domingo, 3 de janeiro de 2016

NENA



NENA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

Nena, menina do interior, foi internada num colégio de freiras da capital. Menina já cheirando a moça, levava saudades da família e uma saudade doida do Atílio, seu bem querer desde a escola primária. Percebia que era um amor impossível pela desigualdade social, mas Atílio estava dentro do seu coração como o pólen dentro da flor que ainda não desabrochara.
Atílio, filho de empregada doméstica cuja origem ninguém conhecia, também morria de amores pelos olhos verdes de Nena. Não tinha a menor dúvida de que a família de Nena se escandalizaria se um dia viesse, a saber, do relacionamento dos dois. Guardava segredo de seus sentimentos e não pensava em desistir. Reconhecia que só haveria uma solução; que era tornar-se gente de bem, o que dependeria mais de si próprio do que de circunstancias imprevistas. Entrar para o Ginásio. Tocar pé no caminho. Estudar com afinco, isolar-se dos companheiros; a mãe não podia comprar-lhe os livros exigidos os quais Atílio tomava emprestados, comprava o que podia, fazia apontamentos nas aulas e por fim, a mãe teve que valer-se da patroa, pedindo-lhe adiantamentos e livros usados para que o filho pudesse acompanhar as matérias do Ginásio. Atílio percebia que era sacrifício de mais e tinha que descobrir alguma forma de ganhar qualquer coisa que o ajudasse a vencer a tarefa. Falou com o professor com quem tinha mais aproximação, contou-lhe o seu drama. Precisava estudar e não possuía meios. Queria um trabalho qualquer que facilitasse pelo menos o material didático. Livros, papel, tinta, lápis, que a mãe não lhe podia dar.
- Irei te ajudar. Fornecerei os livros e cadernos, contanto que sejas sem um bom aluno, como tem sido.
- Juro que farei o máximo para corresponder à generosidade do senhor. Nem mereço tanto. Mas um dia espero poder lhe ser útil.
Atílio não era nenhum gênio, mas o seu esforço tornava-o um aluno de boa categoria. Humilde e disciplinado, sem ambição, chegava ao fim de cada jornada com aprovações acima da média. Estava para terminar o Ginásio e teria que prosseguir só Deus saberia como.
Durante o ano não recebia cartas de Nena. A censura do Colégio e o receio de tornar conhecida o seu afeto por Atílio deixava-a ansiosa que viesse às férias para revê-lo e reafirmar que não o esquecia. Em cartas para uma ex-colega e amiga, perguntava por Atílio e mandava-lhe lembranças. Ele retribuía pela mesma via. A distância aguçava-lhe o bem que lhe devotava. Mas, diante à aproximação do curso preparatório para ingressar na faculdade, sentia-se quase perdido. Como ir viver na capital, sem dinheiro, sem emprego, só e só com a boa vontade. Falava com a mãe a respeito e pedia-lhe conselhos. E doía-lhe ver como o mundo era desigual e injusto. O filho do comerciante mais rico da cidade abandonara os estudos quando poderia freqüentar escola onde pretendesse. A vida fácil, o futuro assegurado pela fortuna do pai, deixava-o a vontade para viver como entendesse, embora desgostando os pais.
Desculpava-se dizendo que não tinha gosto pelos estudos, não conseguia aprender, apesar do esforço que fazia.
Ele, que precisava formar-se em medicina, realizar os seus sonhos, via-se sem a menor condição. Teria que ficar parado no meio do caminho e perder o que mais ambicionava na vida: Nena!
Teria facilidade de ingressar no Seminário, através das Vocações Sacerdotais, mas isso não resolveria o seu sonho de jovem pobre e desamparado.
- Ou mãe, o que é que a gente vai fazer. Estou desesperado. A cada dia que se passa, maior é minha desilusão. Até parece que seria melhor que o mundo se acabasse, a vida parasse, morresse minha ambição de ser gente.
- Paciência, Atílio. Não te aflija tanto, Deus há de nos dar uma solução. Aliás, tenho pensado só em ti e já me veio uma idéia.
- O que, mãe? Diz qual é. Coração de mãe sempre descobre as coisas.
- Iremos viver na capital. Conseguir um trabalho lá e se for possível um emprego para ganhares qualquer coisa.
- Mas como a gente chegaria até lá.
- Deus dará o jeito. Pede-se a quem tem. O patrão, a patroa, aos que têm para dar. Contarei a tua história, o teu desejo de continuar os estudos. Não é possível que não nos atendam. Saíras para um lado e eu para o outro. E deveremos cuidar disto logo.
-Mas, mãe, ter que pedir esmola?
- Não será esmola, mais uma ajuda para uma finalidade justa. Os padres não pedem para as Vocações Sacerdotais e para tanta coisa mais que nem se sabe pra que é. Não será, portanto nada demais pedir para que continue no estudo e venhas a ser um médico pra curar o povo. Muito mais útil não acha?
- É verdade, mãe, mas se vai comparar um médico com um padre que não faz geralmente outra coisa senão rezar e prometer o céu e ameaçar com o inferno coisas que nem se sabe se existem. Aliás, eles sabem muito bem que não. Mas vá lá que continuem enganando os bestas que lhe soltam dinheiro.
- Também não é necessário falares assim Atílio. Deixa que eles armem suas arapucas e vivam de tripa forra.
- Mas mãe não irá pedir ao seu vigário não, ou vai?
- Vou, o padre de nossa paróquia até parece um bom homem.
- Sabe, eu vou à casa do senhor Pedro Santino, ele é rico e dá muita coisa à Igreja.
- É melhor não ires. Ele já teve um grande desgosto com o filho que não quis estudar. Talvez seja um revoltado com estudos.
- Não tem nada, a gente tenta, não custa.
Dona Lina foi à casa do padre Josias. Contou-lhe a história comovente do filho. A continuação de seus estudos seria a salvação dos dois. Qualquer coisa que desse seria uma fortuna.
- Ora, filha, sou um padre que quase não tem onde cair vivo, pois morto se cai em qualquer parte. Já ando pedindo e ajudando as Vocações. Se ao menos o seu Atílio fosse para o Seminário, ainda poderia se dar um jeitinho em qualquer coisa, mas fora disso é impossível. E por que não mudam de idéia. Estuda medicina quem pode. Quem não pode, procura um trabalho para continuar vivendo. Não é só gente formada que vive. Um emprego de balcão, na Prefeitura, na roça.
Dona Lina saiu desapontada. E se todos dissessem a mesma coisa. Mas pensou no filho, reagiu e se foi de porta em porta.
- Um empreginho serve. Iremos para a capital e lá conseguirei trabalho. Não incomodarei mais. E assim ia juntando o que lhe davam. Pois não era! Já contribuíram para a Igreja e para as Vocações Sacerdotais. Não era nada de mais ajudar um rapazinho pobre que queria estudar e ser gente.
Atílio botou-se para casa do senhor Pedro Santino, receoso pelo que a mãe lhe advertira. Explicou-se humildemente. A mãe não tinha meios para mudar-se para a capital onde batalharia pelos seus estudos. Ele próprio tentaria arrumar um emprego, fosse qual fosse e que lhe desse ao menos o suficiente para a compra de livros. Tomaria livros emprestados dos colegas, contanto que chegasse onde tanto desejava.
- Olhe Atílio, Atílio mesmo, não é?
- Sim senhor.
- Pois olha, vou te ajudar, Tenho um único filho homem que me deu o desgosto e a minha mulher, de abandonar, sem motivo, os estudos; foi o maior golpe que sofremos. Não lhe faltava nada. Livros, boa pensão, dinheiro e boas roupas. Tudo inútil e inútil continua sendo. É bem certo o ditado que - Deus só dá cambito a quem não tem toucinho. Tenho mais do que precisamos. Custearemos tua viagem, pagaremos as matrículas, forneceremos os livros e todo o material escolar até que te formes. Mas há duas condições das quais não abriremos mão.
