quarta-feira, 16 de outubro de 2013

CAPILÉ



CAPILÉ*





João Henriques da Silva

(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)





Capilé era uma dessas figuras populares, conhecida de todos na cidade: O apelido lhe viera do vício de tomar capilé, bebida feita com casca de abacaxi, fermentadas ou de outras frutas.

            Bebia o quanto lhe dessem ou podia pagar. Não ligava para o apelido. O diabo é que nem sempre fabricavam a sua bebida predileta. Adorava o gostinho azedo, picante. Mas o importante na sua vida era apaixonar-se por alguém com quem simpatizava. Poderia ser moça ou mulher casada. Era um abilolado. Não tinha a menor noção do que fazia. Um débil mental. Por outro lado, inofensivo. Ficava tudo na conversa. Para quem não o conhecia, não passava de um degenerado de primeira marca.

            Coitado do Capilé! Cidadezinha pequena, sem atrativos, a diversão costumeira era o pobre diabo. Não tocava em bebida alcoólica, seguindo religiosamente a recomendação do padre Antonino:

 – Não toques em bebidas Capilé. Será morte certa e ser morreres poderá ir para um lugar ruim e de lá não sairás mais. O satanás anda de olho vivo e laço nas garras para pegar quem faz coisa errada.

            Capilé não gostava nem de beber água em copo. O cão poderia pensar que era bebida forte. Quando via gente bebendo saia de perto. Tinha certeza absoluta de que o diabo estava ali por perto e ele poderia, por engano, entrar no embrulho.

            Capilé não era cara que se pudesse ver sem rir. Não possuía deformações, é verdade, mas possuía uma fisionomia gaiata. Nariz achatado e curto, boca larga de mais, olhos miúdos e agateados, testa larga, queixo pontudo. Cabelo sarará, alvo e vermelho como um camarão de água doce. No conjunto era uma máscara para carnaval.

            Fazia questão de andar bem penteado e de barba feita. Dentadura sem falhas e branquinha. Afinal Capilé não era um desamparado. Família de bons recursos, não lhe deixava faltar nada.

            Quando lhe perguntavam o que fazia, a resposta vinha logo. Fazer o que. Vocês sabem que não tenho tempo para trabalhar, ora essa. As mulheres, as mulheres. Como posso ter tempo com elas atrás de mim. Agora mesmo estou sendo perseguido pela mulher do prefeito. E sabem como é não posso ser indelicado. O homem tem prestígio e pode até mandar me pegar se eu acabar com o namoro. Bonita e ciumenta. Quer que deixem todas as outras. O jeito que tenho é ir ao prefeito pedi-la em casamento. O homem já deve até estar reparando na demora:

– O Capilé de namoro firme com a minha mulher e não se decide. Falta de respeito. Qualquer hora dessas chamo-o às falas.

- A dona é bonita e ainda nova.

            Vai logo, Capilé, vai fazer o pedido. Não se deve brincar com essa gente importante.

            Capilé espalhou o boato. Quase noivo da mulher do prefeito.

            A gozação andava pelas esquinas. Alguém o aconselhou.

- Porque não arranjas outra noiva. Uma que não seja casada?

            - Podia ser, mas dona Mirtinha não irá concordar. Está mesmo arreada por Capilé e não irei fazer-lhe uma desfeita. Fosse uma gentinha qualquer, seria mais fácil. Depois não quero que o prefeito fique zangado comigo. E o que irão dizer de Capilé. Sabe o povo como é:

 – Capilé é um irresponsável.

            Cidade sem distração, não seria possível perder uma oportunidade de divertimento. Marcaram a data do pedido. O prefeito estaria esperando com os amigos em sua casa. Juntou-se a turminha da folia. Domingo às quatro horas da tarde. Capilé chegou entonado na sua melhor fatiota. Doidinho varrido, desta vez!

            Recebido com palavras e manifestações de regozijo, Capilé apertou a mão de gato e cachorro. Dona Mirtinha não apareceu. Capilé teve vontade de entrar pela casa adentro. Afinal foi convidado. Alguém falou fez elogios a Capilé, o felizardo do dia. Iria noivar com a pessoa de maior destaque da cidade. Declarou que Capilé estava ali para pedir em casamento a excelentíssima dona Mirtinha, esposa de sua excelência o prefeito.

            Foi concedida a palavra a Capilé. Era o seu grande momento. Capilé, falou e falou bonito.

            - Seu prefeito. Capilé veio aqui para pedir a sua mulher em casamento. Vosmecê pediu só a mão, eu estou pedindo toda, principalmente à parte que mais me interessa.

            - Depende da mulher, Capilé. Se ela aceitar, já está concedida. Chamou dona Mirtinha.

            - É esta mesma, Capilé?

