quarta-feira, 15 de outubro de 2014

POEMA DA GRATIDÃO

POEMA DE GRATIDÃO


"Muito obrigado Senhor!
Muito obrigado pelo que me deste.
Muito obrigado pelo que me dás.

Obrigado pelo pão, pela vida, pelo ar, pela paz.
Muito obrigado pela beleza que os meus olhos veem no altar da natureza.
Olhos que fitam o céu, a terra e o mar
Que acompanham a ave ligeira que corre fagueira pelo céu de anil
E se detém na terra verde, salpicada de flores em tonalidades mil.

Muito obrigado Senhor!
Porque eu posso ver meu amor.
Mas diante da minha visão
Eu detecto cegos guiando na escuridão
que tropeçam na multidão
que choram na solidão.

Por eles eu oro e a ti imploro comiseração
porque eu sei que depois desta lida, na outra vida, eles também enxergarão!

Muito obrigado Senhor!
Pelos ouvidos meus que me foram dados por Deus.
Ouvidos que ouvem o tamborilar da chuva no telheiro
A melodia do vento nos ramos do olmeiro
As lágrimas que vertem os olhos do mundo inteiro!

Ouvidos que ouvem a música do povo que desce do morro na praça a cantar.
A melodia dos imortais, que se houve uma vez e ninguém a esquece nunca mais!
A voz melodiosa, canora, melancólica do boiadeiro.
E a dor que geme e que chora no coração do mundo inteiro!

Pela minha alegria de ouvir, pelos surdos, eu te quero pedir
Porque eu sei
Que depois desta dor, no teu reino de amor, voltarão a sentir!

Obrigado pela minha voz
Mas também pela sua voz
Pela voz que canta
Que ama, que ensina, que alfabetiza,
Que trauteia uma canção
E que o Teu nome profere com sentida emoção!

Diante da minha melodia
Eu quero rogar pelos que sofrem de afazia.
Eles não cantam de noite, eles não falam de dia.
Oro por eles
Porque eu sei, que depois desta prova, na vida nova
Eles cantarão!

Obrigado Senhor!
Pelas minhas mãos
Mas também pelas mãos que aram
Que semeiam, que agasalham.
Mãos de ternura que libertam da amargura
Mãos que apertam mãos
De caridade, de solidariedade
Mãos dos adeuses
Que ficam feridas
Que enxugam lágrimas e dores sofridas!

Pelas mãos de sinfonias, de poesias, de cirurgias, de psicografias!
Pelas mãos que atendem a velhice
A dor
O desamor!
Pelas mãos que no seio embalam o corpo de um filho alheio sem receio!
E pelos pés que me levam a andar, sem reclamar!

Obrigado Senhor!
Porque me posso movimentar.
Diante do meu corpo perfeito
Eu te quero rogar
Porque eu vejo na Terra
Aleijados, amputados, decepados, paralisados, que se não podem movimentar.

Eu oro por eles
Porque eu sei, que depois desta expiação
Na outra reencarnação
Eles também bailarão!

Obrigado por fim, pelo meu Lar.
É tão maravilhoso ter um lar!
Não é importante se este Lar é uma mansão, se é uma favela, uma tapera, um ninho, um grabato de dor, um bangalô, uma casa do caminho ou seja lá o que for.

Que dentro dele, exista a figura
do amor de mãe, ou de pai
De mulher ou de marido
De filho ou de irmão
A presença de um amigo
A companhia de um cão
Alguém que nos dê a mão!

Mas se eu a ninguém tiver para me amar
Nem um tecto para me agasalhar,
nem uma cama para me deitar
Nem aí reclamarei.
Pelo contrário, eu te direi

Obrigado Senhor!
Porque eu nasci!
Obrigado porque creio em ti
Pelo teu amor, obrigado senhor!"


Poema de Gratidão - Amélia Rodrigues (Divaldo Pereira Franco)