Atílio ficou preocupado.
- A primeira é que deixaremos de ti ajudar se perderes um ano para vadiagem ou negligencia. A segunda é que nos chamarás para tua formatura. Está certo?
- E o senhor acha que mereço tanto? Além disso, talvez não seja quem o senhor pensa. Sou apenas um estudante médio. É verdade que nunca tive uma reprovação. No entanto, a universidade é bem diferente. Exige muito mais. O que posso garantir é que não perderei aulas, farei um esforço supremo. O senhor não sabe o que é uma pessoa pobre como eu, sonhando com um bom futuro. O senhor me de licença que irei chamar mamãe aqui. Quero que ela ouça tanta graça alcançada e possa confirmar o que digo. Além disso, ela foi à casa do padre Josias e quem sabe, talvez ele esteja também decidido a custear meus estudos ou uma parte.
- Pode ser, sim, mas não abro mão de minha decisão. Serás tu que irás compensar o desgosto que tivemos com o nosso filho. Falarei com o padre Josias e ele abrirá a mão. Ampararão outro e outro. Tu e tua mãe tereis uma pensão. Não queremos que lhes falte boa alimentação e uma casinha para morar. Aliás, irei te levar à capital. Vai, vai chamar tua mãe. Quero falar-lhe.
Enxugando os olhos com um lencinho pobre, Atílio saiu como se caminhasse pisando em pedras preciosas.
- Sei que a senhora foi à casa do padre Josias pedir ajuda para a educação de seu filho, o Atílio. Pois bem, faça-me o favor de ir até lá, devolver-lhe tudo quanto prometeu. Da senhora e de seu filho, de agora por diante cuidaremos eu e minha mulher.
- Mas o senhor não deve fazer tanto assim. Não merecemos. Nós só temos a vida e nada a lhe oferecer, a não ser nosso trabalho e gratidão. Bastaria um auxilio para chegarmos à capital, vivemos enquanto arranjarei trabalho. Já estamos habituados à pobreza. Muitas vezes meu filho ia à escola com uma xícara de café e uma bolacha. Está habituado a esse regime. Já pedi a Deus que não me leve antes de vê-lo formado. E agora o que o senhor quer tirar do seu para educar meu filho que nem seque conhecia. É demais o que quer fazer por nós.
- Darei a ele o que meu filho não quis. Só isto. E não imagina como nos sentiremos felizes.
- Vá, vá logo à casa do padre.
- Não é preciso, não senhor. O que ele me deu foram conselhos.
– Estuda quem pode. Quem não pode procura trabalho mesmo que seja na roça. Poderia fazer qualquer coisa se ao menos o Atílio fosse para o Seminário, através das Vocações Sacerdotais. Era um padre pobre que mal podia com ele. Agradeci e saí.
- Foi melhor assim. E vamos preparar o Atílio para a viagem. A senhora também. Tem que acompanha-lo, pois não aceitaremos desculpas de que não estudou, não foi aprovado, por este ou aquele motivo.
Um ano depois, os dois tiveram que vir passar as férias em Santa Amélia e com boa aprovação e em casa do protetor Pedro Santino e a esposa fazia questão de dar ao Atílio que lhes parecia necessário a um estudante em férias. Dona Lina, cuidava da casa, da cozinha à sala de visitas. Estava habituada a servir e reconhecia que mesmo assim não pagaria nunca o amparo que estavam dando a ela e ao filho. E foi neste período que surgiu o problema. Adonias, filho do casal não se conformava em ver tanto aparato com o Atílio, enquanto as coisas para ele eram regradas.
- Agora só se vê aqui em casa esse mocinho. Procuram adivinhar os seus pensamentos e tome roupa nova, sapatos novos, dinheiro e até um relógio. Para o filho, tudo é difícil. Não tenho, não posso.
- Mas Adonias, o que é que está te faltando.
 - Nada, mas, não é tão fácil. Sempre há uma desculpa. Depois, mais tarde, vou falar com teu pai.
- Olha Adonias, não se está dando nada de mais ao Atílio. O que ele tem, estás tendo há muito tempo. Deves compreender que teu pai se mata no trabalho para educar a família. As meninas brevemente estarão formadas. Destes um desgosto enorme ao teu pai. Único filho homem largou os estudos sem uma explicação. Por isto adotamos o Atílio, para ter um filho adotivo, médico. Além disso, é um ato de nobreza, amparar um menino pobre e estudioso.
- Ele, esse Atílio tão mimado, deveria estar era na fazenda ou na casa comercial, dando duro lá e não nos bancos da faculdade como um príncipe. Vai ver em que vai dar esse amolegado todo. Deixa que ele se forme e vão ver o que fará. Gente sem formação, passar de um momento para outro a acadêmico e depois a doutor, findará dando um pontapé nos traseiros de quem o quis fazer de gente. E este não vai falhar. E é até bom para aprenderem a separar o joio do trigo.
Dona Aline falou ao marido da revolta do filho. Estavam criando cobra para ser mordidos.
- Deixa mulher, deixa. Mas não abras a mão. Ele precisa sentir que há diferença entre quem se esforça e quem não quer nada. Está certo que não estudasse. Não tinha gosto nem inclinação. Justificava-se. Mas não querer botar um prego numa barra de sabão, esta não. Não querer ajudar na fazenda, não põe os pés na loja e somente na vadiagem. Além disso, está se tornando rebelde, desaforado. Não creio que uma pessoa não tenha vocação para alguma coisa. Pois sim, não quer sela, vai para a cangalha. Um dia descobrirá a carreira. Já anda enciumado do Atílio, pelo que se vê. Poderia estar no lugar dele, embora isto não viesse impedir que contribuíssemos para a educação do Atílio. Esperemos pela a ação do tempo. Espero que tome alguma iniciativa, antes que seja tarde demais e eu tenha que tomar medidas que não desejo. Tudo tem um limite e a paciência também se esgota.
- Deixa que eu fale com ele, procuro convencê-lo do erro em que está mergulhando. Com brandura, quem sabe, despertará e tomará novos caminhos.
E mais tarde.
- Vem cá Adonias. Preciso muito falar contigo. Somente nos dois. Não é nada de sigiloso, mas prefiro que ninguém nos assista. Olha filho, não é mais nenhuma criança e até agora permaneces sem destino. Será que não acompanhas a luta do teu pai para conservar o nosso patrimônio e multiplicar nossos haveres. Creio que não estás esperando que ele ou eu desapareça para viver de uma herança que não tem uma gota do teu suor e poderá evaporar-se rápida em tuas mãos inexperientes. Considera que mais vale um pai pobre vivo do que um pai rico morto. Dinheiro tem asas ligeiras e não voa para voltar. Não queres estudar.  Talvez por falta de vocação. E se não for, o que poderás me dizer. Uma vida como esta que estás levando é perigosa demais, é assim como barquinho de papel flutuando num mar imenso, e sem leme. Não chega a porto nenhum. Por que não voltas a estudar ou não passas a ajudar teu pai. É disto que ele me fala todos os dias. Mira-te no Atílio que ele está educando só e só por querer fazer a felicidade de alguém, uma vez que só deseja fazer o bem. Quem não se destina a alguma coisa, como está sendo teu caso, o que pode esperar do futuro? Pensa bem e depois fales comigo.
- Não, mãe, pode ser neste instante. Por que o pai adotou esse tal de Atílio, que ele nem conhecia e lhe dá mais do que a mim?
