terça-feira, 11 de setembro de 2012

A ENFERMEIRA


A ENFERMEIRA*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 - 16/04/2003)

Abigail fez o curso de enfermagem, por vocação. Deste de menina sentia o desejo de poder amenizar os sofrimentos alheios. Em suas brincadeiras com as bonecas, contrariava-se quando uma boneca sofria um acidente qualquer e procurava curá-la, cercado-a de todo carinho.
Tinha que ir para cama até que viesse o médico e lhe consertasse o braço ou a perna. Simulava doença nos seus bonecos, só para bancar a enfermeira, dar-lhes chazinho, dar-lhes massagens, exigir silêncio para não lhes perturbar o sono.
Quando acontecia um grande desastre com um boneco de barro ou de louça, que caiam aos pedaços sem mais possível concerto, preparava-lhe um enterro piedoso. Todas as outras bonecas tinham que comparecer ao velório, mas sem choro para não perturbar a tranqüilidade da desventurada vitima: pode acontecer que mesmos depois da morte, o ente querido, ainda pudessem ouvir as lamurias.
A verdade é que Abigail cresceu e matriculou-se numa escola de enfermagem, donde saiu diplomada e com bastante experiência. E como era reconhecida sua dedicação, teve logo convite para um dos bons hospitais da cidade, aliás, dirigido por freiras. Só o fato de ser administrado por Irmã de Caridade já era um bom motivo para aceitar o convite.
Dentro de pouco tempo tornou-se a enfermeira geral. Visitava constantemente todas as enfermarias e doentes para levar-lhe uma palavra de consolo e resignação. Queria estar em toda a parte e de ouvidos atentos nas companheiras, procurava certifica-se se o atendimento estava sendo feito.
Mas com algum tempo começou a sentir desapontamento. Ouvia veladamente a conversa das enfermeiras e das próprias freiras, num tom, muitas e muitas vezes, que não lhes agradava. Doentes impacientes, doentes enjoados. Porque não morre logo e muitos comentários que indicavam indiferença à impiedade, o que fazia redobrar a vigilância.
E de si para si, fazia sua analise do comportamento das companheiras. Certo dia sua preocupação aumentou. Duas irmãs já maduronas, antigas e familiarizadas como sofrimento alheio, faziam um comentário. Ora fulana, não sei por que aquela velhota do apartamento 18, não morre logo para nos deixarem descansadas. Esse tempão todo chateando a gente e os médicos conservando-a a custa de remédios.
Tem-se que morrer. que se vá mais breve possível. Abigail estremeceu. Chegava a nem acreditar no que ouvira. Deveria ser caduquice das irmãs, cansaço da vida ou puramente familiaridade com as doenças dos outros e a morte. Aquilo lhe causou tristeza e desencantos.
Era horrível, desejar que uma pessoa que buscava saúde, mais algum tempo de vida, estivesse sob aquela condenação. Era para se pensar como estaria sendo atendida e com que desprezo. O hospital ou a Casa de Saúde era para dar vida e não para fazer enterros.
Abigail correu ao apartamento da enferma que já deveria ter morrido. Lá encontrou uma velhinha, dessas mulheres conformadas e de boa fé, uma criatura que ela própria havia pedido para ser internada no hospital das freiras. Era D. Natercia, baixinha, corpo delgado e extremamente simpática.
Mas o problema para as irmãs é que estava ali há muito tempo nem atava nem desatava, isto é, nem recebia alta, nem morria de uma vez. Abigail redobrou as atenções e sempre que podia ficava ali pertinho dela, confortando-a.
- Olha minha filha, não posso morrer agora. Tenho duas netinhas órfãs sob meus cuidados. Nem sei como estão vivendo nas mãos da empregada. Às vezes vem aqui me visitar, mas morro de cuidado nelas. Já pensou, eu sou a mãe e o pai dessas duas crianças. Tenho que lhes dar tudo e, sobretudo o carinho que elas necessitam.
Mas os médicos não poderão ainda me dar alta e eles têm razão. Eu mesma sinto que não estou em condições disso. Que se há de fazer. Mas Deus a de me ajudar e permitir que eu volte para cuidar de minhas netinhas. Mais de um mês aqui e sem resultado visível. Será, minha filha, que não tenho mais cura. E o que será das duas meninas.
- Não se preocupe tanto D. Natercia. Pense mais na sua saúde. Vou lhe ajudar. Confie em mim. E diga-me uma coisa, alguém já se interessou em saber, a senhora quem é?          
- Apenas sabem meu nome. Aparece-me aqui, quando trazem a medicação e uma vez perdida, uma freira vem me olhar em silêncio, e tenho, Deus me perdoe, a impressão de que vem apenas verificar se ainda não morri. Como é difícil viver, minha filha.
- Irá sair logo. Mais um pouco de paciência. Abigail foi se ter com as irmãs. Era urgente levantar as forças de D. Natercia, com duas netas para cuidar. Dar-lhe mais assistência, uma medicação mais eficiente, alem de certos cuidados pessoais.
- Tem se feito tudo menina, mas a enferma não vem reagindo. Também nos parece que não contribui para restabelece-se. Se ela conta que só a visitam quando vai ministrar alguma medicação, o que não é muito pouco para uma criatura naquela idade, e com um sério problema a preocupá-la em casa.
- O doente não se cura apenas com remédio. O mais importante é carinho, incentivo, estímulo. Ninguém ao menos, já se informou quem é a paciente.