Amélia Augusta do Sacramento Rodrigues (Amélia Rodrigues)
1861-1926. Mais conhecida como Amélia Rodrigues, foi, quando encarnada, notável poetisa, professora emérita, escritora consagrada, teatróloga, legítimo expoente cultural das Letras na Bahia. Amélia Augusta do Sacramento Rodrigues nasceu na Fazenda Campos, freguesia de Oliveira dos Campinhos, Município de Santo Amaro da Purificação, no Estado da Bahia, em 26 de maio de 1861. Era filha de Felix Rodrigues e D. Maria Raquelina Rodrigues. Qualquer de seus conterrâneos, por mais jovem que seja, conhece a vida dessa extraordinária mulher, de seu esforço a fim de chegar aos seus ideais. Estudou com o Cônego Alexandrino do Prado, em seguida foi aluna dos Professores Antônio de Araújo Gomes de Sá e Manuel Rodrigues M. de Almeida. Sua vocação para o magistério era inata. A par disso matriculou-se no Colégio mantido pela professora Cândida Álvares dos Santos e começou a lecionar no Arraial da Lapa. Alguns anos depois, enfrentou um concurso, disputando uma vaga para lecionar em Santo Amaro da Purificação. Sendo aprovada, lecionou ali por oito anos consecutivos. Em 1891, pelo seu amor à causa do ensino, conquistou mais uma vitória. Diante de sua capacidade ímpar na tarefa de ensinar, pelo grande conceito na comunidade, foi transferida para Salvador, sendo lotada na Escola Central do bairro Santo Antônio. Um de seus alunos, adolescente ainda, em 1905, foi selecionado para lecionar inglês pelo sistema do filósofo Spencer. Amélia Rodrigues não só o ajudou a compreender o pensamento daquele filósofo, como complementou o seu aprendizado. Disse a ele:
            "O jovem precisa de educação moral que é o princípio fundamental da disciplina social; sem apelar para o coração, educar é formar no homem as mais duradouras forças da ordem social." O pensamento de Amélia Rodrigues se identifica com o pensamento de Fénelon, contido em "O Evangelho segundo o Espiritismo", que solicita a certa altura: "Educar é formar homens de Bem, e não apenas instruí-los." No Plano Espiritual continuou seu trabalho esclarecedor e educativo, baseada principalmente no Evangelho de Jesus, fonte inspiradora, quando encarnada, para muitos dos seus trabalhos. Desencarnada, encontrou na Espiritualidade - seara infinita da imortalidade - maior expansão para seu Espírito sequioso de conhecimento e faminto de amor, dando vazão aos anseios mais nobres, aprofundando-se na Mensagem de Jesus, e, na atualidade, participando da falange de Joanna de Ângelis, mentora de Divaldo Pereira Franco. Pela psicografia do abnegado medianeiro, vem trazendo páginas de beleza intraduzível, abordando os mais variados assuntos sobre o Evangelho, tema predileto, extraindo lições edificantes para aqueles que estão cansados e sobrecarregados, consolando e instruindo os seus leitores, tendo brindado o Movimento Espírita com as seguintes obras:
 Até o fim dos tempos
Há flores no caminho
Luz do mundo
O Semeador (infantil)
Pelos caminhos de Jesus
Primícias do reino
Quando voltar a primavera
Trigo de Deus
            Quando de sua aposentadoria, foi difícil ficar repousando. O seu ideal de ensinar continuava vivo. Recuperadas as suas energias, retornou ao Magistério, de forma ainda mais marcante. Nessa oportunidade foi responsável pela fundação do Instituto Maternal "Maria Auxiliadora", que mais tarde transformou-se na "Ação dos Expostos". Aproveitando o tempo disponível, dedicou-se à literatura e ao jornalismo, colaborando em publicações religiosas, entre as quais: "O Mensageiro da Fé". Depois, na revista " A Paladina" e, mais tarde, em " A Voz". Escreveu algumas peças teatrais, entre as quais "Fausta" e "A Natividade". Colaborou ainda com poesias: "Religiosa Clarisse" e "Bem me Queres". Escreveu ainda obras para literatura infantil, didáticas e romances.
Amélia Rodrigues desencarnou em Salvador, com 65 anos de idade, em 22 de agosto de 1926, deixando a sua marca de trabalho inigualável, tanto na Educação como na Literatura e na Assistência Social.
Fonte: Até o fim dos tempos, ed. Leal, 2000