- Estás sendo injusto. O que foi, por acaso, o que já te faltou. E por que reparar no que teu pai faz para educar um moço pobre e estudioso que, inclusive, é uma excelente criatura. O que está te custando, por ventura. A ti, daria muito mais, como sempre deu. No entanto, uma coisa é certa, não te assustes. Se não mudas, eu e ele teremos de tomar medidas drásticas a teu respeito. Não podemos mais admitir que continues na ociosidade, enquanto os dias nos parecem curtos para tantos afazeres. Será que não entendes isto. É ele um homem bom e justo, mas já esta se impacientando. Tuas irmãs só nos proporcionam satisfação e, agora, o Atílio, moço estudioso e educado.  Não, não baixes a cabeça, Adonias, levanta-a e olha para frente e para cima.
- Atílio, sempre Atílio!...
- Ainda será o nosso médico, verás o que é força de vontade que poderia sonhar com tudo, menos em estar no terceiro ano de medicina, de tão pobre que é.
- Médico da família. Isto nunca! Prepare minhas malas, mãe. Amanhã mesmo quero voltar aos estudos. Vou cursar medicina. Fale com papai. Veja se ele concorda e se pode me pagar também professores particular. Quero tirar todo o atraso. Fui errado até hoje. Na pior das hipóteses, irei tomar conta da fazenda. Há uma coisa ainda. Estou crivado de dívidas com coisas inúteis e não queria sair sem saudá-las. Não tenho coragem de falar com papai. Cheguei ao extremo. E o pior é que dívidas são sujas. Jogo e mulheres. Ele não vai aceitar. Proponha uma saída. Ele retirara dez por cento da mesada que me der.
- E qual é a garantia que me nos oferece de realmente vais estudar. Não queremos ter outras decepções.
- Somente minha palavra, caso perca um ano, nunca mais voltarei. E a mesada apenas enquanto não conseguir um trabalho honesto. Esqueçam o Adonias que fui, e da qual tanto me envergonho. Há mais de dois meses que a consciência me dói, sem encontrar uma saída. Não suporto mais cobranças e até ameaças. Estou como quem se despencou dento de uma poça e não pode sair e nem tem por quem gritar. E o pior desta situação infame é não ter como fazer cofiarem em mim. Pensei em várias soluções extremas. Fugir para sempre e até me apagar como uma lamparina sem uma gota de azeite. Um drama. E o pior é o que me passam na cara. – Não te envergonhas. Filho de um homem tão trabalhador e honesto e não passa de um pulha. Preferimos perder tudo a dar desgosto a teu pai. Vai trabalhar vagabundo. Bem que dizem que toda família tem um Temoteo... Já poderias ser um doutor de vergonha, um homem de bem e não passa de um desavergonhado. Tenho sofrido o diabo.
- E por que não me falastes antes?
- Perdi a coragem. Como iriam me dá crédito. Desorientado, acovardado e humilhado, como já falei, tinha vergonha de revelar minha verdadeira situação. Não merecia nada.
- E por que não fostes trabalhar com teu pai?
- Não sei. Andava perdido, com medo de tudo. Mas já havia pensado nisto. Mas a senhora não sabe o que é um viciado, sem força de vontade. No entanto, tudo isto chegou ao fim neste momento. Não serei mais motivo pra desgosto. E estou enxergando que era tão fácil uma reabilitação. Dependia somente de querer e de mim próprio. E foi esse tal de Atílio que me pôs no lugar onde deveria estar. Ele poderia ter sido ou ser um marginal, pobre, desprotegido de certamente até muitas vezes faminto, nunca se entregou. Pelo contrário saiu a pedir honestamente, para estudar pensando na felicidade da mãe.
E eu, com tudo na mão, debandei-me. E não culpo ninguém. Seria injusto. E confesso. Cheguei ao ponto de desiludir-me de pai, desiludir-me de mãe, que cheios de dinheiros não me ajudavam a gozar a vida como bem entendesse. Já pensou. Enquanto isso abria as duas mãos para um molecote que tinha a pretensões de ser médico. Agora é que estou percebendo o meu erro. Perdi o meu crédito, perdi a moral, não tenho mais ambiente e o senhor Atílio, um pelado, sabia se dominar e iria se formar, inclusive para ser médico da família. Como é que pude ser tão teimoso, tão fraco, tão indeciso e tão injusto. Quanto desgosto dei a papai, a senhora, as minhas irmãs. E dei desgostos porque quis. Fui um irresponsável. Mais só até hoje.
Adonias foi à escola e com todas as suas contas pagas. Era mais um crédito de confiança que o pai lhe dava e seria o último.
Atílio, formado, dedicou-se a clinica geral. No interior, com pouquíssimos médicos, teria que ser assim. Sua dedicação ao casal que completara os seus estudos, era igual ao que dava a sua mãe. Honesto e estudioso, com uma boa dose de sorte, dentro de pouco tempo estava com uma clientela que lhe dava mais do que esperava. Morando com sua santa mamãe na mesma casa do consultório, dava-lhe carinho e coisas até que ela reclamava o desperdício. E não era para fazer mais nada, além da direção da casa. Não deveria por as mãos em qualquer trabalho pesado ou fatigante.
– Agora é comigo, mamãe. Vá descansar e viver tranqüila. Alguma coisa mais forçada só se for para ajudar em casa de nossos protetores. Aí, então, não teremos medidas. Por mais que nossa vida se alongue, o tempo será curto para corresponder sua generosidade. Seria eu, hoje, um empregadinho de prefeitura ou de balcão, se não houvéssemos sido amparados.
- Tudo isto, Atílio, porque sempre fostes um menino bom, estudioso e ótimo filho. Fiz por ti, tudo quanto pude. E é bem certo aquele ditado. Quando Deus tarda já vem a caminho. Mas vem quando a pessoa merece. Era o teu caso. E espero que sejas sempre assim.
O tempo foi indo sem olhar para traz, como é costume. Não se incomoda com quem vai ou com quem fica. Nós é que nos preocupamos com ele, contando horas e minutos. Adonias contava até os segundos para se formar. Estava no último ano de medicina e queria entrar em casa com o seu diploma sem uma reprovação. Somente assim poderia compensar os desgostos que dera a família, e pensava sempre como se podia ser ruim, quando era muito mais fácil ser bom. E o que mais lhe doía não era os seus erros passados, mas, naquela última fase atormentado, o sentir-se desamparado e com medo. Entrar em casa como uma pessoa estranha e indesejável. Mesmo quando ninguém o recriminava, era mortal o silêncio dos pais e das irmãs. Considerava-se só em sua própria casa, junto à sua própria família. Não por culpa deles, mas exclusivamente por culpa sua. Chegara a ter ódio de Atílio que o pai educava, gastando o que poderia lhe dar a mais para suas extravagâncias.
A irmã mais nova havia lhe comunicado que iria ser recebido com festividades. Adonias recusou. Não merecia. Queria, era que com sua chegada se prestasse uma homenagem ao Dr.Atílio. Este sim merecia. Não era nenhuma gloria estudar com tanto dinheiro, sem lhe faltar o que desejasse. Além disso, não havia por bastante tempo, sido em bom filho. Arrependera-se, mas fora uma espécie de ovelha negra da família. Não queria outra coisa se não uma vida nova, em paz com a família e com sua consciência.
