ZENILDA*
João
Henriques da Silva
(In Memoriam
20/09/1901 – 16/4/2003)
O
tempo foi passando sem se lembrar de Zenilda. Também Zenilda não se apercebia
da marcha do tempo, como se só existissem os seus múltiplos afazeres
domésticos. Órfão de mãe, sem irmãos, confiante de que teria o pai para toda
sua vida, despreocupava-se inteiramente com o que poderia vir pela frente. Não
falava de casamento, coisa que lhe assustava, pois segundo sabia, a mãe havia
morrido dois dias depois que ela nascera. Então, casamento não seria boa coisa.
No
entanto, o destino preparava-lhe uma grande surpresa, certamente a maior que
poderia acontecer a quem na condição em que ela vivia.
Já
com vinte e oito anos, embora rígida e bonitona, não contava com o golpe que a
deixaria mergulhada em tão dura e cruel realidade. O pai morrera subitamente de
uma falha no coração. Viu-se só como se não houvesse mais ninguém no mundo.
Parecia ter se precipitado num abismo insondável e mergulhada na escuridão de
uma noite tenebrosa. Abria os olhos para ver e não enxergava mais do que as
sombras da solidão e do abandono. Passava os dias e não conseguia atinar o rumo
que haveria de tomar.
Por
que estava só, perguntava a si mesma. Nunca havia se preocupado com o tempo e
percebia agora que já era uma moça refeita sem uma noção exata das coisas do
mundo e da vida. As facilidades que a cercaram até então a fazia esquecer as
implicações futuras, do que o destino poderia reservar-lhe. Tinha que reagir e
tomar conta de si e dos bens que lhe ficaram inesperadamente. Havia ter em sua
coragem e decisões, solução para sua desdita. Duas coisas teria que fazer.
Casar e administra o que lhe pertencia. Como era que nunca havia pensado em
casamento seriamente. Certamente porque levava uma vida tão boa que dava para
viver despreocupada e sem pensar no futuro.
Zenilda
começou a administrar os seus bens que, relacionados para inventário, lhe deram
a visão exata daquilo que seu pai acumulara.
Não
era uma fortuna, mas, bem dirigidos, assegurariam o seu bem estar e uma independência
razoável. E aconteceu que nessa perspectiva e na obrigatoriedade de zelar pelo
patrimônio herdado, Zenilda colocou à parte, o problema de casamento. Poderia muito
bem cometer um grave erro para sua vida social e econômica. Muitos eram os
casos de casamentos por interesse. Um namorado ou um noivo raramente é sincero.
Um mar de rosas, facilmente transforma-se numa tempestade.
Mas
não desejaria continuar só a vida toda e detestava uma vida amorosa irregular.
Tinha medo do tempo, esse devorador de vidas. Não poupava ninguém. Não tinha
mais dúvida de que aos poucos ia envelhecendo e a velhice é como uma centrifuga,
vai jogando a gente fora. E foi nessa fase de conjecturas que Zenilda começou a
sentir qualquer coisa que bulia com ela, certos desejos que pareciam querer
violenta-la. Certa atração mais forte pelos homens. Antes havia sentido a mesma
coisa, mas, passageira. Agora não. Por mais que quisesse se tornar indiferente,
não conseguia dominar-se. Parecia que todos os homens do mundo estavam à sua frente
solicitando-a, devorando-a. E não adiantava procurar espanta-los da imaginação.
Foi nesta fase que Almira, sua amiga,
casou-se. Foi vê-la na igreja, toda sorridente, a boca de beijos, os olhos
iluminados. Aquilo era felicidade. Então não teria mais jeito. Teria mesmo era
que se casar, como sua amiga, para sentir as mesmas sensações. Mas, se errasse
na escolha. E àquela felicidade fosse só naquele momento, uma doce ilusão.
Lembrou-se então do velho ditado de que quem não arrisca, não petisca.
Estava
resolvida. Fosse como fosse, iria correr o risco. E quem poderia saber se
alguns momentos de amor não pagaria a aventura. E passou a dar passeios mais
frequentes, examinando os possíveis candidatos.
Mas
o diabo é que sempre encontrava em cada um, uma pequena coisa que a
desagradava. Um nariz comprido ou largo, um sinal qualquer no rosto, uma
maneira de rir sem graça, fala grossa ou fina, sempre uma coisa qualquer para
desclassificação. E tinha mesmo que ter cuidado. Seria para toda a vida. Mas o
diabo é que os de boa aparência, sempre eram vazios, bichotes de cara lisa, sem
futuro. O jeito que havia era mesmo tentar um de nariz torto ou de boca
rasgada, contanto que fosse honesto e de futuro. Em todo caso, escolheria um
deles antes que a coisa se apertasse mais.
E deliberou
aproximar-se de Abelirio que, pelo menos tinha um nome aprazível. Sim, Abelirio,
solteirão, comerciante próspero, embora baixinho, nem gordo nem magro, calçando
“38” e sempre metido numa gravata riscada e um paletó bem passado. A calça, nem
se fala, de vinco aprumado e cinto de couro de jacaré, com fivela dourada.
Pelo
menos, no físico, seria dominado. E a coisa deu certo. Seu Abelirio
apaixonou-se. Não esperava, mas, na realidade, vez por outra pensava em Zenilda
e não entendia por que razão ia se conservando solteira. Fizera muito bem ter
esperado. Aliás, nem podia admirar-se, pois ele próprio conservava-se solteiro
sem uma explicação razoável. E era aí que reforçava sua confiança no destino.