Síntese Biográfica de Divaldo Franco

Divaldo é um verdadeiro apóstolo do Espiritismo. Dos seus oitenta e quatro anos, sessenta e quatro foram devotados à causa Espírita e às crianças excluídas, das periferias de sua Salvador. Nasceu em 5 de maio de 1927, na cidade de Feira de Santana, Bahia e, desde a infância, se comunica com os Espíritos. Cursou a Escola Normal Rural de Feira de Santana, recebendo o diploma de professor primário, em 1943. Trabalhou como escriturário no antigo IPASE, em Salvador, aposentando-se em 1980. É reconhecido como um dos maiores médiuns e oradores Espíritas da atualidade e o maior divulgador da Doutrina Espírita por todo o Mundo. Seu currículo revela um exímio e devotado educador com mais de seiscentos filhos adotivos e mais de duzentos netos e bisnetos, atendendo atualmente a cerca de três mil crianças, adolescentes e jovens de famílias de baixa renda, por dia, em regime de semi-internato e externato. Orador com mais de treze mil conferências, em mais de duas mil cidades em todo o Brasil e em sessenta e cinco países dos cinco continentes, tendo concedido mil e quinhentas entrevistas para rádio e TV, no Brasil e no Exterior. Em 2010 esteve em algumas cidades, por primeira vez, como Dublin, capital da Irlanda; Elche Sur-Azette, em Luxemburgo; Schwarzach, na Alemanha e Villach, na Áustria. Em meados de 2010, esteve na Rússia, por primeira vez, fazendo contatos com amigos e tentando encaminhar a criação de um núcleo espírita.
 Recebeu mais de seiscentas homenagens, de instituições culturais, sociais, religiosas, políticas e governamentais. Como médium, publicou duzentos e cinqüenta e cinco livros, com mais de oito milhões de exemplares, onde se apresentam duzentos e onze Autores Espirituais, muitos deles ocupando lugar de destaque na literatura, no pensamento e na religiosidade universais. Dessas obras, houve versões para dezessete idiomas (alemão, albanês, catalão, dinamarquês, espanhol, esperanto, francês, holandês, húngaro, inglês, italiano, norueguês, polonês, tcheco, turco, russo, sueco e sistema Braille). Existem, ainda, dezessete livros escritos por outros autores, sobre sua vida e sua obra. A renda proveniente da venda dessas obras, bem como os direitos autorais foram doados, em cartório, à Mansão do Caminho e outras entidades filantrópicas. Espírita convicto, fundou o Centro Espírita Caminho da Redenção em 7 de setembro de 1947. Dois anos depois, iniciou a sua tarefa de psicografia. Diversas mensagens foram escritas por seu intermédio. Sob a orientação dos Benfeitores Espirituais guardou o que escreveu, até que um dia recebeu a recomendação para queimar tudo o que escrevera até ali, pois não passava de simples exercício. Com a continuação, vieram novas mensagens assinadas por diversos Espíritos, dentre eles: Joanna de Ângelis, que durante muito tempo apresentava-se como Um Espírito Amigo, ocultando-se no anonimato à espera do instante oportuno para se identificar. Joanna revelou-se como sua orientadora espiritual, escrevendo inúmeras mensagens, num estilo agradável repassado de profunda sabedoria e infinito amor, que conforta as pessoas necessitadas dando diretriz espiritual. Em 1964, Divaldo, sob orientação de Joanna de Ângelis, selecionou várias mensagens de autoria da mentora e enfeixou-as no livro Messe de Amor, que se tornou o primeiro livro psicografado por Divaldo.
MANSÃO DO CAMINHO
            Divaldo Pereira Franco é emérito educador. Fundou em 1952, na cidade de Salvador, Bahia, com Nilson de Souza Pereira, a Mansão do Caminho, instituição que acolheu e educou crianças sob o regime de Lares Substitutos. Em vinte Casas Lares, educou mais de seiscentos filhos, hoje emancipados, a maioria com família constituída. Na década de sessenta, iniciou a construção de escolas, oficinas profissionalizantes e atendimento médico. Hoje, a Mansão do Caminho é um admirável complexo educacional com 83.000 m2 e cincoenta e duas edificações que atende a três mil crianças e jovens de famílias de baixa renda, na Rua Jaime Vieira Lima, n° 1, Pau da Lima, um dos bairros periféricos mais carentes de Salvador. O complexo atende a diversas atividades socioeducacionais como: enxovais, Pré-Natal, Creche, escolas de ensino fundamental e médio, Informática, Cerâmica, Panificação, Bordado, Reciclagem de Papel, Centro Médico, Laboratório de Análises Clínicas, Atendimento Fraterno, Caravana Auta de Souza, Casa da Cordialidade e Bibliotecas. Mais de trinta e cinco mil crianças passaram, até hoje, pelos vários cursos e oficinas da Mansão do Caminho. A obra é basicamente mantida com a venda dos livros mediúnicos e das fitas gravadas nas palestras, seminários, entrevistas e mensagens por Divaldo.
 HOMENAGENS
 Divaldo Franco recebeu homenagens em diversos países e cidades da América do Norte, Central, do Sul, Europa e África:
• 20 Comendas
• 334 Placas de prata, douradas e bronze
• 54 Medalhas
• 49 Troféus
• 43 Moções de Congratulações
• 187 Diplomas e Certificados
• 12 Títulos Honoríficos significativos.
Dentre todas essas maravilhosas homenagens, destacam-se:
• 1991 - Título Honoris Causa em Humanidades, pelo Colégio Internacional de Ciências Espirituais e Psíquicas, em Montreal, Canadá em 23.05.1991.
• 1997 - Decreto de Ordem do Mérito Militar, 31.03.1997, pelo Presidente da República do Brasil.
• 2001 - Medalha Chico Xavier, do Governo do Estado de Minas Gerais.
• 2002 - Título de Doutor Honoris Causa em Humanidades, pela Universidade Federal da Bahia.
• 2002 - Homenagem da Universidade Estadual de Feira de Santana.
• 2005 - Título de Embaixador da Paz no Mundo, junto com o amigo Nilson de Souza Pereira.
            O título foi recebido em Genebra, na Suíça, em 30 de dezembro de 2005, pela Ambassade Universalle Pour la Paix. Em junho de 2008, em Paigton, no Sudoeste da Inglaterra, recebeu do monge tibetano Kelsang Pawo, da Fundação Kelsang Pawo, que se dedica a proteção de crianças em perigo em todo o mundo, o título de Embaixador da Bondade no mundo.
Atualizada em 02.01.2012.
http://www.divaldofranco.com.br/
            

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

ADELINA



ADELINA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Ninguém sabia quem era Adelina, menina de rosto moreno, trazendo nos olhos uma tristeza de por de sol. Numa tarde de despedida.
            Antes não era assim, porque Adelina não era só. Possuía uma mãe que lhe dava carinho, carinho de pobre que era maior do que afagos de ricos. Mas a mamãe de Adelina deixou-a sozinha, muito antes de tempo. Deus a levou, talvez esquecendo de que tinha ela aquela filha tão pequena ainda, desconhecendo os revezos da vida, a indiferença do mundo.
A casa onde ficara era ainda mais pobre do que a sua.
            - Vai, Adelina, vai pedir alguma coisa, vê se te empregas que não tenho nada para de dar.
            E Adelina, sai diariamente, de porta em porta, assustada, com uma baciazinha na mão para recolher o que por ventura lhe dessem. Um pouco de farinha aqui, um pedaço de pão ali, uma fruta, uns níqueis que ela ia juntando. Onze anos apenas, miudinha de corpo, metida num vestidinho de pano barato e com os pezinhos descalços.
            A mesma coisa todos os dias. Tinha acanhamento de pedir emprego, medo que lhe negassem. Voltava á casa com o que lhe davam. A lembrança da mãe não lhe saia da memória. Não esquecia da hora que levaram e não trouxeram de volta.
            -Vai, Adelina, da um jeito. Arranja alguma coisa. Pede café, pede açúcar, um pedacinho de carne para desenfastiar, Adelina. Ah! Meu Deus olha pra gente, da um jeito. O engomado, o crochê que fazia não dava pra nada. Quando eu era sozinha, passava de qualquer forma. Tenho tanta pena dessa coitadinha... Ficou só nesse mundo atribulado, onde a vida é pior, que a morte. Pedir esmola! Santo Deus, não há tristeza maior. – Da uma esmolinha pelo amor de Deus – Dou esmola à menina não, para não viciar. Na certa é a mãe ou o pai que manda e ficam em casa na vagabundagem, explorando a criança.
            Nesse dia Adelina saiu como que vai arrastada pelo destino cruel. Contava os passos. Já estava magrinha e dava pena ver aqueles olhinhos esverdeados olhando as pessoas, olhando as ruas, olhando pro céu com vontade de gritar pela mãe. – ou de casa, - dizia com a voz sumida.
            - O que tu queres menina?
            - Uma coisinha para comer. Em casa não tem nada.
            - Porque tua mãe não te emprega. Já tens idade para trabalhar.
            - Ninguém me dá emprego, dona.
            - Queres morar comigo. Sou a professora e vivo sozinha. Bem que me podias fazer companhia, desde que sejas boazinha. Vai pedir a teu pai ou a tua mãe.
            - Não conheci papai, e mamãe está no céu. Moro com uma velhinha mais pobre que eu. Peço esmola pra ela e pra mim. Tem dia que agente não come. Só faz beliscar.
            - Queres ficar?
            - Fico sim senhora. É tão bom pra mim. Mas a Dindinha não vai ter quem peça para ela. Tenho tanta pena dela.
            - Vamos até lá. Mas entra aqui. Come logo alguma coisa. Leva comida pra Dindinha. Ela também não vai mais passar fome.
            Adelina começou a chorar.
            - Chora não. Aqui não vai te faltar nada. Vamos.
            Adelina andava calada, respondendo apenas o que lhe perguntava a professora.
            - É ali!
            - Ali onde, menina?
            - Aquela casinha velha.
            - Como se chama a Dindinha.
            - Dona Amélia. Dindinha mesmo.
            Dindinha era uma velhinha baixinha, de corpo franzino, limpinha e simpática. O que chamava à atenção era ser tão magrinha como uma folha seca.
            - Bom dia, Dona Amélia. Vim aqui para conhecê-la.
           Adelina entregou-lhe o pacote de comida. – Pode comer Dindinha. Eu já comi. A professora me deu comida tão boa.
           - É. Coma Dona Amélia. Depois a gente conversa.
E Dona Celeste – a professora – ficou observando as coisas do casebre. Tudo muito pobre, mas tudo arrumadinho.
           - Pronto. Estou às ordens da senhora. Esta menina não tem ninguém. Quando Deus levou a mãe dela, eu fiz a caridade de trazê-la pra minha casinha. Mas também não tenho nada. Só, muita pobreza, meus parentes sumiram. Não se lembraram mais de mim. Até mesmo os dois filhos. Fui mãe só pra criá-los. Estão lá pra banda do sul.
            - Olhe Dindinha. Vou lhe propor uma coisa. Vão as duas morar comigo. Estou sozinha. Cuidam da casa e fazem companhia. Assim poderei dedicar-me mais a escola. Tenho muitos alunos.
            No dia seguinte, já moravam as três. Dindinha era uma mestra no arranjo da casa. Já havia possuído casa arrumada. Depois da morte do marido, foi caindo na pobreza até chegar à penúria.
            - Já fui gente, Dona Celeste. Já fui gente. Meus filhos esqueceram-me. Nem sabem se estou viva ou não. Ingratos. Mas Deus os proteja. São coisas da vida, deste mundo velho sujo. Felizmente ainda existem pessoas como a Senhora, que se compadece da pobreza. Pensava tanto em Adelina. No começo da vida e tão sofrida e tão humilhada. Agora Deus pode até me levar. Ela está amparada, que tranqüilidade, meu Deus. Nunca fiz mal a ninguém e tenho sido tão castigada. Chego a não entender a justiça divina. Em todo caso, minhas orações salvaram-me e a esta menina. Ah! Dona Celeste, como sou tão feliz. Espero não lhe dar preocupações.
Adelina possuía agora, duas mães. Para uma e para outra era o mesmo sorriso, a mesma alegria, a mesma intimidade respeitosa. Dona Celeste não vivia propriamente do ensino. Era a escola, um entretenimento, uma forma de ser útil. Possuía bens de herança que lhe davam completa tranqüilidade. Adelina passou a freqüentar a escola, a viver igualmente ás outras crianças. Não era das mais inteligentes, mas certamente ninguém a excedia na dedicação e no comportamento. Havia, entretanto, um outro aspecto em que nenhuma a superava. Na voz. Em todos os ensaios de canto, Adelina destacava-se. Voz limpa e melodiosa. Era um dom natural, da qual ela, em sua humildade, não se envaidecia. Nem ao menos chegava a perceber ainda que pudesse ter qualquer influência em sua vida. Dona Celeste, no entanto, prestava bem atenção.
Maio, o mês das flores, estava chegando e como acontecia todo o ano, algumas alunas eram escolhidas e treinadas para cantar no coro da igreja. Adelina foi uma delas. E logo no primeiro dia das festas da igreja, ouviu-se a voz da menina, atraindo atenção de todos. – Quem seria. Filha de quem. E muito de propósito, a professora havia ensaiado com ela um canto a uma só voz. Foi, então, a revelação definitivamente de Adelina.
            - É a menina da professora, gente. Que voz maravilhosa! E como é tudo tão natural. Canta sem esforço como os pássaros do campo.
Durante o canto, ninguém parecia respirar. O padre Azevedo nem sabia mais o que estava rezando. Como podia ter tanta harmonia, tanta suavidade. O hino, que Adelina cantava sozinha, tomara outra dimensão. Todos os santos do céu deveriam estar parados, a ouvi-la.
            Terminadas as rezas daquela noite, todos queriam ver de perto e falar com Adelina. Ela nem sabia, nem entendia o porquê daquele alvoroço todo. Não havia feito nada de mais. Simplesmente havia cantado o que a professora lhe ensinara.
            - Onde a Senhora, professora, arranjou esta menina? De onde veio ela? Quem é a mãe dela?
            A partir daí, Adelina passou a ser requisitada, para cantar nas festas particulares. – Adelina vai cantar no aniversario de fulano. A casa se enchia. A mesma coisa nas festas cívicas, em qualquer diversão que houvesse. E o nome e a vocação Adelina foram se espalhando. O bispo fez visita pastoral em Quixabeira. Ouviu Adelina cantar, ficou maravilhado. Convidou a professora a levá-la a capital. Queria que ela cantasse no dia da primeira comunhão dos meninos. Era uma festa muito concorrida e alegre. Queria fazer uma surpresa. Mandaria a letra dos hinos e dos cantos para o treinamento de Adelina. E tudo aconteceu.
            Adelina, bonita de rosto e de corpo só por isso já era uma atração. A organizadora da festa recebera ordem do Senhor Bispo de incluir o nome de Adelina e queria destaque.
            - Mas, Senhor Bispo. Temos excelentes cantoras em nosso coro. Essa matutinha ira estragar tudo.
            - Não. Ela não ira estragar coisa nenhuma. E deverá cantar só. E pelo menos três vezes, foi uma promessa que fiz. Embora, tenha uma vozinha fraca, pouco harmoniosa, não há de ser nada. Promessa é promessa.
            - O que foi meu Deus, que deu na cabeça desse Bispo. Deve ser a idade. Por que não muda essa promessa. Mas quer assim, a igreja é dele e agora é ter paciência. Vamos treinar o nosso coro, irmãos. O que acontecer de fiasco, não fomos nós. Foi o Bispo. Olhe, ouviram bem. Cantar sozinha e pelo menos três vezes. É promessa de Bispo. A professora Dona Celeste sabe o que ela deve cantar.
            - Agora sim. E mais esta. Uma professorinha do interior. Dá até para desconfiar. Não é sem muita razão que anda por aí murmurando coisas sobre nosso amado Bispo. Viram vocês, os jeitões da professora? Deve haver qualquer coisa mesmo. Não se pode mais confiar em ninguém.      
Começaram as festividades e os rituais da primeira comunhão. Cantou o coro da capital, ensaiado a propósito. Logo em seguida cantaria Adelina. No momento em que o Bispo começava a dar a comunhão, Adelina começou a cantar. Sua voz melodiosa, clara, espiritualizada foi alteando. Pararam todos os movimentos. Um silêncio jamais observado numa igreja católica paralisou até a respiração. A beleza da voz de Adelina comoveu os irmãos. Apagou o coro do colégio.
            - Esse Bispo não é qualidade de gente. Prega-nos uma peça dessas.
            - É, e você fazendo mal juízo de nosso Santo Bispo. Olha aí. Agora tem que confessar esse pecado.
            - Quem, eu? Estás muito enganada. Confessar coisa nenhuma. É o que dizem por aí e quem tem pecado é ele, o sabidão...
            Riram as duas.
            - É talvez tenha razão. Aquilo não parece mesmo flor que besouro cheire... Viste os oião dele pro lado da professora...
           Adelina ficou na memória de cada um. Até as crianças da primeira comunhão ficaram enlevados com o canto de Adelina. Olhavam para ela como se estivesse vendo um dos anjinhos do céu.
           As irmãs do colégio ofereceram a professora ensino gratuito para Adelina. Queria ter com elas, aquela menina prodigiosa, aquele encanto de voz.
           - Depois. Irmãs. Quando Adelina terminar os seus estudos primários. Lá em minha terra, também a querem, também adoram a sua belíssima voz. Era uma menina esquecida e abandonada. Pedia para comer com a velhinha que acolhera depois de haver perdido os carinhos de sua mamãe. Ela é agora a filha da professora Celeste. Não desejo, por hora, separar-me dela. Ela e a velhinha que a recebera, são as minhas companheiras. Espero que no futuro esteja aqui completando os seus estudos. E, depois, eu também gosto de ouvi-la cantar, de ensinar-lhe hinos e canções.
- Em todo caso, convém perguntar se ela quer vir agora.
E a resposta foi negativa. - Não, não, não. Somente quando minha madrinha Celeste mandar. E retornaram as duas com a alegria do êxito. Adelina trazia no olhar, não mais aquela tristeza do abandono em que vivia, mas a alegria de ser gente como as outras mocinhas, sua felicidade era maior do que todas. Quem sempre foi feliz, não sente bem a felicidade. Ela não, tinha vivido de um mundo de tristezas, onde a desdita proíbe o sorriso. E a sua maior alegria era ter um lar, uma protetora e fazer com o seu canto, a alegria dos outros...
            Dias depois chegavam os jornais da capital. Traziam os nomes de Adelina e da professora e suas fotografias. E lá estava em letras graúdas – “O Rouxinol do Sertão”. O governador oferecia uma bolsa de estudos a Adelina. Desejava que ela se aperfeiçoasse em canto. Uma voz daquela não poderia ficar apenas no Sertão. O Brasil todo teria de ouvi-la. A professora voltou á capital, para falar com o governador, não queria separar-se de Adelina.
            - Ora, isto não será mais problema. Faço, a sua transferência para cá. Não quero que a menina volte a sentir-se só. Poderá ter influência nos seus pendores artísticos.
            Dois meses depois já estavam na capital. Saíram elogios ao governador.
            Adelina tornou-se o ídolo da cidade. Estava nos festivais maravilhando a assistência o que mais tornava encantadora era a sua modéstia e sua simplicidade. Sua voz era tão natural quanto ela própria. Os sons saiam de sua garganta como se ela nenhum esforço fizesse. Não exigia nada, mas lhe pagavam muito bem. O rostinho bonito era outra atração. Não lhe faltavam admiradores a quem ela cativava com um sorriso encantador. E um dia Adelina andava pensativa, olhando distante, como se estivesse vendo miragens. Dona Celeste, meio preocupada, chamou-a.
            - Conta-me o que há contigo, Adelina. Estais hoje mudada. Conheço-te muito bem e não me pareces à mesma.
            - Nada, Madrinha, nada não!
            - Vai, confessa o que acontece. Não deve me ocultar os teus pensamentos ou as suas emoções.
            - É que já estou uma moça e alguém olha pra mim como se nunca houvesse me visto.
            - É natural, Adelina. Todos te admiram.
            - Mas não é isso Madrinha. É que eu fico preza a um olhar desses. Parece uma atração. Uma coisa aqui dentro como se alguém estivesse me chamando.
            - Toma cuidado. Isso é amor que está acordando dentro de ti. Mas não te deixes levar pelas primeiras impressões.
            - É uma pessoa importante, de família rica. Agrônomo.
            - Há! Já estou adivinhando. Deve ser o Dr. Amarante, fazendeiro.
            - Esse mesmo. Tem procurado falar comigo, mas tenho me esquivado. Não o conheço bem. Sou uma moça humilde e não sei as intenções dele. Precisava falar com a senhora e tinha acanhamento.
            - Pois é. É um ótimo moço. Em todo caso é necessário saber se ele quer se casar ou somente se divertir. Conversa com o doutor. Não que fiques como eu, solteirona, sozinha, e cheia de arrependimentos. Tinha medo do casamento. Deixei de ser feliz como tantas e tantas de minhas amigas e companheiras que hoje tem o seu lar, filhos adoráveis e um companheiro de todas as horas.
            - Ora, Madrinha, ainda é cedo. Depende da Senhora querer, decidir-se. Só me casaria depois da senhora. Foi quem me abrigou e fez de mim gente. Deus me livre de deixá-la só.
            - Não, Adelina seria então duas arrependidas, mais tarde.
            Dr. Amarante resolveu-se, procurar Adelina em casa da professora. A voz de Adelina, sua aparência agradável viviam em sua imaginação. Sabia que para se ter uma voz tão macia e tão doce, necessitaria muita sensibilidade. Dona Celeste recebeu-o com as devidas reservas. Adelina não sabia como ficar. A presença do Dr. Amarante deixou-a confusa. A madrinha que resolvesse!
            - Sim, Dona Celeste. Não tenho provas de que Adelina goste de mim. Entretanto venho arriscar-me a uma desilusão ou a encontrar o caminho de minha felicidade. Amo Adelina sem ela saber. Não tive oportunidade de lhe falar, de expressar os meus sentimentos. Portanto, sairei daqui, alegre ou triste. Todos me conhecem. Os meus costumes, minha conduta, minha situação, na sociedade e na vida.
            - Adelina... Quero apresentar-te o Dr. Amarante formado em agronomia. De família conceituada e um moço de respeito. Deseja falar contigo. Use de tua franqueza, sem trair os teus sentimentos. Conversem os dois. Vou preparar o cafezinho habitual para o visitante.
            - Olha Adelina. Vim aqui para ouvir de pertinho a tua voz. Fazer amizade. Dizer o que sinto por ti. Ouve-me e depois podes falar sem acanhamento. No que te vou dizer estará minha felicidade, mas poderá não estar a tua. Comecei a te querer desde o dia em que ti vi pela primeira vez. E não me saístes mais da memória e do coração. Minha intenção não é namorar contigo, tomar o teu tempo, enganar-te. Quero verdadeiramente é casar-me contigo. Não preciso saber de onde vieste e a tua origem. Quero-te como és com essa simplicidade encantadora. Não me fales de tua origem, peço-te. Sou independente, meus pais e manos não interferem em minha vida, a não ser para ajudar-me a ser uma pessoa de bem. Basta que me digas, hoje, amanha qualquer dia, se gostas também de mim e se casaras comigo.
            - Também admiro o Senhor, desde que notei a sua presença. Mas a minha condição social. Só possuo curso de canto e ainda estudo. Não tenho nada para oferecer-lhe...
            - E então. Tudo quanto quero é você, somente você, minha queridinha.
            - Sei que não o mereço. Seria um casamento muito desigual. Para mim seria um grande premio, mas tenho receio de seu arrependimento depois. A convivência às vezes traz grandes desilusões.     
            - Então, não acreditas em minha sinceridade, nos meus propósitos? Responde-me. Posso considerar-me teu noivo? Será minha noiva quando te decidires. Não gostaria de sair daqui pensativo e numa terrível incerteza, mas deves mesmo pensar. Consulta a professora, tua Madrinha. Poderá ser agora mesmo.
            Dona Celeste ia chegando. Ofereceu o café e bolinhos feitos por suas mãos.
            - E então. O que tanto conversaram?
            - É madrinha, Dr. Amarante quer ficar logo noivo, para casar logo.  Mas tenho medo que ele não venha a arrepender-se depois...
            - Dr. Amarante, Adelina, é um moço responsável. Poderia casar-se com uma moça rica, á hora que entendesse. Somente um amor verdadeiro poderia trazê-lo aqui á tua procura. Como vês, é uma escolha desinteressada. Amor, puro amor. E depois se um dia se enfastiasse de ti, a tua casa é esta mesma. Estou certa, porém, que não será uma aventura de tua parte. Respondas como quiseres. De mim tens inteira aprovação. Sei que gostas da vida que tens. Mas olha, não conheceu outra. Poucas meninas terão a tua sorte. Verás que depois do noivado muita gente vai comentar e invejar. Dr. Amarante será censurado pela legião de pretendentes que esperavam por um convite como este. É o destino, minha, menina, o destino.
            - Aceito. Mas as vantagens são somente minhas. Dr. Amarante proibiu-me de dizer quem eu sou, donde saí. Era isto que me deixara apreensiva. Agora, Dr. Amarante pode, se não está arrependido, pode considerar-me sua noiva.
            - Dr. Amarante beijou-a e a Dona Celeste. Foi servido um cálice de vinho comemorativo.
            - À noite quero levá-las á casa de minha família. Lá não sabem que é minha noiva. Será uma grande surpresa. A maior da minha vida.
           Amarante avisou em casa. Estava noivo. Iria saber quem era, quando, fizesse a apresentação. Pediu para convidar amigos. Fez também seus convites, e á hora aprazada, com a casa cheia, entrou com as duas. E qual das duas seria a professora ou a cantora Adelina? Veio a revelação – Adelina. A família mostrou-se exultante – Era uma demonstração de reconhecimento á modéstia e os propósitos do Dr. Amarante. Casamento de amor e não de egoísmo.
Muitas moças ficaram desapontadas. Sonhavam com um casamento com o agrônomo. Mesmo assim, mostraram alegrias. – Enfeitiçou-se pela voz da menina. Exigiram que Adelina cantasse. Não tinha como fugir. Cantaram repetidamente, as suas mais lindas canções. Desfez-se o desapontamento. Sim ninguém poderia escapar ás atrações de uma voz daquela. Era um encantamento. A festa de noivado entrou pela madrugada. E terminou com a canção – “Felicidade para dois”.
 
*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.   

                           

A VELHA FAZENDA




A VELHA FAZENDA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam – 20/09/1901 – 16/04/2003)


Os Pereiros, uma velha fazenda do alto da Borborema, nos Cariris Velhos, andava a beira da decadência. O proprietário, seu Adelino, já envelhecido e cansado, percebia aquele começo de ruína, sem forças para uma reação. Os filhos casaram-se, tomaram o seu destino e pareciam indiferentes com o que acontecia, e, com a sorte do pai.
Dona Santa sua esposa e a única filha solteira, a Marilda, sentiam naquele abandono, o fim de suas esperanças. Nada poderiam exigir de Adelino, exausto de tantas lutas para construir tudo aquilo e que seria a segurança para a velhice do casal.
          Os filhos aconselhavam vender todos os bens, pôr o dinheiro a juros nos bancos ou em casa comerciais e viverem dos rendimentos. Tinham suas ocupações definidas e permanentes, não podendo dar assistência à fazenda dos pais e da irmã.
          Marilda via naquela saída dos irmãos, o desprezo pela fazenda e até pela velhice dos pais. Mas não ficaria assim. Haveriam de ver o quanto valeria uma mulher decidida a uma reação. Poderiam ficar certos de que os seus pais iriam ter a velhice que mereciam. E não recorreria aos irmãos ingratos e egoístas. Nem sabia Marilda, como poderiam ser filhos do mesmo pai e da mesma mãe. E não precisaria virar homem para dirigir a fazenda e fazê-la prosperar. A tomaria desmoronada e a levantaria à golpes de raciocínio e de esforços. Bastaria que o pai concordasse ou pelo menos aceitasse sua cooperação.
         - Papai, nossa fazenda não está indo bem. O senhor não tem mais a força necessária para conduzi-la como fazia antes. E não quero permitir que tudo quanto o senhor fez com redobrados esforços resvale para o fundo do vale. Deixe-me que tome conta e recupere o seu patrimônio. Seu e de mamãe.
          - Seu também, minha filha. No entanto, será uma tarefa grande demais para uma moça. Toma meu conselho. Casa-te e vai viver tua vida, como fizeram teus irmãos. Eu e Santa estamos do meio para o fim. Com qualquer coisa passaremos. Não temos mais muitas ilusões. Quando se chega a nossa idade, os horizontes da vida vão encurtando. Quer-se apenas tranqüilidade e não creio que os teus irmãos, a esta altura de nossa vida, nos deixem passar privações. E mesmo num caso extremo venderemos a fazenda e teremos o suficiente para ir até o fim.
          - Sei, sei, papai, mas não é isto que quero. O que pretendo é conservar e valorizar o seu trabalho. Desejo que o senhor e mamãe vejam tudo florescente, alegre, e próspero. Os campos zelados, a vacaria no curral, a bezerrada no pátio, o milho verde na mesa. As melancias vermelhas e doces deliciando o paladar. Aquelas melancias de que o senhor sempre gostou. Quero que os seus desejos sejam atendidos, e que nunca chegue a se lamentar que no seu tempo era assim e assim... Nunca! Meus irmãos irão ver que não se precisa vender a fazenda para viver.
          - Mas, filha, será sacrifício grande demais. Já te disse, casa-te e aproveita tua juventude.
          - Nunca faria isto. Meu lugar é aqui ao seu lado. Poderia me casar e continuar morando em casa, mas sei lá se o meu marido não iria perturbar-lhes a vida. Deixe-me fazer uma experiência. Basta que me de a orientação necessária, quando consultá-lo. Estou decidida e espero que tenha êxito.
- Sempre acompanharei o seu trabalho diário.
- Decerto será necessário vender algumas rezes para começar a restauração. Remontar cercas, cuidar das aguadas, tratarem das pastagens, e dos gados. Confie em mim e verá que não lhe decepcionarei.
         - Está bem. Faço tua vontade. Mas não te esforces demais. Além disso, não podemos, no momento, fazer grandes despesas. Tem-se que ser parcimonioso. Lembra-te que Roma não se fez num dia.
         - Irei atacando por prioridades. Aquilo que for mais urgente para melhorar os rebanhos, que andam por ai um tanto abandonados. A vacaria terá que vir ao curral, o leite será transformado em queijo e manteiga, o rebanho de cabras precisa ser mais bem tratado e bem assim as ovelhas. Teremos que mudar o vaqueiro ou encostá-lo caso não se decida ao trabalho.
           Marilda montou no russinho e foi percorrer os quatro cantos da propriedade. Reviu os rebanhos, as cercas, as pastagens. Como medida preliminar, mandou reunir a bicharada aos currais e apriscos. No dia seguinte relacionou todos. Era necessário saber o que existia e suas condições de trato. Era uma medida que se impunha. Saber o que tinha e como estava. As pastagens já decaiam e a fome crítica se avizinhava. Eram indispensáveis sérias precauções e medida de previdência. Fechar os vários cercados para a economia dos pastos. Prender os animais com deficiências para um tratamento especial. Uma turma executava sistematicamente os reparos de cercas e cancelas. Outra realizava a limpeza das aguadas. E o vaqueiro não poderia se afastar do campo, no trato dos animais carecidos de zelo. Duas semanas depois, já um pote e meio de leite entrava na cozinha para o queijo e a manteiga de garrafa. Tudo aquilo parecia um sonho maravilhoso.
Os irmãos de Marilda sofreram um desapontamento, pelo menos aparente. Era um impacto em sua indiferença pelo patrimônio dos pais. Pretenderam, então, dar uma demão a irmã, que recusou alegando que cada um tinha suas ocupações e não desejava prejudicá-los. Deixassem com ela. Sentiram que a recusa era proposital. Reconheceram que haviam sido injustos com os pais. E um ano depois já andavam enciumados com a irmã.
          Marilda vendera todos os animais de descarte, deixando os rebanhos limpos e escolhidos. Comprara um reprodutor de boa raça e a bezerrada que iria nascer seria para causar inveja. E na verdade, mais um ano e meio decorridos ninguém os tinha mais valorizado. Não se tirava leite sem deixar a parte da bezerrada e nunca se pegava no peito de uma vaca cujo leite só dava mesmo para alimentar bem o bezerro. Não queria que a “doença da cuia” atrofiasse as novas crias, bezerro quer não come e não mama, não se desenvolve, era evidente. Dos rebanhos de cabras e ovelhas, ficou somente o que havia de melhor e cada um deles teve também reprodutores selecionados e raciados. Os cercados bem cuidados conservavam os pastos. Os plantios de palma forrageira se expandiam, assegurando a nutrição dos animais no verão. Das roças, ou melhor, das colheitas de algodão mocó, o caroço voltava para a fazenda. Causava admiração e gosto, ver como Marilda conduzia a fazenda. A manutenção da casa era uma de suas maiores preocupações. Queria e conseguia dar aos pais um conforto e uma tranqüilidade que não tiveram antes. Cadeiras de balanço novas para os dois, no terraço, colchões de lã de barriguda e quanta coisa julgasse confortável para o casal.
          - Minha filha, -  diziam, -  para que tudo isso. Já se possuía o bastante.
          - Que nada! Por aí virá mais. Tudo que se tem é do papai e da mamãe. O dinheiro está aí e não esperem que só eu me lembre de adquirir as coisas. Comprem o que quiserem, é lógico. Se eu pudesse adivinhar, não lhe faltaria nada, e por isto peço que, pelo menos me lembrem. Papai pode querer mudar de cigarro, por exemplo, e mamãe um pó de arroz ou um perfume diferente. Não tem que deixar nada para ninguém. Todos os filhos estão economicamente muito bem. Para mim só desejo o que já me pertence. O meu gado aumenta de ano para ano.
          - Olha Marilda, de cada dois bezerros, cabritos ou borregas que nascerem um, será teu. Fazemos questão disso. Será nossa meeira enquanto formos vivos.
          - Não, papai. É demais, e isto poderá despertar a ciumada dos manos, dos seus genros e noras.
          - Nada disso. Se soubermos que alguém se manifestou contrário, passo tudo para teu nome e por escritura de compra e venda. E alias, é o que deveríamos fazer. Pensas que estamos esquecidos quando abandonaram a fazenda e nos aconselharam vendê-la para sobrevivermos. Nunca esquecemos tal indiferença. O pai e a mãe já estavam sendo pesados e incomodo.
          - Não será necessário não, pai. Não irei precisar de tanto. E quero aproveitar a boa ocasião para dar-lhe conhecimento de uma novidade, talvez a maior de todas. Estou me enfeitando para casar.
          - Casar, casar!... Não será brincadeira, Marilda, Marilda. Isto tem sido nossa também maior preocupação.
         - Mais não tenha cuidado, pois continuarei na direção da fazenda e com mais força ainda. Só quero uma coisa que é permitirem fazer minha casa aqui ao lado, pegadinha.
         -Ah! Esta, não. Terás de morar conosco, dê no que der. Ou então que será de nos dois, sem a tua presença, Marilda.
         - Preciso então, explicar isto ao meu futuro noivo. Não pretendia incomodá-los com pessoa estranha dentro de casa, inclusive, de filhos se vierem. Quebraria a tranqüilidade, a paz, o sossego da casa.
          - Ora, Marilda, será maior a alegria e a segurança. Além disso, esta casa será tua. Seremos teus inquilinos.
          E deram boas risadas.
         - Está aí, Marilda, completaste nossa alegria de viver. Não nos conformávamos em ver-te solteira, fugindo à regra geral, só e só para nos fazeres companhia. Mas, afinal de contas, quem será o felizardo, esse teu príncipe encantado, de quem tens guardado tamanho segredo.
          - Ah! Papai é simplesmente o meu primo e seu afilhado, o Josias. Se estiver errada, aconselhe-me e perdoem-me. É uma afeição antiga, do tempo do colégio do professor Chiquinho.
          - Ora, Marilda, onde iríamos encontrar melhor pretendente para nossa filha. Deus abençoe vocês e desde já tomem conta da fazenda e desses dois velhinhos que tiveram a felicidade de lhe ter como um raio de sol a iluminar e aquecer-lhes a vida. E sabe qual será o nosso presente? Iremos construir, segundo teus desejos, uma casa nova e mais alegre aqui juntinhos ligados por porta interna. O velho ditado é muito certo: Quem casa, quer casa.
          Abraçaram os três, ternamente.


*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.