Dr. Atílio, sim, que até o dia de entrar para a universidade, estudara sem livros, sem café, muitas vezes e apenas com uma comidinha escassa e barata, sem um tostão no bolso. Isto sim era merecimento. Mas ele, um doutor à custa de muitos desgostos iniciais, com a bolsa recheada e sem a preocupação constante da família, com receio de que voltasse ao que havia sido! O que lhe cumpria era prestar uma homenagem aos pais quando dispusesse de meios adquiridos com sua medicina e com o seu próprio suor. E sua recepção foi feita justamente como ele desejava. E ele próprio fez a saudação ao Dr. Atílio e a sua milagrosa mamãe. Àquela que passava duras privações para comprar, um livro, um caderno, pagara a escola. Estudar como ele, sem pensar noutra coisa além do estudo, havia sido um passeio sobre as asas douradas das aves do paraíso. Atílio, sim, merecia ser homenageado, pela sua abnegação e pelos sacrifícios que vivera. E ao seu exemplo devia sua recuperação, o abandono dos caminhos cruzados para ser o filho com que os seus pais sonhavam.
Adonias abriu consultório dentro de sua especialidade, pediatria. Atílio mandava ao seu consultório todas as crianças que apareciam em seu consultório. E Adonias sentiu ainda mais a grandeza de espírito de Atílio, criatura sem ambição e dedicado a seus pais como ele não havia sido. E como era diferente o comportamento das pessoas. Por mais que se esforçasse não conseguia ver as pessoas igualmente ao seu colega.
Talvez fosse azar seu. Teria que prestar atenção à conduta de Atílio para descobrir-lhe o segredo daquela sua cordialidade. Pois era. Atílio era permanentemente uma pessoa querida e atraente. E então por que ele também não poderia ser assim. E, terminou notando que não era nada demais. Apenas sua simplicidade, a brandura em se comunicar com alguém, o desprendimento, em fim, uma boa educação. Usava sempre as palavras, por favor, e não se lamentava de algo que lhe acontecesse, como se tudo fosse absolutamente natural. Ele, não, era um tanto arrogante, imperioso, achava que todo mundo lhe devia obediência e homenagens. Era de seu feitio, mas percebia que estava inteiramente errado. Não era digno de coisa nenhuma. Por outro lado, Atílio mantinha-se sempre de fisionomia alegre, enquanto que ele conservava-se fechado e quando ria parecia riso forçado e um favor que fazia a alguém. Em muitas ocasiões até parecia que estava com raiva! E passara a perceber que o pai, a mãe, as irmãs eram do mesmo feitio de Atílio. E então, porque saia tão vaidoso, tão merecido e tão besta. Convencera-se, pois, que para viver bem e estimado, teria que mudar radicalmente, o que afinal de contas pouco custaria. Era só convencer-se que não era melhor, nem mais inteligente e necessário que os outros. Ora favas, como poderia ter sido tão idiota até então. Havia de tirar o rei da barriga e convencer-se que, inclusive, ninguém precisa dele. Poderia até sumir, ou morrer que não faria falta nem aos gatos. Talvez até tivesse quem desse graças a Deus, pois não passava de um arrogante, antipático. E na verdade tudo isto prejudicava até sua profissão de médico. E baixou a crista quando reconhecera que ninguém lhe dava a menor importância e que até as mulheres, apesar de filho de papai rico, não se agradavam dele. Via-o, como se fosse apenas uma “coisa”.
- Já alertastes Pedro, como o Adonias está mudado. Falando manso, rizinho, mais comunicativo.
- Já, mas poderia ser uma fase passageira. No entanto, pelo que se vê, deixou à caturrice, o orgulho, aquela besteira de querer mandar e desmandar. E sabes o que foi? O exemplo de Atílio, querido por todos e sem achar que faz as coisas, por favor. Já reparastes mulher, na clientela dos dois. Um consultório cheio, o outro, apesar de entender bem de sua especialidade, pouco procurado. Se continuar mudado, verás que a diferença entre os dois irá diminuindo. Um médico de cara seca não cura ninguém. Oitenta por cento das curas provem da confiança que se tem no médico. Cura até com água do pote. Basta entrar no consultório ou o médico bater à porta já o paciente sente-se muito melhorado. Por isto o Atílio não chega para o recado. E o menino vai ficar rico logo e sem fazer cobranças exageradas. Quando a pessoa não pode pagar é mesmo que já estar pago, mas leva-lhe em casa um presentinho qualquer, que, afinal ele recusa, mas deixam à força. Num desses dias uma cliente levou-lhe até um gatinho mourisco e outra uma rolinha fogo-pagou.
- O Senhor não quer, mas a gente deixa para dona Lina.
- Está bem, está bem. A gente vai gostar muito.
Mas onde andava Nena. Esperava que Atílio, a mesma criatura humilde, tomasse a iniciativa de pedi-la.
No entanto, Atílio, apesar de sua paixão, tinha receio de os pais de Nena ainda o vissem como aquele menino pobre, de classe abaixo do merecimento da filha e que estudara por caridade. O fato de estar diplomado e com sua clínica movimentada não lhe apagaria a origem. Como iria permitir o casamento de Nena com o filho de uma serviçal. É isso mesmo, seria e seria minha maior decepção se recebesse uma recusa.
Ela bem reconhecia o pai, homem que convivia exclusivamente com famílias selecionadas e tradicionais da cidade.
- Mas Atílio não podemos continuar assim, Já não sou uma criatura para viver nesta espera indefinida. Morrendo de amores por ti. Até hoje mantemos em segredo nossa amizade. Vamos, pois nos declarar e esperar a reação. Não quero me prevalecer da maior idade e seria sumamente desagradável contrariar minha família, tomando uma atitude inesperada. É necessário que nos vejam juntos, que compreendam que somos dois namorados apaixonados, que meu pai saiba disso e me peça explicações. Então saberei dá-las. Mas de antemão devo te dizer, minha família não irá se opor. O que poderia desejar mais do que ver sua filha casada contigo. E a ocasião mais própria será a festa de aniversário de minha amiga Abigail. Ali dançarei apenas contigo, estarei ostensivamente sempre ao teu lado. Certo dia ouvi sem querer, a conversa de papai e mamãe.
- Não achas um tanto esquisito uma moça como é a Nena, não tem ainda um namorado, não fala em se casar. Será que já passou por alguma grande desilusão?
- Francamente, sou mulher e sempre me preocupei com isso. Todavia jamais lhe falei a respeito. Mas também não dá sinal de interesse por alguém. Talvez seja necessário sonda-la, lhe despertar atenção para o casamento, ideal de todas as moças.
Mas, antes disso e depois da festa de aniversário, os comentários se atropelavam em todas as rodas sociais.
- A solteirona dos Santiagos esta procurando conquistar o Dr. Atílio. É uma espertinha. Ela já está com vinte e três anos e ele não vai querer moça velha. Espia só se vai querer.
- Vai muito, com tantas meninas novinhas de olho nele, dando sopa.
- Ora, Amélia, coco velho é que dar azeite. Vai nessa. Estão é de namoro serrado.
- É, mas o seu Santiago vai consentir mesmo! Um filho de gentinha, do jeito que aquilo é orgulhoso.
- Mas é doutor.
- Vai nesta conversa de doutor ele sempre diz que mulher se escolhe pela raça.
- Isso foi no passado. Já deve estar mudado, vendo a filha marchando para o barricão, o pavor de todas as moças.
- Está ai Santiago, quando menos se esperava, a Nena descobriu carreira.  Pelo que todos dizem está de namoro com o Dr. Atílio, um ótimo partido para nossa Nena.
- Achas, mulher! Um filho de gentinha.
- Foi. Hoje é gentão, formado, bom médico, excelente educação e a mãe, uma perfeita senhora dona de casa. Pensa bem, para não desiludires a menina. Não creio que aqui apareça um partido melhor. Estas tuas ojerizas contra gente pobre, de raça inferior deve acabar. Há tanta gente importante que não vale uma bolacha quebrada e com as quais convives. Uns canalhas. E deves ver que o Dr. Atílio sempre foi um homem desde menino. Também nunca se ouviu falar mal da mãe dele. Sacrificou-se até a última hora para educar o filho. Queres um exemplo melhor de gente boa!