- E que nos interessa estar bisbilhotando a vida alheia.
- Bem. Irmã deixe a paciente comigo.
– Ora, é um alivio para nós. Pode ficar com ela.
Abigail chamou o médico de plantão e pediu-lhe uma assistência mais ativa. Tomou a doente pelos braços e a fez sentar-se na cama, como uma primeira experiência. No dia seguinte já a fez andar um pouco pelo apartamento. E quando perguntando como se sentia a resposta foi franca e alegre.
- “Ora minha filha, bem mais disposta”.
 - Pois veja como é fácil a recuperação. Irá tomar nova medicação e dentro de poucos dias estará em casa com suas duas netas. Lá completará o tratamento, desde que siga minha orientação.
 No dia seguinte recebia a visita das duas netas, duas quase mocinhas, com fisionomia preocupada e pedindo a Dindinha para voltar.
- Voltará brevemente, minhas queridinhas. Tenham mais um pouquinho de paciência. Irei levá-la lá. Esperem.
  Dona Natercia beijou as netas, desta vez cheia de confiança. Sabia que sua saúde estava voltando graças aos cuidados e o carinho de Abigail.
 Quatro dias depois, Abigail conduzia D. Natercia á sua casa. Não era possível avaliar a alegria das netas, não só pela presença da vovó, mas sobre tudo pela sua saúde.
 Na casa de Saúde, comentava-se a recuperação rápida de D. Natercia. As irmãs não se conformavam, com aquele zelo excessivo de Abigail querendo impor novos conceitos de enfermagem. - Aquela moça chegou para cá e quer se mostrar -. O certo, entretanto, é que os internados estavam tendo uma assistência desvelada e notava-se pelo semblante de cada um que havia mais confiança e maiores esperança de cura.
Abigail conversa com os médicos, dava orientações as enfermeiras e quando se ouvia um chamando, estava de olho se o cliente estava sendo atendido prontamente. Não esquecia a alimentação, tanto nos horários como na qualidade e teve que falar sobre isto com a irmã superiora.
- Veja Irmã, não se pode servir a um doente, uma alimentação qualquer, tipo de carregação. Cada doente terá que receber comida de conformidade com o seu estado e que tenha sabor agradável.
Como é que uma criatura doente, fastienta, pode engolir aquela droga que estão servindo: quer deixar comigo as compras e a cozinha. Prestarei conta de tudo e talvez se gaste menos.                
- É certamente se propõe a fazer milagre, Não é mesmo?
- Mesmo que não custe menos, não será possível exigir que um doente aceite o que lhes dão; aqueles caldos brancos, insossos, de péssimo aspecto. Há de se fazer um cardápio para cada um.
Pagam para isto. Pelo menos fazer algumas variações, consultá-los, sobre o que desejam comer. O medico dá a medicação especifica e a cozinha a alimentação adequada. Uma boa alimentação é meia cura. Uma Casa de Saúde deve se credenciar pelas curas que faz e não pelos internos que saem.
 Sabe Irmã, a Senhora deveria deixar comigo grande parte da administração e ir descansar um pouco. Deve reconhecer que já trabalhou demais. Quero somente lhe ajudar. Nada mais. Não tenho ambição a não ser pelo meu trabalho, pelo exercício útil da minha profissão.
 Não quero que me transmita oficialmente, nenhum cargo ou função, o que me interessa é somente presta serviço.
 E a casa São José, adquiriu maior conceito e teve que ser ampliada. Abigail conversava com os pacientes e cada vez se certificava mais da impropriedade da direção das casas de saúde por freira.
São por formação: religiosas, partidárias de que o sofrimento é que conduz aos páramos celestiais. Não faz mal, portanto, que os doentes sofram.
Um internado já idoso e com algumas entradas no hospital, queixava-se: “Freiras não deve cuidar de doente... Não tem pena de ninguém. Quanto mais gritar, chorar e gemer, melhor. Estará mais perto do céu. E nessa filosofia anticristã, vai fazendo enterro de muita gente. Se alguém vai ao céu não se sabe. Tem-se apenas, certeza de que foi para o buraco... e abriu uma vaga no hospital, para outra vítima”.
- Quer dizer, meu amigo, que as freiras são mais desumanas.
- Ah! Não tem nem dúvida. Não já lhe disse que para elas o sofrimento é o caminho do céu. A morte é a libertação. A matéria é coisa impura e para salvar a alma é necessário separá-las. E outra mais. Quando a doença se agrava, chamam logo o confessor. Já pensou quanto sofre um enfermo com a presença do padre.
Na certa o cabra está desenganado e nas últimas. Credo em cruz: Deveria ser proibida freira dirigindo Casas de Saúde.
 Abigail tomou conta dos tratamentos e da assistência social aos doentes. E com isso a Casa de Saúde adquiriu conceito e só falava na enfermeira Abigail. Era, demais, honesta como mulher e não admitia licenciosidade lá dentro, viesse de onde viesse. Quem tivesse seus amores ocultos que se cuidasse.
  Não fazia escândalos, mais chamava reservadamente e acertava os ponteiros do relógio. Tornou-se tão respeitada que os próprios médicos tinham medo de enfrentá-la. Acabaram com as entrevistas ás portas fechadas, para evitar quaisquer suspeitas e comentários. 
   Sabia muito bem que algumas das enfermeiras mantêm relações livres e nem por isso as dispensava. O que exigia era respeito lá dentro. Todas as atenções deveriam ser dirigidas aos pacientes e as tarefas de cada um.