            - Exatamente!

            - Aceita Mirtinha, o pedido do Capilé pedido de casamento?

            - Aceito, sim, mas com uma condição!

            Ele terá de ter uma casa igualzinha a esta. Mesmos cômodos mesmos móveis, tudo igual.

            - Capilé não se atordoou – “A casa será esta mesmo”. O prefeito que se mude para onde entender. É problema dele. Quem dá a mulher dá o resto. Aliás, ele já tem outra casa. Vive de cama e mesa com a dona Mariluce. Comprou casa e móveis para ela e não sai de lá. Pra que duas casas. Não é mesmo dona Mirtinha? Ficaremos aqui. A senhora conhece dona Mariluce? Nem é bom conhecer parece uma princesa. Cheia de joias, cheirando a perfumes caros, bons vestidos e é uma lindeza. Não é mesmo seu prefeito. Quem tem uma joia daquela pra que outra. Alias também posso propor uma troca. Ficarei com a casa de lá e a dona Mariluce.

            - Ponha-se fora daqui, seu cretino, mentiroso, safado. Seu canalha.

Capilé foi empurrado porta a fora, aos pontapés.

            - Olhem aí em que dá brincadeira com cretinos! Chega aqui um doido desse, a inventar mentiras e é capaz de alguém ficar pensando que é verdade.

            O povo foi saindo e Capilé já ia longe.

            - Estas vendo aí, mulher, em que resultam certas palhaçadas. Fomos bulir com doido e deu nesta.

            -Agora somos nós. Irá me explicar isto bem direitinho. Quem é essa tal de Mariluce, seu cachorrão. Antes tivesse me casado mesmo com Capilé. Vou tirar tudo a limpo. Não me irás escapar. Sou uma inocente, cheia de boa fé. Viagens, expediente na prefeitura, visitas importunas, pois sim. Tira-se isso a limpo.

            - Onde está com o teu juízo, mulher. Conversa de malucoíde. É tão idiota que me vem te pedir em casamento. Por aí podes muito bem concluir que não sabe o que diz. Para que diabo eu iria querer outra mulher, tendo uma joia como és.

            - Ora, se é uma invenção de doido, nada terás a temer. Capilé mesmo irá me mostrar o teu esconderijo. Tudo falso, muito bem. Merecerás ainda maior confiança.

            - O prefeito correu à casa da Mariluce. Contou a ocorrência.

            - Nega tudo. Diz que nem me conheces. Nunca passei pela tua porta.

            - E como ficarei. Sem dinheiro, sem freguesia. Abandonada? Deixa a outra. Manda-te para cá de uma vez por todas. Não gostas dela e também não vou muito com a cara de tua mulher.

            -Esta mais doida do que Capilé. Não te faltará nada, sinha tolinha.

            - O que me interessa mais é ser a mulher do prefeito. Isto sim. Primeira dama da cidade. Defenderei meus direitos adquiridos. Não vou cair assim. Era só mesmo o que me faltava. Sair daquela ratoeira, passar de uma ralé rapariga de ponta de rua a mulher do senhor Prefeito e perder tudo de um momento para outro, só porque tem medo da tua mulher. Ela que se amole. Queres tanto a ela para fazer aquela palhaçada. Está pensando que Capilé bota água a pinto? Já me contou várias vezes. Faz-se de doido para levar a mulher. Toma cuidado com ele, este negócio de pedir todo mundo em casamento é para ver se colhe alguma coisa. Pois é, sou a primeira dama do município e daqui ninguém me leva. Escolheste não escolhestes, pois então te arranje como podes.

            Dias depois Capilé desapareceu. Ninguém soube que direção tomou. Mariluce também sumiu. O senhor prefeito não era sopa, não. E sua mulher legítima também não. Dois problemas resolvidos ao mesmo tempo.

            Mas o pior vinha depois. Toda cidade ficou sabendo que o prefeito gastava o dinheiro da Prefeitura com uma quenga e que por isso não fazia nada. O atraso dos empregados vinha disso. E havia mais um rombo na Prefeitura. Findou perdendo o mandato. Quando não era mais nada, Capilé apareceu. Foi elogiado por ter desmascarado o bicho. Na verdade Capilé era um manhoso. Nada de doidice. Era apenas uma forma cômoda de viver, cinicamente. O ex-prefeito ameaçou-o. Iria arrancar-lhe o fígado pelas costas. Havia perdido Mariluce, a Prefeitura e, a mulher não dormira mais com ele.

            O Capilé não acreditou. Não sabia avaliar o que era um rei destronado. E a coisa se deu. Capilé amanheceu de olho vidrado e do ex-prefeito nunca mais se teve notícia.

            A morte começa, muitas vezes, com uma brincadeira...



*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

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