- Então deixo contigo. Mas, vem cá. Quem te disse que o doutorzinho quer mesmo se casar com a Nena. Namorozinho de festa, passageiro, para passar o tempo. Imagina se sonhas tanto e ele nem se dá por achado. Cabra que estudou na capital talvez um manhoso, aproveitador. Não faça insinuações a tua filha. Deixa que ela decida para não nos culpar mais tarde.
- Quando me casei contigo, a conversa era a mesma. O povo se espantava em saber que a filhinha do doutor Juiz ia se casar com um rapazote sem diploma e diziam que era só atração de teu dinheiro, isto é, de teu pai. E não vivemos até agora tão bem.
- É mais deixa que ela escolha.
E as duas, sozinhas, desconfiadas uma com a outra.
- Então, Nena, falam por aí que estás de namoro com o Dr. Atílio. É verdade, menina?
- É, sim e queremos nos casar. No entanto, não sabemos como receberão a notícia. Isto é um namoro do tempo da escola primária. Guardamos segredo até hoje. Mas chegou a vez. Esperamos que nos aceitem. E há uma coisa, se não me casar com ele, ficarei solteirona e sacrificada para o resto dos meus dias. Atílio tem receio de que não o aceitem. Espera que se pronunciem.
- Vou falar a sério com teu pai. E tentar desmanchar-lhe as rusgas. Sabe que ele dá muita importância a essa velha história de raça.
- Ah! Se for só por isto, juro à senhora que a coisa vai mudar. Já estou passando do tempo de casar. Depois dos trinta a gente começa a encruar e ninguém quer mais. E já disse à senhora que esse bem querer vem dos tempos de menina.
No dia seguinte já foi o pai que foi se ter com a Nena.
- Mas minha filha, como é que me guardas tamanho segredo desde o tempo da escola. E o pior é que nunca percebemos. És muito espertinha não é?
- Nada de esperta. Respeitava os seus princípios e esperava. E foi bom assim. Agora, parece-me que desapareceram as razões de manter sigilo. E queremos o seu consentimento.
Santiago olhou bem nos olhos de Nena para medir bem sua decisão.
- Olha, antes de te responder, responde-me com toda sinceridade.
- Não será que escolher o Dr. Atílio por alguma desilusão tua, como uma taboa de salvação? Pensa bem!
- Que nada, Um espera pelo outro desde aqueles tempos. O senhor sabe o que é devoção, pois bem, adoramos um ao outro.
- Mas, isto não será uma ilusão gerada na infância? Pelo que sei, nunca procurastes um outro alguém. Enfiastes a idéia na cabecinha de menina e ela ficou incrustada. Seria bom que conhecestes melhor a vida para não entrar em desilusão.
- Olha pai, mesmo que não tivesse vindo do tempo de menina, teria nascido agora.
- Pois sim. Tem nossa aprovação. E desejo que sejas feliz.
Dentro de pouco tempo o padre benzia as mãos dos dois e o resto...
- Está ai em que deu minha comadre. A veiota desencalhou...
- Já te falei que caco velho é que dar azeite...
- Mas às vezes, rancifica... Vamos pra à frente.
Não há mais pressa. O noivado os aproximaria mais e não queria dispensar a melhor fase do casamento. – O noivando – cheio das mais belas ilusões, de promessas e sonhos. E reviveram todo o passado, a começar da escola primária. Quando se iniciou o inocente bem querer dos dois. E nesse tempo a atração era simplesmente os olhos e os sorrisos.
Durante o noivado Atílio chamou atenção para dois aspectos do casamento: O primeiro consistia em Nena não esquecer que ela iria ter uma sogra com quem iria conviver e que embora fosse uma criatura dócil e extremamente boa, era quem lhe dirigia a casa e não pretendia tirar-lhe de certa forma o comando. Se isto acontecesse seria a mesma coisa que tirar do altar a Santa de sua devoção. E o outro era problema de ciúme. Nena não deveria esquecer que ele mantinha duas enfermeiras em seu consultório, moças de boa aparência e que muitas vezes ficariam a sós no consultório e não poderia despensa-las. Deveria entender. Era comum falar-se e consultar-se sobre certo relacionamento amoroso entre médico e enfermeiras. Os maledicentes não respeitam honra de ninguém. No entanto, poderia ficar certa de que havia total respeito em seu consultório. Suas atendentes enfermeiras eram moças de boa aparência, alegres, comunicativas e relativamente jovens. Sempre dão o que falar aos línguas de trapo.
- Oh, quanto a isto não te preocupes. Conheço-te desde menino de escola e minha formação não chegaria a tanto. Respeitarei integralmente as exigências de tua profissão. E depois, Atílio, não creio que tenhas a coragem de me trair.
- E se o diabo atentasse?
- Sabes de uma coisa, não acredito em diabo e se existir não tenta ninguém. Tem sido até hoje o bode expiatório de tudo que não presta. O sujeito não presta, é mesmo um safadório e inventa essa história de tentação. Convém lembrar-te também que casamento é uma faca de dois gumes. Não suportaria que viesses a ter ciúmes de mim. E quanto a tua mãe será também minha. E sei que irei também adora-la.
Nena casou-se depois de oito meses de noivado.
Depois de muitos anos de casados, ainda persistia o namoro do tempo de meninos. Só com uma profunda diferença. O casal possuía três filhos, adoráveis. Não viveram mais somente de olhares e sorrisos...
Em... de fevereiro de 1986
Campina Grande.
*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.













O BODEGUEIRO




O BODEGUEIRO*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

Beira da estrada, um povoadozinho de nada, com uma capelinha do tamanho de uma caixa de fósforos e lá bem afastado, um casebre miserável onde morava a Biá, chegada de fora, sem outro emprego além da vadiagem. E era mesmo uma mulata vadia, querida de todo mundo. Era, aliás, o entretimento da turma local e de quem por ali passava. O bodegueiro – Seu Atílio – solteiro, com poucos fios de barba na cara, era outro forasteiro. Chegara ali vendendo missangas num bauzinho e resolvera estabelecer-se. Era um da freguesia da Biá. Só que lhe pagava com mercadorias da bodega. Dinheiro, nunca! Dinheiro que entrava era guardado religiosamente e só saia para a compra de mercadorias ou para necessidades inadiáveis. Também não vendia fiado. Podia chorar. – Vai da um jeitinho. Toma emprestado. Vendo barato. Se vender fiado não poderei comprar mais nada e a bodega fecha. Aí então não terão a quem comprar.
E naqueles tempos corriam moedas de prata. Essas não saiam mais do bisaco. Já era uma mania juntar moedas de prata. Disso, no entanto, não dava sinal a ninguém. E ensinava que aquela qualidade de dinheiro iria sair de circulação e que as moedinhas que arranjava levavam para trocar imediatamente na cidade. Assim, quem as possuía procurava delas se desfazer. - Só recebo isso porque tenho onde trocar... Pior ainda essas moedas antigas do tempo do Império. E ia, assim, abiscoitando a prata que circulava. Com o tempo correu a noticia de que tudo aquilo era velhacaria. As pratas estavam valendo bem mais do que o valor das moedas. E ninguém lhe levava mais uma prata, especialmente do tipo “pau nas costas”. Quem despertou atenção fora um sujeito que, de passagem, dormira com a Biá e andava comprando coisas antigas. Bicho do oco do mundo, trapaceiro, tinha certeza, certíssima de que seu Atílio estava cheio de moedas de prata. Era uma mina. E foi à bodega procurando antiguidades, inclusive moedas velhas, ouro, prata, níquel e cobre. Pagava bem.