  Haveria, assim, maior cuidado no tratamento das pessoas e dos afazeres. Abigail pretendia casar-se, igualmente ás outras moças normais. Não era, portanto, contra o amor. Dr. Aparício, fisioterapeuta e ainda no inicio de carreira, via Abigail, o seu ideal de esposa.
  Ela percebia suas intenções e não as desprezava. Apenas não dava qualquer demonstração no ambiente onde trabalhava. E a primeira manifestação do Dr. Aparício, convidou-a a falar em sua casa ou na cidade.
  Dentro da Casa de Saúde seriam dois estranhos nesse particular. Não queria abrir precedente e quando depois noivaram, mantinham a mesma conduta. E fez ao noivo uma advertência. Não confundir relacionamento profissional com liberalidade com os outros médicos. Teria que ser afável cordial com todos eles, pois não admitia certas reservas em seu ambiente de trabalho.
  - Olha Dr. Aparício, ciúme comigo é uma espécie de veneno que tira todo gosto de amor. Não adianta desconfiar de mim. E se não confias, é bem melhor nos separarmos logo, antes que o juiz de o nó da indissolubilidade.
  - Não, Abigail, ciúme de ti, não existe de minha parte. Foi justamente a confiança que me mereces que despertou minha paixão. O que não gosto é que certos colegas conversem contigo como se quiserem te devorar.
  Sujeitos que não descravam os olhos dos olhos teus e, movimentam os lábios com se quisessem beber de um sorvo, os teus gestos, os teus sorrisos, as tuas palavras. São esses tipos que me enfaram. Porque não ti viram antes e somente agora depois de nossos compromissos. O que querem de ti? Percebo muito bem que não são atitudes de cordialidade profissional.
  São investidas cheias de desejos. Conhece-se pela cara dos patifes. Conversam contigo como se estivesse mastigando um fruto doce e raro. Uma pouca vergonha.
  - Mas o que isto importa, se não lhes dou a menor oportunidade nem confiança. E francamente, nem chego a notar esse interesse que dizes. E se há, terminarão desiludidos, cansados. Vê bem, Dr. Aparício, se não confias plenamente em mim, como confio em ti, o certo mesmo é pormos um ponto final em tudo, então nos casarmos já e já.
 - E pensas que eles recuam depois de casada. Ai é que tentarão. A bichinha já casou, o caminho está aberto e acabou a responsabilidade. O que acontecer será, por conta do marido. Tranqüilo!...
 - Bem, sou uma moça honesta e inviolável. Não posso evitar que tenham admiração por mim. Não correspondo a nenhum. Quero me casar contigo, para sermos felizes. No entanto, não mostras segurança sobre minha pessoa. Não pretendo largar a minha profissão e, portanto a decisão é tua.
Resolve-te. Existem muitas moças sonhando com casamento. Certamente encontrarás uma ou algumas de tua plena confiança. Tem medo de mim como solteira, receio maior ainda como casada e sempre fui e serei honesta.
Se eu desejasse certos relacionamentos já teria conseguido há muito tempo. E até me parece que nosso casamento será o começo de uma vida difícil para nós dois. Quero me casar para ser feliz, isto é, mais feliz, mas antevejo que não será assim. Portando, Dr. Aparício, considero nosso noivado desfeito. Continuemos bons amigos desinteressados, como éramos antes.
 Pois é, não me queira mal. Espero encontrar um que não veja o diabo em cada esquina.
 - Não, Deus me livre de perdê-la. Tenho somente zelo, zelo e não ciúme. E quem não zela o que é seu, o que ama perdidamente?
 - Sim, mais amor é confiança e sem isso, a vida torna-se muito difícil. Case-se comigo. Não terá mais necessidade de estar se mortificando naquela Casa de Saúde e terá o nosso lar para tecer os seus sonhos.
- É muito cedo ainda para abandonar meu sacerdócio. Já pensou ter que deixar tanta gente desesperada que carece de mim. Vamos devagar com a louça. Primeiro, habitue-se ao meu sistema de vida, dentro das exigências da profissão. Não veja em cada homem um seu rival, como se eu fosse um daqueles bazares da festa.
Se eu quisesse balançar-me na rede de varandas das felicidades amorosas, nem pensava em casamento. Posso dar-lhe um prazo de um mês para acomodação com os seus sentimentos. Mas desde agora vou lhe reafirmar, não posso cortar meus relacionamentos profissionais. Se alguém me olhar com intenções espúrias, não poderei evitar.
Aliás, creio que essas coisas nascem somente de sua imaginação. Talvez seja um vicio ou uma idéia falsa de que toda enfermeira de hospital é uma mulher fácil. O fato de ficar sozinha á noite com os médicos plantonistas, gera essa concepção idiota.
É possível, ou antes, é certo que muitos médicos inescrupulosos se aproveitam disso para conquistar, mas nem todas as moças se deixam levar. Na verdade são uns canalhas e daí deve perder esse teu medo ou esse zelo. E é bem capaz de ser um deles e por isto, suspeitas de mim.
 Mas formiga sabe que roça corta. Nunca ninguém se atreveu a me fazer propostas ilícitas.
- Certo Abigail. Se achar que a mereço, vamos nos casar. Respeitarei todas tuas vontades. Não serei possível uma comprovação mais legitima de pureza de coração.
- Então nos casaremos tão logo os papeis estejam prontos. Mas, antes disso, nada de querer avançar o sinal. O semáforo ficará fechado até o dia do casamento.

