CASADA POR CONVENIÊNCIA*
João
Henriques da silva
(In
Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
Entre o céu e
o inferno há espaço imensurável, onde se agitam todas as formas de vida, com os
seus encontros e desencontros. Nunca se sabe onde está a felicidade, nem a
razão de ser da existência do diabo, onde deveria existir um santo.
Um mundo de
contradições inexplicáveis. Um mundo onde cada ser humano é um enigma. A pessoa
que se vê, quase sem exceção, não é a verdadeira. A legítima não aparece. Fica
escondida para trair, enganar, ou raramente, surpreender pela bondade, pela compreensão
e pelo amor.
Jacinta era do
tipo comum, dessas mulheres de aparência cativante, dócil e meiga.
Comportava-se como um sorriso de criança. Fácil de enganar, fácil de trair. Por
dentro, no entanto, morava outra Jacinta, interesseira, ambiciosa, e sem
sentimentos de moral. Procurava uma vítima que lhe propiciasse conforto. Apenas
isto. Alguém de boa fé, sem maldade e que, portanto, fosse incapaz de
fotografar sua segunda pessoa. Amor, respeito, eram coisas secundárias.
Quando lhe surgia
um bom partido, mas, a parecer-lhe vigilante e perspicaz, logo o deixava de
lado. Sabia que poderia mais tarde por em risco sua vocação de criatura,
intimamente extrovertida que considerava a fidelidade matrimonial, coisa do
passado.
Viver com um
homem só não se ajustava ao seu temperamento e muito menos aos traçados da
sociedade ultra evoluída. Ciosa de suas convicções de manter-se no plano social
em que vivia sem se banalizar como uma mocinha qualquer de programas tinha que
se casar primeiro, para, então, desfrutando de uma situação legal, entrar no
esquema de segurança. Só assim poderia ter amigos e ser respeitada.
Havia, custasse o
que custasse, de encontrar um marido compreensivo e confiante. Os maridos
“espertos” deveriam ser das outras mulheres, isto sim, desses que gostasse de
beber champanhe em casas dos amigos e admirar a beleza e o donaire de suas
esposas. Jacinta saberia se apresentar e tinha material para impressionar.
Levava parte de seu tempo, enquanto procurava marido, a estudar seu
comportamento social, em relação aos maridos alheios. De suas analises
aprofundadas, chegara a conclusão que para manter o estatus, seria imprudência
aventuras com solteiros.
Os casados, estes
sim, seriam obrigados a guardar sigilo, com receio de escândalos. Gente
solteira, neste particular, é sempre irresponsável. Diz mais do que faz e
tem a vaidade de se vangloriar. Comenta
com os companheiros e facilmente a mulher se vulgariza. Os casados são
sigilosos, convenientes, reservados.
Jacinta teria de
escolher um que, além das outras “virtudes”, fosse moldável e gostasse de
receber amigos e fazer novas amizades, para ampliar o seu campo de ação. Melhor
ainda se fosse um marido cochilador, desses que, nas festas, nas reuniões, fica-se
para um lado a bebericar em conversa com alguns companheiros e deixam o campo
aberto, só se lembrando da mulher quando a festa acaba. Pouco-se-lhe daria que
mantivesse algum namorico de salão. Ao menos ficaria mais distraído e adorando
a complacência da esposa querida.
Jacinta
considerava-se uma mulher vitoriosa. Casada, que fosse com um sujeito rico,
acomodado e complacente e que nem gostasse de sair acompanhado. A mulher que
fosse sozinha, ao médico, ao dentista, aos mercados e até às festas de
aniversario e batizados. E se não fosse teria de convencê-lo e habitua-lo.
– Ora fulano,
que coisa mais chata, ter que ir a essas festinhas, só e só por obrigação
social. Vai que eu fico. Ajuda-me, homem de Deus. Não agüento mais.
- Deus me
livre. Mesmo sem gostar vá você, criatura. Mulher tem mais jeito e mais
paciência para essas coisas.
Teria que ser
assim. Perto dela, só homem de outras mulheres. E teria que ser. Não daria para
suportar, a mesma cara, o mesmo cheiro, o mesmo homem a dormir com ela. Só
mesmo para essas mulheres sem it e sem ambiente social ou então, feias e mortas
de espírito.
Jacinta estava
com todos os preparatórios para fazer um casamento ao seu modelo e gosto. Um
marido para oficializar sua condição de mulher honesta e liberdade para os vôos
de andorinha que gosta de mudar de ninho. Agora era entrar em atividade e pegar
o primeiro palerma endinheirado que lhe viesse aos pés. Não fazia questão de
idade e nem de cara. Eram coisas secundárias para os seus planos tão bem
delineados. Havia mesmo de partir pra a ofensiva.
E lá estava o Herculano,
solteirão, meio barrigudo, afeito à vida caseira, mansinho, um verdadeiro
cordeiro desmamado. Foi a ele com toda desenvoltura de moça que deseja
ardentemente casar.