Abelirio só temia uma coisa que era o porte da noiva. Com aquela estrutura maciça
à sua frente, bem que poderia ser dirigido. No entanto, teria que fazer sua autoridade
em qualquer emergência. Tinha que confiar e aguardar a realidade. Poderia ser
uma criatura dócil e compreensiva. Esperava que fosse. Nada de precipitação no
julgamento.
Por
sua vez Zenilda andava possuída de certo receio. Homem pequeno sempre era
metido a brabo. Uma solução seria deixa-lo livre, no desempenho de seu papel de
marido e administrador. Não custava confiar e dar-lhe apoio. Poderiam entrar em
bom entendimento. A casa ficaria com ela e os negócios com o marido. Mesmo com
esses temores de mandonismo, casaram-se. Certamente que nos primeiros dias era
somente troca de velhos amores, guardados. Enquanto andassem de braços dados o
bom entendimento não falharia. Mas ambos esperavam, com receio um do outro. E o
tempo foi-se indo na maior harmonia, sem a menor discordância. E foi então que
os dois se confessaram. Riram a valer e terminaram num lugar aprazível como se
estivessem comemorando a paz de espírito.
-
Imaginava-te, Zenilda, uma mulher autoritária zombando do pouco que Deus me
deu.
- E
eu, Abelirio, preocupada com tua estatura. Geralmente os homens do teu porte
são turrões. Gostam de mostrar que são valentes e rigorosos, pretendendo impor
autoridade. Teria, aliás, que evitar discordâncias, embora convicta de que
levarias a pior. Não aguentarias a força do meu braço...
-
Olha, pede a Nossa Senhora Aparecida para nunca me veres zangado. Sou baixinho,
mas tenho uma força de leão.
-
Quem, tu, que engano. Vamos fazer uma aposta. Só serei tua, quando tiveres
força para me levar para a cama. Mas vê bem para não te decepcionar.
- É
agora mesmo. Mas vai logo mudar os lençóis da cama.
E
foi sorrateiramente atrás de Zenilda. Quando ela baixou-se para pegar o lençol,
ele aproveitou-se a empurrando e segurou-a em cima da cama à força.
-
Era só isto que querias. Pois então vou te mostra à força que tenho, sem usar violência.
-
Safadinho. Traiçoeiro. Mas está valendo... Ou Abelirio, diz-me uma coisa:
nunca pensastes em te casar antes?
-
Pensei, sim, mas não havia te encontrado. As outras moças não me despertavam
nem amor nem desejos.
- E
o que foi que te atraiu em mim?
-
Precisava de uma mulher forte como tu para mostrar ao respeitável público que
Abelirio é macho mesmo. E no teu caso também, porque ficaste solteira até
agora?
-
Ora, por nada, isto é, queria encontrar um homem de tua estatura para dominá-lo,
trazê-lo a meus pés, respeitar-me e não ter o direito de olhar para outra
mulher. Se me fizeres ciúme, te esmago como quem esmaga um piolho. Exijo
fidelidade absoluta.
-
Bobagem tua. Serei fiel porque sou honesto, mas se quisesse, jamais haverias de
saber.
-
Pois então experimentas o meu faro.
-
Vamos apostar... Fazer uma experiência...
-
Mato-te por qualquer suspeita.
- O
que é isto. Não se pode nem tirar uma brincadeira. Assim também é demais.
-
Pois é, nem por brincadeira, pois poderei tomar como coisa séria. Por ciúme se
mata e se morre. E eu não quero morrer. Prefiro beber sangue!...
Abelirio
quis se levantar e sair de perto. E já perguntava a si mesmo com quem havia se
casado. Ia se afastando lentamente, quando Zenilda puxou-o para mais perto.
-
Fica aí mesmo. Vamos logo ajustar as contas. Se te enganastes, a culpa foi só
tua.
-
Mas, Zenilda!
-
Nada de Zenilda. Tens medo até de uma brincadeira inocente. Fica mais uma vez
comigo, meu bem. Ou não tens mais com que?
Abelirio
criou alma nova. O susto que tivera o
havia esfriado até a medula. Não adiantava tentar. Beijou a mulher e foi saindo
mansamente, sem olhar nem para os lados. Ele e o mundo estavam gelados. Muitos
graus abaixo de zero. A mulher compreendeu. Chamou-o de volta. Abelirio fez que
não ouvia. E ela foi atrás dele.
-
Vem cá, Abelirio. Deixa para depois, meu amorzinho, mas prepara-te se não
queres me decepcionar. E descansa que não irei mais brincar contigo. Vou fazer
um caldo quente para te dar. Depois de o tomares, veremos a reação...
- Que
reação? Se continuares com essas brincadeiras a reação será cada vez mais
negativa.
-
Não, não e não. Daqui para frente não haverá mais brincadeiras. Juro-te que
não. Passou essa fase. Era só para conhecer-te melhor, meu bem. Mas de qualquer
maneira...
Dois
meses depois Abelirio estava irreconhecível. A roupa toda perdida Havia se tornado
um graveto. A roupa cabia três ou quatro dentro. Com mais algum tempo
desapareceria.
E o
que iria fazer Zenilda só com as calças e a ceroula de Abelirio. Chamou-o comovida,
passou-lhe o braço pelo pescoço desnutrido, beijou-o nos ossos do rosto e
concedeu-lhe umas férias de trinta dias.
-
Obrigado, Zenilda. Mas quero saber se posso requerer prorrogação.
- Pode
homem, pode. Não pensei que a situação estivesse braba.
-
Que braba!!! Está é dependurada...
Em 17.9.1986
*O conto faz parte do
livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
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