iria prendê-lo mais ainda com os volteios que daria no corpo perfumado e quente. Poderia até causar-lhe uma congestão e ficar viúva inesperadamente, coisa de que não havia se lembrado antes. Aí sim, atravessaria os mares, as montanhas, os horizontes de sua vida de mulher fingida e vadia. Precisava era casar logo, antes que o diabo se interpusesse. O diabo não é gente em quem se pudesse confiar.
            E casaram-se na água benta e diante do Código Civil. Amarração espiritual e legal. A morte também não avisa ninguém e uma brincadeirinha proposital depois do almoço ou do jantar, bem que poderia fazer um defunto.
            Não seria o primeiro e nem o último, mas era assunto a pensar com todo zelo e carinho.
            Jacinta já havia passado pelo primeiro equívoco, quando desejou casamento sem festividades. Esperava que Herculano reagisse e fizesse uma grande festa. Mas concordara com ela, ou por atenção à sua vontade ou por não querer mesmo.
            Foi-se o primeiro mês de casados e nenhuma festa em casa ou comparecimento a outras. Jacinta andava desapontada.  Falou em passeios, falou em festas e Herculano fazia ouvido de mercador. Planejou ir ao médico, queixou-se de dor de dentes para ter um motivo de uma saída e uma primeira tentativa de viração, mas Herculano foi taxativo.
            - Não tenha dúvida. Marque o dia e o horário. Iremos juntos. Preciso sair também um pouco.
            - Mas não será necessário.
            - Ora, não quero que você sofra sozinha. Minha companhia, além disso, lhe encorajará, não acha? Aliás, vou logo lhe dizer que mulher minha não anda sozinha. Não por falta de confiança, não senhora, mas para evitar comentários. E mesmo quando eu estiver fora de casa, o regime é o mesmo ou mais rigoroso ainda. Está bem entendido, não está? Mulher e marido devem andar juntos. E depois, orgulho-me de acompanhá-la.
            Jacinta tremeu os nervos e o corpo todo. Cometera o erro de não haver se casado com um homem “evoluído”. Herculano com aquele jeito de paspalhão, cortara-lhe os planos pela raiz. Com o passar do tempo talvez à coisa viesse a mudar. E mudar mesmo. Nem às missas ou à casa do vigário poderia ir só. Procurava fugir de Herculano, já saturado de seus carinhos, mas, era ainda mais procurada. Tinha tudo, inclusive jóias caras, e, no entanto, todos os seus planos fracassaram miseravelmente. Apelava para uma congestão, mas Herculano, depois das refeições tinha medo até de palitar os dentes.
            Meses depois, Jacinta estava grávida, mostrando a saliência da barriga e percebia que os seios cresciam e coçavam. Imaginava se o filho saísse com a cara do pai, feia e ossuda. E nasceu mais feio do que o pai. Um meninão despropositado com mais de quatro quilos e meio e uma cabeçorra que quase não saía. Sofreu o que o diabo enjeitou. Quanto sonho e quanto tempo perdido. Um engano da peste.
                                                                                                                     
6.5.1986.

*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

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