- Só tenho mesmo moedas de cobre. Vinténs, patacas e dobrões. É o que tenho para vender. Quando recebo uma pratinha corro logo à cidade e troco. Um arrasado da minha marca pode lá juntar dinheiro...
- O senhor sabe que é um perigo guardar prata, e ouro. Se os ladrões sabem, fazem logo um assalto e podem até matar para roubar.
- Mas se não tenho nenhuma?
- Basta o boato, meu velho. Tenha ou não, assaltam e ou entrega ou morrer. Tenha cuidado.
E o espertalhão desapareceu. No entanto, seu Atílio ficou com uma pulga atrás da orelha. E como também não era bobo, preveniu-se. Achava provável o assalto e o assaltante seria o comprador de bugigangas. O cabra não tinha cara de boa gente. Falou com a Biá:
- Olha Biá, aquele sujeito que dormiu contigo a semana passada, comprador de objetos antigos disse-me que iria voltar. Vou te pedir uma coisa. Quando ele chegar me avisa. É provável que chegue à noite. Tenho umas moedas para vender que ele me pediu para juntar. Mas não diga nada a ele. Além de minha velha amizade te darei uma recompensa. Mereces. Mas não digas nada, nada mesmo. Manda um menino me avisar. Não te esqueças. Assim que chegar e disfarçadamente.
- Deixe com sua nega...
- Ainda iremos morar juntos. Queres?
- Por que não fala sério?
Atílio armou sua arapuca. Tinha certeza de que seria assaltado. Mas suas pratas ninguém levaria. Era toda sua fortuna.
Mas de três semanas depois, chega o recado da Biá.
- O homem chegou!
Atílio fez os últimos preparativos e esperou. Fechara a porta mais cedo e ocultara-se fora de casa com a espingarda cheia até os graneás. Uma bala de rolimã misturado com chumbo grosso e cabeças de prego.
Já estava enfadado de esperar por trás da moita. Já mais de meia noite, o cabra chegou. Chamou, bateu à porta da frente e depois na dos fundos. Nenhuma resposta.
Com toda certeza o Atílio estava com medo e escondido debaixo da cama. Tinha cara de moleirão. Havia de pegar o frouxo e obriga-lhe a entregar a prataria. Não tinha vindo para perder o salto. Resolveu, então, derrubar a porta ou arromba-la sem fazer ruído. Puxou um ferro e forçou para deslocar a fechadura. A porta cedeu e ia entrar cauteloso quando ouviu o tiro. Caiu de bruços, estrebuchou e veio o silencio. Atílio carregou a espingarda e foi indo cauteloso. Poderia ser um manhoso e o estar esperando. Mas não era, o cabra estava de olho vidrado e as moedas de prata lá no seu cantinho, Chamou gente para testemunhar o assalto, com a porta rebentada, Um revolver e uma faca na cintura do cabra, Fizeram o enterro e nunca apareceu alguém para reclamar o defunto.
- Pensava que eu estava cheinho de moedas de prata. Ia morrer para descobrir o que não tenho. Coitado de mim. Tinha até graça, com uma bodega mixa dessa, juntar dinheiro.
E seu Atílio continuou juntando suas pratinhas.
Biá, um dia perguntou-lhe pela promessa de morar com ela.
- Podia ir. Era sozinho e não tinha quem lhe fizesse as coisas. E depois, era tão ruim viver só.
Biá mudou-se. O pretexto de mudar de vida e ser cozinheira de seu Atílio. As pratas foram crescendo. Seu Atílio vendeu a bodega. Iria mudar de ramo. E quando menos se esperava desapareceram os dois e jamais se tive notícia. Atílio i Biá, estavam longe, na cidade de Areia, lá no cocuruto da Serra da Borborema, com casa comercial aberta, Dinheiro das pratas. Biá era sua legítima mulher. E nunca lhe pediam comprovação. Dona Biá era ouvida e cheirada. Também minguem era mais amiga e prestativa. Seu Atílio, nem se fala. Falavam dele como se fosse um filho da terra. Não falava em politica e nem discutia religião. Péssimas coisas para um comerciante. Biá, nunca mais foi uma moça triste. Dona Biá...

*O conto paz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.



sábado, 2 de janeiro de 2016

BOI VELHO



BOI VELHO

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


            A fazenda Boi Velho abrangia uma área que se distendia para além da crista da serra das barrigudas. Toda essa enorme extensão de terras pouco cultivadas pertencia a uma única família, a família Torres, que nem sequer avaliava o que possuía. A casa grande da fazenda, de quatro águas como se dizia naqueles tempos; localizava-se no meio das caatingas donde se avistava o lombo da serra azulada no horizonte. Cheia de portas e janelas, com um mirante ao lado, dava-lhe certa imponência e de lá se divisava a distância a torre da igreja do povoado Salgado. Na várzea do Icó onde as elevações das margens se avizinhavam, lá estava o açude, onde águas represadas pareciam um grande lago espelhado no meio das caatingas. Ali bebiam os gados e faziam-se as pescarias temporárias ou quando se desejava fritar alguns piaus ou curimatãs. Pouco se cuidava de agricultura propriamente do fazendeiro. As lavras ou roças pertenciam aos moradores distribuídos pela propriedade e, muitos deles encarregados da defesa da casa e do patrimônio. O coronel Torres, sempre acompanhado, percorria constantemente os vastos campos,               montado num de seus possantes e treinados cavalos de sela. Já sabia onde pastavam os gados nas diversas fases do ano. Durante o período chuvoso, a gadaria detinha-se nas pastagens dos tabuleiros e durante o período seco espalhava-se pelas serras ou pelas quebradas da serra das Barrigudas. Dificilmente uma seca impunha a queima de “espinhos” para refrigerar os rebanhos.
 A fazenda Boi Velho criara fama na região. Não se entrava ali sem conhecimento do proprietário, para qualquer diligência, mesmo a policia. Aliás, em qualquer circunstância o coronel Torres ditava as regras do jogo. Ele mesmo mandava ou não a pessoa infratora se entregar.
            Bastaria ser avisado. Havia respeito e homens de bem.
            O casal Torres e seus três filhos constituíam um exemplo de família. Todos os filhos estudaram em Cajazeiras, a terra do padre Rolim. Ali só se discutia em termos de família, sem amargor e sem egoísmo. Antonio Torres, o do meio, rapagão rígido e alegre, tinha uma boa pontinha de orgulho de ser Torres. Não pelos haveres da família, mas pela consideração que mereciam.
 Em Boi Velho não se praticava arbitrariedade e se amparava os injustiçados. O coronel Torres sabia distinguir coragem de valentia. Arruaceiro e ladrão não botavam os pés ou esquentavam o assento nos seus domínios. Também não tolerava amancebado, nem se bulia impunemente com a filha de ninguém.
– Quer mulher, que se case!
 Era o lema. E ninguém se atrevia a desobedecer.
Com duas filhas moças dentro de casa, dona Angélica vivia preocupada. Moça era para se casar e no meio daqueles tabuleiros e pés de serra sertanejos tudo lhe parecia difícil. Uma visita ou outra de tempos em tempos não ofereciam oportunidades ao surgimento de afeições que pudessem conduzir a um noivado. E mais ainda, dada à condição social da família, muitos rapazes não procuravam se aproximar. E seria, talvez, entre esses moços simples, onde estariam os melhores partidos para suas filhas.
Dona Angélica desejava mudar-se para uma boa cidade, com o pensamento voltado unicamente para suas filhas moças. Gostava da vida tranqüila da fazenda, mas não lhe parecia justo manter as meninas, como ela chamava, naquele internato da roça. Falou com o Sr. Torres que não concordou com a idéia. Iria sim fazer passeios mais demorado, assistir festas, dar às filhas as oportunidades que foram sugeridas. Não seria fácil, a ele, adaptar-se ao ambiente das cidades, fazer novo relacionamento; em fim mudar completamente seus hábitos tradicionais de homem do campo. O seu meio era aquele, com os seus compadres, suas comadres, seus vaqueiros, o açude, as pescarias, os gados, as casas e as famílias dos moradores. Até mesmo a passarada que habitava o velho pomar de mangueiras, cajueiros, goiabeiras e coqueiros. Iria lhe fazer imensa falta. São pequenas coisas que se grudam ao coração das pessoas e não podem se despregar sem uma mutilação sentimental. Reconhecia que as filhas exigiam um ambiente social bem diferente. Mas sentia-se sem condição de acompanha-las na mudança.
Instalaria casa na cidade próxima, isto sim, e lá habitariam mulher e filhas, se assim o desejassem. E a iniciativa vingou. Ele mesmo passaria na cidade, apenas os dias de finais de semana. Depois, quem sabe, poderia até acomodar-se.
- Toma conta de tuas filhas.
O coronel Torres mudou-se em definitivo para a cidade. Não perdia missa.
- Olha estás muito misseiro. Não eras assim de certo tempo para cá. Será que está acontecendo alguma coisa. Abre teus olhos. Se te pego bicho, arranco-te o fígado e dou aos gatos.
- Vou por pura fé, Angélica.
- Em todo caso vou te prestar mais atenção. Há muita mulherzinha saçaricada por aí. E está historia de te mudares para cá pode ter água no bico.
- Em minha idade, Angélica?
- Para safadeza não há idade. E há tanto velhote enxerido. E logo tu, criado e mantido com leite puro e carne de sol sertaneja. Além disto, tenho notado que me andas de bigode bem aparadinho, cabelos bem penteado, gravata nova e vistosa. Vou findar amassando tuas roupas e escondendo as loções e brilhantinas.
- Que bobagem, Angélica. São exigências, da sociedade. Como queres que eu ande?
- Com vergonha nessa cara de pilantra.
- Está certo. Entra pro quarto.
- Há esta hora?
- Toda hora é hora para rezar...
            A cidadezinha teve assunto por vários dias. A família Torres mudara-se para a cidade. Comprara a casa grande de Seu Abílio, a mais importante moradia do lugar. Espaçosa, alta, cercada de varandas e um quintal que parecia um sítio.
            - É isto mesmo, cheio das granas, faz o que quer. Seu Abílio está de bolso apipado. Velho de sorte. Iria morrer dentro daquele convento e sem dinheiro para o enterro. Cada um tem o seu dia.
            A mansão, toda pintada de róseo, por fora, tomara logo outro aspecto. Tinha-se a impressão de que estava novinha em folha. A rapaziada agitou-se, não com a renovação, mas com as duas moças que frequentemente desfilava pelas varandas ou ficavam nas cadeiras de balanço das alpendradas, como dois frutos que deveriam ser colhidas antes da maturação. Não eram modelos de beleza, mas tinha o todo agradável, uma simpatia dessas simpatias de sertanejas sorridentes e atrativas. Ademais, cheiravam a moças ricas. Como eram de esperar não faltaram visitas e mais visitas. Com pouco tempo estava formado o novo ambiente social para uma desforra de tantos anos de recolhimento na roça.
            Não tardaram as serestas, fossem ou não noites de luar, à exceção dos dias em que o coronel Torres estava em casa.
Lia e Lina estava de espírito renovado.
            Pensavam no dia do aniversário das duas, gêmeas que eram. Se na fazenda a comemoração era singela, com alguns doces e abraços, ali na cidade sonhavam com uma festividade bem diferente, inclusive com muitos convidados e uma dança de pegar o sol com a mão. Quanto do restante, já se sabia o que desejavam. Mas, nada iria acontecer se o papai não consentisse o que seria pouco provável. No sábado, dia de feira, Torres deveria chegar. Quem, no entanto teria coragem para tocar no assunto. Apenas dona Angélica poderia sugerir-lhe, sem, todavia, falar em nome dos filhos e como se elas ignorassem o que pretendia fazer.
- Torres, deve está lembrado que as meninas aniversariam no próximo dia 18 de março. Até hoje não festejamos o seu aniversário como elas merecem. Sabes também que aqui na cidade têm os olhos em cima da família Torres. E se chegarem, a saber, que deixamos de festejar o aniversário das duas, iria com certeza nos censurar. Elas ficariam muito felizes se lhes prestássemos essa homenagem.
- Concordo contigo, Angélica, mas conheço pouca gente daqui e temo desagradar alguns que, por acaso, não sejam convidados. Até mesmo pessoas de destaque social.
- Por isto não. Eu me encarregaria dos convites. Já tenho algumas amigas entre casadas e moças, o que facilitará os convites. É necessário também que te tornes mais popular. Uma festa simples, mas, que agrade a todos. Naturalmente as despesas com jantar, e bebidas e arranjos não serão desprezíveis, no entanto, também não serão exageradas. Faremos o máximo de economias. O bolo de aniversário sabe bem que eu e as meninas o faremos. Igualmente bolinhos, pastéis e impadas.
Posso comunicar às meninas?
- Pensa bem. Vão ter muito trabalho e eu não tenho jeito para essas coisas. Além disto, não podemos decepcionar os convidados.
- Há mais um detalhe. Aqui no interior uma festa de aniversario sem baile, não se coaduna com os hábitos do povo.
- Isto vai complicar as coisas. E, além disso, as meninas creio, nem sabem dançar. Seria um fiasco. Igualmente, julgas conveniente encher a casa de rapazes? Quero ver nossas filhas agarrar com qualquer um!...
- Qual é a moça que não sabe dançar, Torres. Já nascem sabendo. Poderão também treinar uma com as outras, semanas antes. Moças deste sertão dançam mais do que carrapeta... E quanto a rapazes, só convidaremos gente limpa, de boa família.
- Mas tem muito cabritinho enxerido.
- Ora, se alguém faltar com decoro, convida-se para sair ou chama-se atenção.
- Eu mesmo não vou fiscalizar nada.
- Também não irá precisar. Ficarás para lá tomando tuas cervejas com teus amigos. Mas tem uma coisa, não vai te enxerir para o lado das mulheres.
- eu, com esta cara. Achas?
- Sei lá. Há muita dona que não escolhe cara, e, sente orgulhosa em flertar com o dono da festa, fazer certas intimidades com o coronel Torres, o maior fazendeiro da terra. Vê bem.
- Não deverias ter me chamado atenção para essas coisas. Não se catuca o cão com vara curta...
            - Pois sim. Não te metas...
- Vai depender das circunstâncias...
- Bem, vocês que se encarreguem de tudo tivestes uma ótima idéia. Mas abres os olhos de Lia e Lina. Que não se soltem, senão acabarei com a alegria...
- Deixa as meninas para lá. Elas têm muito juízo e sabem bem o que fazem.
- Meçam bem a coisa para não faltar nada. Toma a chave das gavetas. Mas não me arrebentem.
- Que nada. Tudo será especificamente calculado.
E, afinal, chegou o 18 de março. Não faltou quem viesse ajudar nos preparativos. Senhoras, moças e alguns rapazes.
Mesas trazidas pelos convidados encheram a sala e as varandas. Seria uma coisa jamais vista na cidade.
O coronel Torres entrou em casa e admirou o arranjo – Mulherzinha danada prometeu e fez melhor do que esperava. Deveriam ter esvaziado as gavetas. Disfarçadamente foi revista-las. Parecia até que não havia bulido no dinheiro. – Mulher faz milagre. Tomou logo uma cerveja, acendeu um cigarro e pôs-se a observar o movimento, o entra e sai das pessoas, que colaboravam. E considerou que o lugar de se viver era mesmo na cidade. Lá no mato ninguém se animava a tanto. Servia só para juntar dinheiro, dormir cedo e ouvir a passarada cantar. Já estava mesmo no tempo de mudar de vida.
E, no mesmo momento, tomara a decisão de mudar-se também. Fazenda uma vez ou outra. O filho que tomasse conta com os vaqueiros e moradores, já estava ficando velho e precisava descansar e mais conforto. O filho bem que poderia se casar e ficar por lá até se enjoar também.
À tardinha a casa começou a se encher inclusive de gente pobre que tinha lá atrás numa palhoça. Dona Angélica não se esquecera de ninguém. Uma varanda, a de frente, destinada aos homens mais respeitáveis. As duas outras para as mulheres e a mocidade. Velho lá para um canto, comendo, bebendo e batendo papo. Contando casos, vantagens e anedotas ou mesmo mentindo. Tudo dava no mesmo, contanto que deixasse em liberdade o restante. Um grupo de mocinhas da terra servia atenciosamente. Meninas escolhidas, de boa aparência e desembaraçadas. Somente isto já era um atrativo. E delas se aproveitam os respeitáveis chefes de família no terraço da frente. E o mais curioso é que elas gostavam de ser admiradas. Palmadinhas, ligeiros beliscões, batidas de joelho nas pernas. Pena era que as patroas tão confiantes não vissem...
Depois de apagadas as velinhas, sopradas pelas duas ao mesmo tempo, o sanfoneiro derreteu a concertina e os pares encheram o salão. Lia e Lina foram as primeiras a dançarem sozinhas. Uma valsa bem ensaiada. Na verdade já estavam com dois namorados. Até os “respeitáveis” foram presenciar o inicio do baile.
- Bem que dizia Angélica. Moça já nasce sabendo dançar. Que diabo estava eu fazendo nos matos tanto tempo. Matando minha mulher e minhas filhas de solidão!
Quando as duas pararam, beijou a ambas e desejou-lhe felicidades. Mas foi se sentar preocupados e quem seria os dois que dançaram com as filhas. Se não foi coisa já planejada, estava visto que era começo de namoro. Aliás, muito parecidos, os dois. Caras de irmãos. Coisa preparada pela Angélica e as meninas, com certeza. A festa quase amanhece o dia. Ninguém desejava deixar um ambiente tão agradável, tão convidativo.
A festa deixou marcas na cidade e no povo. Sem luxo, mas, completa.
O velho Torres queria fazer perguntas, mas não encontrava jeito. Não era habituado a dar confiança com perguntas que consideravam infantis ou de alcoviteiro. Não fazia perguntas, mas ficava se mordendo de curiosidade. Ficara lá para um recato com os amigos e não prestara atenção no volteado da juventude e das mulheres que atiçavam namoros. As filhas eram duas inocentes. Criadas na roça e em internato de freiras, coitadas, não possuíam experiência da vida social. Andava de orelha e nariz no ar para ver se pescava conversações e comentários da festa. Observava que a mulher e as duas teciam as coisas quase em silêncio, o que o intrigava. Estava como se tivesse ido a Roma e não tivesse visto o Papa. E chegou a um ponto que não se conteve. À hora do almoço, abriu a conversa. – Então, gostaram da festa.
- Ora, Torres, foi excelente.
- Maravilhosa! Papai.
- Ainda bem que gostaram e devem ter se distraído bastante.
- Fizemos muitas amizades, conhecemos muitas moças, muito rapazes, muitas senhoras distintas.
- Ainda bem que se não foi em vão que fizemos à festa. Havia-se de comemorar o aniversário de vocês duas.
Também já era tempo, meninas. Na roça a gente nem se lembra dessas coisas. Trabalha-se, trabalha-se e dorme-se com uns anjinhos implumes. Vida saudável, mas sem esses atrativos. Afinal, o baile foi como desejavam?
- Bom até demais. Muita moça...
- E a rapaziada conduziu-se bem?
Ah! Muito respeito e muita alegria.
Para o Torres a coisa continuava indefinida. O coronel Torres era experiente e ficou à escuta. Na hora da missa observava as filhas e nem tinha tempo de prestar atenção ao ofício e ao sermão do vigário. E foi então que notou que dois rapazes estavam de olho nas meninas. Elas cochichavam e riam com os olhos. E depois da missa o coronel saudou-os. Que tal o sermão do padre. Não acharam a missa um tanto arrastada. Pareceu.
- Não, pai. Tudo tão curto.
- E sobre que falou o vigário, no sermão?
- Só me lembro do fim, quando falou sobre a caridade e pediu espórtulas para a igreja, como sempre faz.
- Mas, olhe, na igreja ninguém cochicha. É falta de respeito a Nosso Senhor. E como um assunto puxa outro, não se encontraram por acaso com pessoas que vieram à nossa festinha? O que dizem a respeito. É conveniente ouvir para evitar falha no futuro.
- Temos visto muitas e todas estão esperando por outro aniversário. Hoje na igreja vimos várias pessoas que sorriem para a gente num sinal de que gostaram.
- Quem aprecia mais, as moças ou os rapazes. Sei que minha turma adorou.
- Rapazes e moças. Quanto às senhoras mamãe é quem sabe...
O coronel Torres percebia que as meninas eram mais sagazes do que pensava. Deixava-o sempre no ar.
Foi à fazenda, como de costume, mas resolveu, de caso pensado, voltar no dia seguinte à noite. E foi aí que descobriu o segredo das meninas. Pegou-as com os namorados na maior efusão. E certificou-se então que a festa não fora em vão. O susto dos quatros deixou-os tontos.
O Torres, no entanto, desfez o vexame. Cumprimentou os moços com alegria, ofereceu-lhes a casa e entrou para comentar com dona Angélica.
- Parece que as meninas estão progredindo. Dava-me pena aquela vida de isolamento da fazenda. Afinal de contas as moças têm direito a uma convivência mais afetiva.
- Pelo que noto Torres, vai dar em casamento. As meninas não falam noutra coisa. Apenas tinham receio de tua reação.
- Ora mulher, moça que não se casa termina insuportável e frustrada. E os dois. Quem são?
- Ah! Gente das melhores famílias. Não são pessoas ricas, mas, excelentes rapazes.
- Elas não precisam de dinheiro, mulher, mas unicamente de bons maridos. Dinheiro dar conforto, mas não dá felicidade a ninguém. As vezes até atrapalha.
- Um é filho de fazendeiro e o outro de comerciante. Freqüentaram colégio, mas preferiram o campo e a loja. Dizem minhas amigas que não podia haver melhor escolha. São aqueles dois que dançaram a valsa com elas. E são muito religiosos.
- Vi-os na igreja e não tenho dúvidas disso. Apenas os santos de sua devoção não era Nossa Senhora da Conceição. Eram santas Lia e santa Lina. E olha os quatro nem sabem para onde foi missa e sermão. Essa história de namoro em casa de oração é um ato pecaminoso.
- E onde foi que nos conhecemos, hem Torres? Só faltava me agarrar na igreja. Pelo menos me engolia com os olhos e bulias comigo nos gestos. Nem sei como o padre não te expulsava da igreja. Lá a rapaziada e as moças vão mais para namoro mesmo. Essa história de terço e livro de reza nas mãos é somente aparência. E há por ventura, religião melhor do que um bom namoro. E se acabasse com namoro nas igrejas católicas, só iriam lá os velhos e isto mesmo nem todos. Um sorriso trocado na igreja é a mais milagrosa água-benta. Não sei por que, mas é assim mesmo. Bem sabes disto...

*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.