13/07/86
*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

A HERANÇA


A HERANÇA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Aquilo é que é um sujeitinho de sorte, todo mundo dizia. Filho único, o pai desaparece e fica com aquela fortuna, sem ter dado um prego para formá-la. De escola em escola, de colégio em colégio, sem fazer o menor esforço e recebe de mão beijada, uma riqueza daquela: Fazendas, gado de entupir curral, casas e dinheiro. Bem que dizem que a sorte é cega. Dos estudos não aproveitou nada. Não pegava num livro.
            Fulgêncio, sem experiência nas coisas da vida, andava tonto. Jamais pensara que poderia ficar sem mãe e sem pai, sozinho, e desorientado. Se adivinhasse com o que ia lhe acontecer, teria tomado outro rumo na vida. Se não tivesse nada, talvez não estivesse tão cercado de preocupações. Mas o que iria fazer para preservar tudo quanto o pai lhe deixara e sem qualquer participação sua. Não entendia de fazenda, nem de negócios. Só de uma coisa estava certo. Não faria como outros que dentro de pouco tempo põem fora tudo que receberam por herança.
            Percebia bem os comentários que faziam a seu respeito, mas isso deixava para lá. Iriam ver quem era Fulgêncio, apesar de moço e inexperiente. No meio de suas preocupações surgiu-lhe uma idéia. Consultar o melhor amigo de seu pai. Iriam ver como se põe uma herança fora. E foi á casa do fazendeiro.
Tiburcio por cuja filha nutria uma especial simpatia. Estava ali, dizia, para pedir orientação, sobre a conservação lucrativa da herança que havia inesperadamente recebida. Até então se despreocupara, inclusive, com os estudos na doce esperança de que teria por toda vida, um pai que zelaria por tudo.
            - É meu rapaz, fui sempre amigo de teu pai. Era quase como se fossemos dois bons irmãos. É pena que tenha se ido tão cedo. O destino é uma coisa terrível. Causa surpresa a cada instante. Desaparece quem deveria viver e ser eterno e ficam os que não deveriam existir, ou antes, não deveriam ter se gerado. Mas o mundo foi feito assim. Erros por cima de erros. Também era coisa demais para ser feito em sete magros dias. Haveria de sair muita coisa chamuscada. Nem sei para que tanta pressa. Muita coisa ruim foi criada, o que não me parece ter sido obra de um Deus. Na certa havia gente mascarada, falsificando as coisas. Há muito gato por ai passando por lebre...
            A maledicência, então, é uma coisa terrível. Sabes que há muita gente por aí prognosticando que dentro de pouco tempo consumirás toda a herança que o meu compadre Adriano te deixou. É isto mesmo. Ninguém sai para te ajudar ou te aconselhar. Amam a destruição da felicidade alheia. No entanto, tua intenção é bem outra e podes ficar certo de que se confiares em minha ajuda, tua fortuna crescerá para desespero dos que vaticinam tua destruição. E para começo de tua nova vida, começo dando-te um conselho de amigo. Não poderás nem deverás continuar sozinho. Não será apenas a solidão a te desencorajar. Ela própria conduzirá á dissipação, como um meio de fuga. O medo da solidão fará com que se procurem ambientes onde campeia a voracidade humana. E daí para frente, terá muitos amigos que serão uma atração. Mas amigos da abundância, da dissipação, da consumação total. Enquanto tiveres dinheiro, terás grandes amigos e não te faltarão elogios. É a regra geral, sem exceção. Mas quando se for o ultimo ceitil, fugirão de ti com medo que passes a precisar deles. E te acusarão como um perdulário, um inepto, um idiota e incapaz. Devoraram a vítima e atira o esqueleto onde não se sinta o mau cheiro. Pois bem meu Fulgêncio, sustenta o que é teu. Estás no caminho certo. Muitos haveres e poucos amigos. Fora desta regra, perderás as duas coisas. Os amigos só duram enquanto ouvem tinir das moedas, isto é, á exceção dos amigos desinteressados e leais. Mas como ia te dizendo, a primeira coisa que tens a fazer é casar, mas casar sem pressa e com alguém que não te confunda como o teu dinheiro ou os teus bens. Escolhe uma moça que não necessite do que é teu. Moça sem ambição e de boa raça. A raça também é importante.
            - Não será que já tem alguma em vista.
            - Já e há bastante tempo.
            - Quem, então, se me podes dizer.
            - Para ser franco, está bem perto do senhor. É a Aline, com sua permissão, desculpe-me. Sempre foi o meu grande doirado sonho. Depende exclusivamente dela e dos pais.
            - Mas será, Fulgêncio, que é minha filha, a jovem que irá realmente completar a tua vida.
            - Exatamente. Onde iria encontrar outra com maiores dotes morais. Nem fazendo como Diógenes. Saindo em pleno dia com candeeiro aceso!
            - Ao que parece, não viestes pensando em conselho para a boa direção de teus haveres, mas, para fazeres um pedido de casamento...