Herculano sentiu
um verdadeiro impacto. Não, não era possível que aquela moça de tantos dotes,
tão retraída, com cara e jeito de anjo, estivesse atraída por um solteirão
boboca como ele. Mas não restava a menor dúvida. Os seus olhares ternos, sua
conversação sempre falando em amor, em lar, em filhos, em coisas bonitas e
honestas, não poderia ter outra finalidade. E Jacinta era realmente um modelo
de moça recatada, simples, como o são as virgens que desejam um lar puro e
harmonioso. Poderia parecer incrível, mas ali estava ela com todos os seus
dotes de uma perfeita dona de casa e esposa dedicada.
Caía a sopa no
mel. E foi então quando não havia mais o que pensar em contrário, que o namoro
firmou-se. Herculano iria passar a perna em muita gente, especialmente à
rapaziada de seu bairro.
Acertaram-se e o
pedido não tardou. Noivos; marcaram o casamento. Herculano não queria festa e
muito menos Jacinta.
- Para que festa,
meu adorado Herculano. Sempre fui uma moça simples, modesta, recolhida e até um
tanto tímida. Está visto que nascemos um para o outro. O amor nasce sem se
esperar. Alias, há muito tempo tenho conversado minha grande afeição por você.
Tinha receio de que não me aceitasse e por isto, sofria calada e angustiada.
Problema de formação e de temperamento.
- Ora, para mim
foi uma enorme surpresa e uma grande felicidade. Só acredito por que estou
vendo e sentindo. Quem havia de dizer que me caísse do céu uma dádiva tão
preciosa.
- Felicidade é a
minha, encontrando o ideal de meus sonhos. Parece até que estou sonhando
acordada e ao meio dia em
ponto. Os maldosos poderão até pensar que ando atrás de
dinheiro, mas sua fortuna, no meu caso foi pura coincidência. Sempre levei uma
vida modesta e assim desejo continuar.
Considerava-se
realizada. Dinheiro à vontade e um paspalhão fácil de enganar. Além disso,
deveria gostar de exibir a esposa, mostra-la à sociedade, envaidecer-se da
sorte que lhe caíra às mãos, alias, sem correr atrás dela. Era humana essa
vaidade. Mulher bonita, nova ainda, de fina educação social, era mesmo para ser
mostrada, exibida, elogiada, adorada. E iria prendê-lo mais ainda com os
volteios que daria no corpo perfumado e quente. Poderia até causar-lhe uma
congestão e ficar viúva inesperadamente, coisa de que não havia se lembrado
antes. Aí sim, atravessaria os mares, as montanhas, os horizontes de sua vida
de mulher fingida e vadia. Precisava era casar logo, antes que o diabo se
interpusesse. O diabo não é gente em quem se pudesse confiar.
E casaram-se na
água benta e diante do Código Civil. Amarração espiritual e legal. A morte
também não avisa ninguém e uma brincadeirinha proposital depois do almoço ou do
jantar, bem que poderia fazer um defunto.
Não seria o
primeiro e nem o último, mas era assunto a pensar com todo zelo e carinho.
Jacinta já havia
passado pelo primeiro equívoco, quando desejou casamento sem festividades.
Esperava que Herculano reagisse e fizesse uma grande festa. Mas concordara com
ela, ou por atenção à sua vontade ou por não querer mesmo.
Foi-se o primeiro
mês de casados e nenhuma festa em casa ou comparecimento a outras. Jacinta
andava desapontada. Falou em passeios,
falou em festas e Herculano fazia ouvido de mercador. Planejou ir ao médico,
queixou-se de dor de dentes para ter um motivo de uma saída e uma primeira
tentativa de viração, mas Herculano foi taxativo.
- Não tenha
dúvida. Marque o dia e o horário. Iremos juntos. Preciso sair também um pouco.
- Mas não será
necessário.
- Ora, não quero
que você sofra sozinha. Minha companhia, além disso, lhe encorajará, não acha?
Aliás, vou logo lhe dizer que mulher minha não anda sozinha. Não por falta de
confiança, não senhora, mas para evitar comentários. E mesmo quando eu estiver
fora de casa, o regime é o mesmo ou mais rigoroso ainda. Está bem entendido,
não está? Mulher e marido devem andar juntos. E depois, orgulho-me de
acompanhá-la.
Jacinta tremeu os
nervos e o corpo todo. Cometera o erro de não haver se casado com um homem
“evoluído”. Herculano com aquele jeito de paspalhão, cortara-lhe os planos pela
raiz. Com o passar do tempo talvez à coisa viesse a mudar. E mudar mesmo. Nem
às missas ou à casa do vigário poderia ir só. Procurava fugir de Herculano, já
saturado de seus carinhos, mas, era ainda mais procurada. Tinha tudo, inclusive
jóias caras, e, no entanto, todos os seus planos fracassaram miseravelmente.
Apelava para uma congestão, mas Herculano, depois das refeições tinha medo até
de palitar os dentes.
Meses depois,
Jacinta estava grávida, mostrando a saliência da barriga e percebia que os
seios cresciam e coçavam. Imaginava se o filho saísse com a cara do pai, feia e
ossuda. E nasceu mais feio do que o pai. Um meninão despropositado com mais de
quatro quilos e meio e uma cabeçorra que quase não saía. Sofreu o que o diabo
enjeitou. Quanto sonho e quanto tempo perdido. Um engano da peste.
6.5.1986.
*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário