segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Surpresa





SURPRESA*

João Henriques da Silva

(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)



O zig-zig-zig, das máquinas de costura não parava e entrava pela noite a dentro emendando os recortes de pano na confecção de blusas, vestidos, calças, camisas e cuecas. Sem ruído das “Singer” até parecia que a vida havia parado em cassa de D. Sofia.

- Vamos, vamos, meninas, estamos cheias de encomenda. Costura, costura, enquanto vou passando a tesoura nesse monte de “cortes” de fazendas.

E Zenira e Zaira, balançavam o pé no pedal das máquinas até o cansaço ou o sono chegar.

- Agora não, meninas. Temos muitas encomendas para amanhã. Descansa-se no domingo. E um dia mudaremos de vida. Eu também já ando estremunhada de tanto fazer a mesma coisa. O esforço de hoje dará tranquilidade amanhã. Confiem em sua mãe.

- Mas, como, se não vemos sobrar nada. O que se ganha some tudo com essa vida cara de hoje.

- Já disse que confiem em mim. Enquanto trabalho, estudo um meio de aliviar essa nossa luta que parece sem fim. Quando Armando estava vivo, não nos faltava nada. Não era assim. Mas não tivemos sorte. Nem ele, nem nós. Mas vejam que depois de termos ficado sozinhas naquele desespero de vida, as coisas já se amenizaram. Imaginem se eu não contasse com vocês duas e não tivesse tido o tino de comprar estas três máquinas com o dinheiro que Armando nos deixou. Elas têm nos dado o pão de todos os dias e alguma tranquilidade. Tenho certeza que sairemos desse martírio. Quem não tem fé não se salva. Bem, vamos comer qualquer coisa e dormir. Antes do sono, porém, rezem para Armando.

- Ou mãe, e será que essa reza vale alguma coisa. A gente acha que não. Papai era tão bom que certamente deve estar no melhor lugar do céu.  Além disso, quem o levou deixando a gente só, naquele dia terrível, não vai ouvir nossas súplicas. Quem não viu que ele não podia morrer e nem nós poderíamos ficar sozinhas, vai lá ouvir nossas rezas. O importante era papai estar vivo, nos amparando, mas ninguém teve piedade de ninguém, nem sentiu a tristeza de nossas lágrimas.

Quem levou papai, deve ser nosso maior inimigo. Não pensou na falta que ele iria fazer e muito menos em tirar a vida de uma criatura tão moça ainda e tão boa que era. E agora estamos aqui sofrendo, trabalhando forçadas para sobreviver e morrendo de saudades. Ninguém nos convencerá de que alguém irá nos ouvir. Depois do golpe e da árvore tombar sem explicação, como se pode ter fé mais em nada. Temos é que virar dia e noite para arranjar o pão, como um castigo.

O padre diz que foram os desígnios de Deus. Tinha que acontecer. Acontecer por quê?

O que foi que papai fez de mal nesta vida e o que fizemos nós para tamanha provação. Não, mãe, esta não. Rezamos para satisfazer a vontade da senhora, mas quem fez isto com a gente, não merece nem uma ave-maria. Por que não viram que a senhora iria ficar só, com duas meninas para sustentar e criar. O Deus que a gente pensa que existe, não é esse Deus dos padres, indiferente e vingativo. Nem castiga, nem mata ninguém.

- Mas rezem. Será um consolo para mim.

As máquinas não paravam. As mocinhas faziam quase o impossível. Havia de substituir a falta do pai. E os meses se foram indo. Nem Zaira e nem Zenira sabia que D. Sofia escondia no maior sigilo o quanto lhe permitiam os gastos de casa. Queria fazer uma surpresa às filhas cuja juventude era sacrificada naquele monótono zig-zig das máquinas o dia inteiro, sem as diversões próprias das moças daquela idade de sonhos e ilusões sem anteverem melhoria naquela vida de pássaros engaiolados sem ter como abrir as asas para um voo por fora daquelas quatro paredes que não mudavam de cor. Já nem adiantava sonhar. D. Sofia quase sentia remorsos em guardar o seu segredo. Mas o que economizara não lhe permitia ainda dispensar a colaboração das duas. No entanto, não lhe parecia justo prolongar por mais tempo os desenganos das filhas naquele dia a dia sem perspectivas.