            - Apenas a primeira intenção, o que seria um preparativo para a segunda, mas a oportunidade foi tão propicia que me antecipei. Se der certo, serei muito feliz e daí para frente, não me faltará mais nada. Estarei em casa, como se diz e os meus negócios crescerão.
            Aline concordou e dentro de poucas semanas o casamento realizou-se. Com a presença apenas de amigos diletos. Eram poucos, mas qualificados. Daqueles que vaticinavam a diluição rápida da herança, nem a sombra. E estes não desistiram:
- “agora sim, o tal coronel Teburcio vai deixá-lo somente como a filha. Trocou uma coisa pela outra”.
            Mas enganaram-se, Fulgêncio dia a dia solidificava mais ainda o seu patrimônio, com o apoio e a orientação do sogro. E para demonstrar sua prosperidade, comprava casas na cidade e fazendas que alugava ou explorava lucrativamente. Em cada casa colocava uma placa indicativa de propriedade. Queria era ver muita gente morando em suas casas, seus inquilinos. Era uma forma de desmascarar os maldizentes. E, na verdade não houve outra saída se não reconhecerem que o Fulgêncio possuía grande tino administrativo.
            Dentro de poucos anos, Fulgêncio era uma das pessoas mais influentes da cidadezinha de Abelhas. Quem necessitava de dinheiro em situação de emergência ou não, recorria a ele, o que significava ser o mais procurado para os bons negócios:
- “vai, vai ao Fulgêncio, é dinheiro vivo e na hora”. Alem disso, guarda inteiro sigilo. Também não é nenhum usurário. Muitas vezes, até valoriza um pouco o que lhe oferecem. O relacionamento é cada vez mais largo e já chegam até a falar em fazê-lo prefeito. Sabe-se que não quer envolver-se em política, embora prometa ajudar algum amigo honesto que se candidate. Mal tem tempo para cuidar do que é seu e detesta boatos e acusações graciosas ou não.
            Sabe que nas campanhas políticas, e na administração da coisa publica, poucos respeitam a honorabilidade do candidato ou do administrador. A ganância pelos cargos faz esquecer os princípios da dignidade. É uma canalhice. E o que acontece é que os mais honestos, os mais limpos, os mais bem intencionados e autênticos, raramente se elegem. No entanto, aqueles que já cheiram a podre e que água não lava, são os eleitos. O povão gosta é de trapaça, de cambalachos. Mas não é povinho só, não senhor. Os piores são aqueles que antevêem oportunidades para coisas escuras.
 Fulgêncio estava fora disso. Não adiantava tentar. Possuía outras formas de ajudar a cidade e a seu povo. Alem disso não faltavam candidatos. Estavam aí ás enxurrado, com lama e tudo. Quem já vira, por ventura, eleger-se alguém que prometesse consertar as coisas. Só se for por um engano ou algum milagre.
            - Aline colaborava com o marido, particularmente nos apontamentos dos bens e no registro dos animais e casas. Não desejava encher-se de filhos, mas queria um casal ou como ela mesma dizia um par. Homens ou mulheres, não havia importância. Um só seria criado com muito mimo e lhe faltaria um companheiro mais tarde. Mas de tanto ir com sede á fonte, lhe vieram quatro, uma mulher e três homens. Eram tão graciosos que até pensava que poderia vir uma dúzia.
No entanto, a mãe lhe desaconselhava: - olha Aline, filhos demais quebram as forças da gente e quando crescem dão muitas preocupações. Querem tornar-se independentes e fazer o que pretendem, sobretudo quando são extrovertidos. Ninguém os segura.
Dos meus seis filhos, posso-te dizer que apenas um não me tirou muitas noites de sono. Saem, voltam quando querem apesar do rigorismo de teu pai. Já as mulheres são diferentes um pouco. Muitas, ainda umas meninas, inventam de namorar, não escolhem com quem. Basta o sujeitinho ter uma cara de anjo, embora mal lavada, e já se enchem de paixão. E cegam a gente. Os homens andam por onde querem e ninguém vê ninguém comenta; as mulheres não. Qualquer liberdadezinha estará na boca do povo. Deixa como está. Quatro já chegam para encher tua vida. Aposto que somente viestes, a saber, o que é uma mãe, depois que tivestes filhos. Antes disto, uma mãe, mesmo adorada, e uma Santa é não raro apenas uma mulher que teve filhos e não fazem o que os filhos querem. Exigente, antiquada, palmatória do mundo. No entanto, só mesmo uma mãe sabe verdadeiramente quanto lhe custa nove meses de gestação, as noites de insônia, as preocupações nas doenças, o pensamento no futuro dos filhos. A dor que sente quando tem que contrariá-los.
            - É, mamãe, é assim mesmo. E então, o primeiro é um Deus nos acuda. Não se dorme tranqüila, não se sabe se está como sede, o que é que lhe doe. Um martírio. Se não fossem criaturinhas tão mimosas e nascidas do amor da gente, daria para não deseja-los.
            - Filhos que agente adora e que, por vezes. Doem tanto na gente.
             
 Em 22-7-1986
*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.





                                                       



quinta-feira, 6 de setembro de 2012

A VOLTA


A VOLTA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003

            A janela do quarto amanheceu aberta e a cama vazia. Francelina havia fugido e foi aquele alvoroço em casa de seu Abílio.
            Ninguém esperava que ela fizesse aquilo. A família não queira o casamento, mas não chegava a ponto de proibi-lo totalmente. Queria apenas que Francelina fizesse uma melhor escolha para não começar logo errada. Mas a menina endoidou e pela madrugada sumiu, com o namorado, um moço de boa família, mas desocupado
Na verdade não era um viciado e estivera vários anos internado em um bom colégio da capital. Deixara os estudos e vivia à custa do pai, dando de pernas pela cidade. Raramente ajudava nos afazeres da casa comercial, apesar da insistência do pai.
            Pegou Francelina e desapareceu, levando pouco dinheiro e a inexperiência no trabalho. Era dessas criaturas que não queriam nada na vida.
Procura daqui, procura dali e nem notícia do paradeiro. As duas famílias desesperadas tiveram que se acomodar e aguardar noticia. A única esperança que alimentaram era que quando o dinheiro acabasse estariam de volta. Mas isso não aconteceu e lá e foram muitos meses e mais de dois anos. Não adiantava chorar. Nem se maldizer. Saíram porque quiseram e bem contra a vontade dos pais. Se não voltaram era certamente porque estava indo bem. Mas as coisas têm sempre o seu dia e, inesperadamente, os dois apareceram. Aliás, os três, pois Francelina já trazia um filho, gorducho e esperto. Foi um dia de alegria imensa, embora nada soubessem ainda como estavam vivendo lá fora. Bastava-lhe a presença dos três e o passado parecia não mais existir. O tempo parou, encarregou-se do resto.
            - Onde andou minha filha, que nunca deu à menor noticia?
            - Doidice minha, mamãe. Não queria dar-lhe desgosto e sei que dei ainda maior. Fomos andando, andando sempre, procurando onde viver. Trabalhando os dois em qualquer coisa que aparecia. Tínhamos saudades de casa, mas também tínhamos vergonha de voltar.
            Vida dura, mamãe, mais dura do que possa imaginar. Dias longos e noites mais longas ainda, com o pensamento sempre acordando a gente. Tinha-se a impressão que se estava para lá do fim do mundo, perdidos no meio de um deserto. Mas tinha-se que arranjar comida e lugar onde morar. Findamos parando numa cidadezinha do alto sertão, para lá das Espinharas – Volta do Riacho. Nunca havia ouvido falar nesse lugar. Felizmente o povo era bom e teve pena da gente. Perilo arranjou emprego numa casa comercial e eu trabalhava cuidando de crianças numa casa de família. Lá mesmo comíamos e dormíamos, separados. Não havia outro jeito. Só depois compramos uma cama e alugamos um quarto onde passamos a viver. A sorte é que sempre nos entendemos muito bem, e confiávamos um no outro. Findei engravidando, o que já esperava. Com mais algum tempo alugamos uma casinha e comprávamos para ir pagando, o essencial. Passamos a ganhar mais um pouco e já se estava mais tranqüilos. Era como se estivéssemos ricos. Nasceu o menino. As famílias me ajudaram e ganhávamos o leite para o Toninho. Nunca estivemos doentes. A doença braba era somente saudade. Dias que a gente sofria mesmo. Vontade de sair correndo os dois até aqui. Mamãe tenho tanta pena dessas moças que fazem como eu. E como dói andar com o coração apertado e sem remédio. É essa tal de paixão que se tem pelas pessoas. Sim, somente paixão e doidice. Amor. Amor é outra coisa bem diferente. É a gente sofrer juntos sem reclamar, sem culpar um ao outro, pacientemente. Conviver na santa paz, achando que tudo vai bem. Não querer mais se separar. Amor é o que se tem por um filho, fazendo-o sempre sorrir. Mas a final de contas, estamos aqui, vendo com os próprios olhos, papai, mamãe, os manos e não apenas com a imaginação.
Quando saltei a janela do meu quarto, pensava que o mundo era todo cor de rosa. Parecia que a vida estava em doar-me e sentir os prazeres do corpo. Uma semana depois, ou melhor, logo no dia seguinte, cai na realidade. Por alguns momentos de prazer, enfrentara o desconhecido, quando poderia muito bem ter esperado ou deixado de ser mulher. Nos dias próximos ao parto, quanto precisei de mamãe, de estar pertinho da senhora, de papai, no conforto da família. Deus teve dó de mim e nada aconteceu, mas ninguém avalia a angustia e a falta que me faziam.
            Tudo, entretanto, já passou e creio que já paguei minha ingratidão. Perdoem-me e me sentirei feliz. Viemos para voltar. E já nem sei como será. Lá em Volta do Riacho temos bons amigos, mas não temos parentes. Isto me aflige. Mas é lá que temos trabalho. Foi lá que recomeçamos a viver. Não sei como será a despedida, mamãe, no entanto é o que temos a fazer. Perilo anda amargurado. Desejaria não voltar, mas diz que foi um ingrato com a família e não merece outra coisa.
            - O que! Saírem mais daqui? Nunca, Francelina. Nunca. Divide-se o pão em dois pedaços. Com ou sem trabalho, não permitiremos o regresso. E não acredito que o pai de Perilo permita que ele retorne a Volta do Riacho. Em todo caso, concordaremos que voltem lá para uma despedida e os agradecimentos. Só, se é que não o fizeram ao sair.
            - Na verdade já, mamãe. Não desejaríamos mais voltar. Esta é que é a verdade... No entanto poderia ter que voltar.
            - Assim é que se pensa e se faz.
            - Não sabíamos como iriam nos receber depois de nossa ingratidão e de nossa doidice.
            - Foi muito difícil no começo. Ninguém se conformava. Depois tivemos que aceitar como uma coisa consumada. Mesmo assim, não perdíamos a esperança de reencontrá-los. São desatinos dessa mocidade sonhadora e inexperiente. Mocidade que  acha que todos os demais estão errados.
            - Ah! Mamãe, errados andávamos nós. E depois dos erros cometidos fica-se esmagado. Eu e Perilo, coitado, tivemos dias amargos. Felizmente nos sobraram paciência e compreensão para resistir. Foram muitos meses de duras provações. Mudamos inteiramente. Tinha receio que Perilo desse para beber, e então tudo estaria completamente perdido. Mas não. O tostão que pegava era para levar qualquer coisa para casa ou guarda-lo como quem guarda um tesouro. Nunca pensei que uma moedinha de nada pudesse ter tanto valor. Gostava de contar as poucas que ia juntando, coisa que antes  nunca havia feito. Quando se tem tudo que quer, não se dá valor a essas pequenas coisas. Quando estava em casa era assim. Nem me passava pela cabeça que alguns centavos viessem a fazer falta. Não imagina a alegria que tinha quando ia juntando e somava um cruzeiro. Tinha uma fortuna. E a gente mesmo ria de tanta felicidade, naqueles momentos cruciais de apertura.
            - Francelina, vai ao teu cofre que eu vou ao meu. Vamos ver quem tem mais. Parecíamos dois usurários. Mas somente Deus sabia avaliar nossa riqueza. E cada um ia apresentando uma moedinha e somando. Quase sempre eu ganhava. E chegávamos a nos beijar de contentamento.
– “Mulher, sobrou  isto tudo, mulher!”.
            Planejamos a volta para um fim de semana, quando iríamos receber o último dinheiro. Era necessário ir juntando. E lá se foram muitas semanas, até que um dia contamos o “dinheiro”. Pareciam moedas de ouro. – Dê ou não dê, vamos embora, disse-me Perilo. Vamos enfrentar o caminho de volta. O pior e o melhor dia será o da chegada à casa do lajedo Vermelho. Como irão nos receber não se sabe!
            - Não é isto que eu penso. O que me preocupa, Perilo, é como nos apresentaremos. Com que cara e com que roupa.
            - Ora, Francelina, com aquela mesma cara com que saímos. Os pais da gente irão entender e perdoar nossa doidice. Não posso mais te ver, tão angustiada e nem te quero ver sofre mais. O nosso filhinho não tem culpa de nossas loucuras de amor.

*O Conto pertence ao Livro, “Vidas Nordestinas”, no prelo.

  

            

domingo, 19 de agosto de 2012

ADELICE



 A D E L I C E*

João Henriques da  Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


            Quando Adelice foi ficando uma moça, começou a dar cuidado. Não por ser uma jovem extrovertida ou irascível, mas pela sua formosura exótica que atraia a atenção de toda gente. Talvez não estivesse apenas, em seus dotes físicos o dom de chamar a atenção.  Havia qualquer coisa indefinida que a tornava uma criatura impressionante. Não se afetava e nem procurava se exibir, e, no entanto, era como uma espécie de flor exótica, que desabrochava todos os dias ao amanhecer, perenemente, mostrando uma corola sempre mais bela e atrativa. Quem via Adelice não a esqueceria mais. Seus olhos, sua boca, seu rosto, o corpo, formavam um conjunto inesquecível. Era Adelice como uma coisa que houvesse sido feita errada e dera certo, maravilhosamente certo.
            Estava visto que Adelice não tinha culpa da nada. Nascera assim porque assim Deus a fizera diferente das outras. E não se preocupava que andassem espiando tanto para ela e tecendo comentário sobre sua beleza estranha.
            - Olha Pedro, a Adelice mata qualquer um de amores. Tenho tentando me aproximar, mas parece que nem me vê. Ou se vê mostra-se desinteressada. Já não é mais uma menina e deveria perceber que ando apaixonado, com o juízo fervendo. Não deveria fazer isso comigo. Trata-me como uma pessoa amiga, como se fosse um irmão. E é isto que mais me intriga, e assusta não me dar se quer oportunidade para dizer que a amo como um doido, amor que poderá se tornar violento!
            - Ora, Alcino, e quem não andam com os olhos em cima dela. É provável que alguns deles estejam merecendo suas atenções. Quem pode saber. As mulheres são peritas em simulação, especialmente quando não querem desagradar ninguém. E pelo que se vêem, todos a querem ao mesmo tempo. Intimamente ela deve ter até pena de ti, de mim e dos outros que não são o seu príncipe encantado. Pode ser também que esteja esperando, por timidez por conveniência, ou que lhe faça declaração de amor. Fica um esperando pelo outro, feito um pateta e o tempo vai passando em brancas nuvens. Quaisquer dias destes, alguém mais resoluto e atrevido, desencanta, a menina. E do jeito que ela é, quando se decidir, não mudará mais, mesmo que lhe ofereçam o céu, a terra e todos os tesouros.
            - Pelo menos tu que és meu amigo, deixa o caminho aberto para minha tentativa. Ninguém, estou certo, anda tão apaixonado quanto eu. No entanto, tenho o maior medo de que me recuse e venha com aquela conversa velha; “Quero ser apenas  tua boa amiga”.  E então, meto uma bala no céu da boca e rebento o crânio para não ter mais que pensar em nada. Além disso, não confio em ninguém.
            - Quanto mais demora, pior será. E agora te pergunto, para que queres uma mulher daquela se tens até medo de falar-lhe. Aproxima-te da menina, pega-a de surpresa, fala sério de tua paixão, dar-lhe um beijo inesperado, derrama toda tua paixão na boca e nos olhos da endiabrada. Embora seja isso uma faca de dois gumes, não há outra saída inteligente. Poderás ser aceito ou levar uma boa tapa na cara, mas isto é um risco de quem ama.
            - Teria coragem de fazer isto?
            - Já estava premeditado para fazê-lo. E não ponho em pratica por que me pedes e respeito nossa velha amizade. Mas faças isto que ninguém perceba. Uma tapa de mulher lembra-te é a que mais dói especialmente no teu caso. Mas aconselho-te. Se não sabe beijar, nem te metas. Um beijo mal dado  é um desastre. Lava e perfuma a boca suavemente, mas isso não é o mais importante. O principal é o jeito, o ardor do beijo, a maneira de prender a dona. Dependerá de tua habilidade amorosa.
            - Rapaz, esta tua receita é muito violenta. Tenho lá coragem para isto.
            - Então fica como está. Na duvida, na incerteza. Estas coisas a gente põe logo em pratos limpos. Deu, deu, não deu, paciência. E toma-se outra direção.
            Alcino ficou sem saber o que fizesse. Em todo caso havia de fazer alguma coisa de positivo.
            Passou a noite planejando o encontro. Medindo as palavras e avaliando as conseqüências da disparada de um beijo imprevisto. E sentia no rosto o ardor de uma tapa dessas de estalo. Pedro tinha idéias de doido. Quem diabo iria se atrever a sapecar um beijo numa moça pura daquela.
            Pedro estava era atirando-o no braseiro. Adelice não era moça para se brincar com ela. Sua paixão também não era uma brincadeira colegial. Seus 21 anos eram suficientes para pesar e medir as circunstâncias. O certo mesmo era abordar Adelice, declara-se claramente embora recebesse dela o desengano. Teria de conforma-se e confiar no seu próprio destino. Se fosse recusado perderia algumas noites de sono, mas haveria de confirma-se. Não tinha de ser e havia muita moça disponível e atraente. Adelice sairia rapidamente de sua memória. Pelo menos faria o possível para esquecê-la. Com outra menina ao seu lado tudo seria fácil.
            Pedro amanheceu de plano feito. Não passaria nem mais um dia. Do contrario, mudaria de rumo casar-se-ia com outra e até era perigoso casar-se com uma moça tão ambicionada. Às três horas da tarde foi procurar Adelice.
            Encontro-a em casa e estava encantadora. Percebeu que seria na verdade, muito difícil esquecer uma diabinha daquela. Apelou para o seu anjo da guarda, rezou para o poderoso Santo Antonio, pediu a proteção divina e aproximou-se tremendo. O revolver estava na cintura e poderia até suicidar-se aos pés de Adelice. E chegou até a pensar em matar friamente qualquer um que se casasse com ela. Não podia admitir que alguém viesse a possui-la.
            Oh! Adelice. Posso falar um instante contigo.
            - Pode, sim. E por que não. Será um prazer receber uma pessoa amiga. Aquela “amiga” causou-lhe arrepios.
            - Olha Adelice, sou um teu admirador. Seria uma grande felicidade poder sempre conversar um pouco contigo. Embora tenha bons amigos, sempre que não te vejo é como se estivesse só. Exerce uma poderosa atração sobre mim. Atração que me prendi a ti como se fosse um cativo de tua beleza. Em fim confesso-te, Adelice, amo-te perdidamente. Não imagina como me tenho martirizado a falta de coragem para dizer-te, o que sempre senti. Receio de que poderias até rir de mim. No entanto não tive mais como conter minha ansiedade, e resolvi expor-me definitivamente ao teu julgamento. Preferi submeter-me logo ao desengano a prolongar dias e noites imaginando um sim ou não, pensando na felicidade ou num sonho irrealizável. Sim, Adelice, uma moça tão admirada e desejada como és, com tanto e tantos admiradores, só por milagre poderias me dar qualquer atenção. Sei que não te mereço, mas deixo em tuas mãos, meu destino e minha felicidade. Peço-te, porem uma coisa. Não quero ouvir um não saído dos teus lábios. Bastará o silêncio para quer eu entenda. E então irei tentar esquecer minha má sorte, coisa impossível, bem sei, mas farei que me esqueça, silenciando minha desdita.
            Serei como um rio ou uma fonte que secou. Uma árvore que secou á margem do caminho por onde não haverá de passar mais ninguém. Longe de teus olhos, serei como um cego que perdeu o seu guia no meio de um deserto. Serei uma noite sem luar e sem estrelas. Um pássaro sem asas. Serei o silêncio e a solidão.
            - Pedro, não sabe por que Deus me fez uma criatura tão diferente das outras mulheres. Tenho um profundo desgosto disso. Olho-me no espelho e vejo que sou uma criatura estranha. Sempre acreditei que todos olhavam pra mim, não por amor, mas por me considerarem uma figura exótica e incapaz de amar alguém. Sempre fui por isto uma pessoa triste e amargurada. E alem disto, uma tímida e inibida. No entanto, tenho a impressão de que me considera uma moça vaidosa e cheia de orgulho; quando o que existia era apenas a sensação de ser um objeto curioso, sem alma e sem coração. E por que Pedro me vem dizer isto tão tarde. Poderias ter amenizado minhas incertezas e meus sofrimentos. Sentia que quem me olhava era simplesmente por curiosidade, curiosidade de quem vai a uma exposição para ver um animal que apresenta alguma anormalidade. Um gato com duas cabeças ou um coelho com cinco pernas. Agora, pergunto-te, que graça te atrai em mim. Não será apenas curiosidade tua. Curiosidade que depois de vista perde o encanto? Olha Pedro, não quero ser mais infeliz do que tenho sido.
            - Também não creio que desejas que eu venha a ser mais infeliz do que tenho sido. Levar toda minha confiança em ti, como se estivesse correndo atrás de uma miragem. Sonhando com o que me parecia inacessível, inatingível.
            - Quanto queria que alguém se aproximasse de mim para dizer-me ao menos que gostava de mim. Mas, não, só fazia me olhar e sorrir uma coisa indefinida que me angustiava. Pedro, não me diga mais nada. Apenas me diga novamente que me amas. Só isto. E te darei uma resposta.
            - Dizer que te amo é muito pouco ainda.  Quero dizer-te que te adoro e quero casar-me contigo, antes que eu morra de amor.
            - Então, aí tens minha resposta, sem uma palavra. Um beijo de amor é mais sonoro, mais doce, mais expressivo, mais comunicativo. E beijou-o como se estivesse se transferindo, derramando-se no coração de Pedro.
- Agora, Pedro sabe o que é a felicidade.
- E eu, o que é deixar de ser infeliz.
                