Correu à loja de seu Prudêncio, amigo de muitos anos. Explicou-lhe os seus planos e mostrou-lhe através de um retrato falado, a dedicação e sofrimento de Zenira e Zaira, duas meninas-moças que nem sequer tinham tempo para dormir. Pretendia libertá-las um pouco e oferecer-lhes oportunidades de tecer seus sonhos e ilusões, tão próprias daquela idade, idade do sorriso.

- Mas, afinal é somente crédito que a senhora deseja?

- Somente e até que o plano comece a dar o rendimento que espero. Até hoje não temos atendido as encomendas e deixamos de aceitar outras por inviabilidade de execução. Inicialmente, um pouco de dinheiro emprestado a juro e fornecimento de tecidos. Além das encomendas, desejamos confeccionar roupas populares para mulheres e homens. De três máquinas que possuímos, queremos passar para cinco. Já tenho acertadas cinco costureiras. Somente os cortes serão feito por nós. Os cortes, direção e a parte comercial. Tenho certeza que tudo funcionará bem.

- Ora, estou D, Sofia, à sua disposição, Infelizmente não poderei abrir mão dos juros. Sabe, vivo de negócios, mas os prazos de pagamento a senhora é quem marca, quando menos de 30 dias, não haverá juros.

Dona Sofia entrou em casa com outro semblante. Parecia um passarinho que houvesse partido os palitos da gaiola e ia dar o grande e livre voo.

- O que foi que houve mamãe?

- O que irei lhes contar. Não serão mais, dentro de poucos dias, as prisioneiras desses pedais.

Vamos montar um atelier e abrir um sistema de vedas: roupas populares, para homens e mulheres. Possibilidade de aceitar todas as encomendas que nos cheguem. Não poremos mais os pés em pedal de máquinas.

- A senhora dormiu e sonhou?

- Venham cá. Sonhei. Um sonho muito comprido, um sonho quase só para vocês.

E D. Sofia abriu a gaveta e mostrou-lhe suas economias forçadas. As meninas ficaram espantadas e sem querer acreditar.

- E por que mamãe não deixou a gente sonhar com a senhora. Teríamos redobrado nosso trabalho para ajudá-la.

- Ora meninas, já era demais o que faziam. Tinha muita pena de vocês duas. Duas meninas sem um dia de lazer, sem saber o que era juventude. Sem terem sequer motivação para sonhar com as coisas boas da vida. E queria fazer-lhe uma surpresa. Quero apenas que me ajudem a dirigir e controlar. Não serão mais minhas escravas e prisioneiras. Estamos muito perto disto. Abrirei em breve as portas de nosso gaiolão. Está tudo preparado. Já disponho de cinco costureiras e crédito na loja, para comprar o que pretender. Vejam como foi bom termos sido sempre corretas. Mas não se diz nada a ninguém. O segredo é a alma do negócio. Soltaremos o foguetão no começo da festa, quando tudo estiver prontinho e funcionando. Tenham fé comigo. Mas me ajudem. Eu sem vocês duas seria igualzinha a um pássaro sem asas. Sei muito bem que estão comigo.

- Ora mãe bastaria ter contratado três costureiras. Nos duas completaríamos o quadro.

- Sei que contaria, mas quero vocês duas noutros lugares. Já fizemos demais. De sacrifício, basta.

Vinte e seis depois o atelier estava instalado e podia-se ouvir o zig-zig das cinco máquinas costurando sais, blusas e calças além de roupas internas. D. Sofia contratara mais uma costureira especializada em modelos e cortes.

A régua e a tesoura mediam e cortavam sem parar. E o zig-zig-zig das máquinas ia empurrando para frente às peças costuradas. Em seguida o ferro de brasa tirava-lhes os vincos e as dobras. Bem dobradas, passavam às mãos da freguesia. As confecções populares ou de carregação, não chegavam para as encomendas. Os matutos adoravam encontrar roupas feitas e odiavam ter que procurar alfaiate ou costureiras.

Eram necessárias mais costureiras, isto é, duas outras máquinas, as quais seriam adquiridas tão logo terminasse o pagamento das duas primeiras. A verdade é que o atelier de D. Sofia organizava-se e crescia.

As filhas não puseram mais os pés nos pedais. E tinham tempo de fazer seus passeios, ir às festas e namorar. No entanto, seguiam rigorosamente os conselhos de D. Sofia. Não deviam se apegar a namorado pobre e muito menos dar-lhe liberdade. Resguardassem a compostura. Os espertalhões e aproveitadores usavam conversa bonita e eram atrevidos. Deixassem com ela:

 - Esse não, e acabou-se a conversa. Nada de paixão à primeira vista. A escolha seria com ela. Casar para viver sacrificada era negócio para gente inexperiente e tola. Paixão e amor sem dinheiro acabam logo. Já passamos por duros momentos meninas. E agora que nos livramos das aperturas, não haverá motivo para não escolher.

Esses gaiatos que andam rua acima, rua abaixo, são uns pilantras que se fazem de bonzinhos e apaixonados só e só para tirar vantagens.

- E o Sali, mãe?

- Ora um turco interesseiro. Deve estar de olho no atelier. Seria nossa ruína.

- E o Carneiro?

- É outro. Uma peça errada da família, aliás, uma boa família. No entanto, não passa de um parasita. Só possui mesmo aquela cara lisa de pilantra. Um bom marido tem que ser como teu pai. Honesto, trabalhador e amigo. Quando estava vivo, nunca nos faltou nada. Mas gente boa dura pouco. Ficam os malandros. Sei que vocês são duas moças equilibradas e de tino perfeito. Entendem e gravam bem as coisas. Pois bem, vão aí minhas últimas palavras de mãe:

Não há nada melhor do que um bom marido como também não há nada pior que um marido ruim. Deus não poderia ter criado coisa pior. É o mesmo que botar o diabo dentro de casa para atanazar as pessoas. Ou faz da mulher uma escrava ou procura humilha-la a vida toda. É por isto que eu digo: Saibam escolher e aceitem meus conselhos. Não haverá bexiga, lepra, gafeira, nem sarna pior. Abram os olhos! Vejam a D. Marocas. Para se ver livre do bom maridinho que possuía, foi obrigada a esperar que o bicho ferrasse no sono, com a boca aberta e, amorosamente... colocou um pozinho branco chamado estriquinina que o levou a um sono eterno. Amanheceu esticado, de olho vidrado. E só assim livrou-se da peste que tinha em casa. Antes, pensou até em suicidar-se, mas desistiu. Seria burrice. Era dar gosto ao diabo. Gastou com o enterro, chorou de saudades, gritou e esperneou quando o enterro saiu, teve até um desmaio, mas livrou-se do bicho. Quer dizer que tudo isto dar trabalho. Até isto para livrasse do traste. Agora está aí viúva e com medo de novo casamento.

Quem quiser mal a alguém, basta desejar-lhe um mau casamento.

A Diluce ainda hoje sofre com o satanás que tem em casa. Já pensou até em suicidar-se, mas não teve coragem. O bicho é exigente, atrevido e quando chega bêbado em casa nem o diabo o suporta. Qualquer desses dias bota-lhe água quente nos ouvidos. A sorte da Diluce é não ter tido filhos.

- Não se preocupe mãe, pois só nos casaremos com quem à senhora aprovar. E se houver erro, tem-se o remédio da dona Marocas. Antes do casamento compra-se um frasquinho do santo remédio. Como é mesmo o nome?

- Cloridrato de estriquinina. Para marido ruim, é um santo remédio.

3.10.1986



*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”. No prelo.






























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