  Em 9-9-1986
*O conto faz parte do livro "Vidas Nordestinas", no prelo.

A ZELADORA




A ZELADORA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
           
Dona Maricota sem ter freqüentado colégio de freira, era caída pela reza e pelo zelo dos altares. Padre Tota nem tinha preocupação com a igreja. Confiava tudo a dona Maricota, desde a sacristia até o adro da igreja.
Santo não criava poeira. Não era possível existir uma zeladora mais dedicada e pontual.
            Maricota vivia de rendimentos de casas alugadas e de saldos bancários. Tentara casar-se algumas vezes, mas não aparecia o seu anjo da guarda. Tinha sempre a impressão de que só havia interesse pelos seus bens materiais e ela queria casar por amor, amor verdadeiro.
            O resto era coisa impura, contrária a sua religiosidade. Nunca! Ou gostava dela como mulher, ou então que se ficassem pra lá. Sabia muito bem viver sozinha, servindo à igreja, sob as graças de Deus e do padre Tota. Pelo menos duas vezes ao dia dona Maricota comparecia à igreja. Fiscalizava coisa por coisa como se fosse o seu patrimônio mais precioso. Fazia tudo com o maior fervor. Levava sempre um lírio ou uma rosa para enfeitar os altares. Os paramentos eram classificados e arrumados com um zelo especial. Antes das missas ou outros atos religiosos, separava cuidadosamente as peças que deveriam ser usadas. Substituíra nas gavetas das cômodas as bolinhas de naftalina, por um cravo, um jasmim, uma rosa ou um molhinho de raízes cheirosas. A naftalina era coisa para afugentar morcego. Padre Tota sempre tinha uma palavra de conforto e agradecimento. Sob tais estímulos dona Maricota ia se despreocupando de si própria. Já se  encostava aos seus trintas e dois anos, naquela monotonia de vida sem se aperceber que estava envelhecendo só e só, fazendo maiores economias e batendo poeira de santo. Era necessário um acontecimento que a despertasse. Acomodada como estava terminaria uma refinada barata-de-igreja. Contentava-se com cheiro de incenso e a visão do céu, que nem ao menos sabia onde era.
 – “Vai se casar a Florinda”.
 Os comentários corriam pelas esquinas. E é pra já. Talvez tenha havido alguma precipitação. Mais velha do que ela, de feições pouco atrativas, valendo-lhe apenas o formato do corpo de curvas acentuadas e o trato a que se dava, Florinda iria mesmo se casar. O noivo – quem diria –  um rapagão bem mais moço e fiscal da prefeitura. Entrava apenas com o físico e um emprego efetivo. Dona Florinda, solteirona, não dependeria dele. O noivo poderia até sair do emprego. Em todo caso, um fiscal, era sempre uma autoridade. Casamento com dia marcado. Noivos na igreja e padre Tota já paramentado todo, quando dona Maricota chegou. Teve um choque emocional. Pensou em sua vida de solitária, nas noites vazias, conversando apenas com os seus haveres. A igreja lhe era uma ocupação também vazia. Não deixava nada para esta vida. Era uma inútil para  si mesma. Será que não tinha um corpo como dona Florinda. O seu só havia servido para digerir e levá-la a Igreja. Coisa esquisita aquela. O que estaria sentindo dona Florinda ao lado do noivo que mais tarde estariam sozinhos em casa. Ela que se benzia quando lhe vinha qualquer pensamento que considerava impuro, ante-religioso. E dentro dela foi se acendendo esquisita chama em forma de desejos. Lembrou-se, então, de já haver sentido a mesma coisa quando era uma mocinha. Tentou mudar de pensamentos, mas inutilmente. Os noivos sorriam um para o outro e olhavam-se com uma espécie de gula. E quando o padre Tota disse “estão casados e vão viver felizes”, dona Maricota não teve mais dúvidas de que teria de ouvir também aquelas santas palavras.
            Saíram os noivos e ela saiu atrás procurando adivinhar o que iria acontecer mais logo descobriu, então, que também era mulher e que estava perdendo o melhor de sua vida. Dona Florinda nem era mulher de andar rezando nem batendo poeira de santo e o padre Tota desejou-lhe felicidade. Tinha sido até ali, uma inocente, uma boboca. Nem atinava como se havia deixado envolver por coisas místicas e se esquecendo de que também poderia ser feliz como dona Florinda. E o segredo estava justamente na coragem de arranjar também um homem para fazer-lhe companhia. Passou a se sentir só, incompleta e burra. Os homens não gostavam de carolismo, de baratas-de-igreja. Faziam até mau juízo. Quase sempre deveriam estar cheirando a batina de seu vigário e por isso não pensavam mais em ninguém.
            E o padre Tota que era um espertalhão. Sempre notava o seu jeitão de olhar para ela como quem fazia um convite. Mas tudo para ela era pecado. Desejava um lugarzinho no céu no coro das onze mil virgens.
            Despregou-se, entretanto, dessas idéias fantásticas. Foi à casa do padre Tota. Revelou-lhe que estava cansada. Iria abandonar a zeladoria. O tempo estava passando sem que cuidasse de si. Lamentava não poder colaborar por mais tempo. Pedia compreensão.
            - Não há que fazer. Já fez muito pela igreja de Cristo. Seja feliz
Dona Maricota saiu como se tivesse ganhado a liberdade e um noivo. Teria que freqüentar festas, visitar amigos, gastar mais um pouco consigo mesma. Melhores vestidos, mais decotados e colados, perfumes, em fim uma melhor apresentação. Falar sempre em casamento, na felicidade de um lar, passeios, conhecer outras cidades, tudo quanto pudesse despertar a atenção. De igreja só a lembrança, alguma missa aos domingos e longe do cheiro enjoado da sacristia. Ver os homens como um participante ativo na vida das mulheres. Conversar com eles sobre seus rendimentos. Sobre a vida que poderia levar. E aventura-se a dizer que pretendia casar-se. Precisava de alguém que tomasse conta dela e de seus haveres. Que havia deixado a igreja para cuidar de sua vida enquanto era tempo. Tudo dependeria de encontra um pretendente. E, de fato, começaram a aparecer. Conhecia a vida de todos e saberia selecionar. Na verdade, sua escolha estava feita. Sabia a quem desejava.  Não queria assim qualquer um. Casar só para usufruir vantagens, isto não. O seu escolhido não se manifestava e talvez nem pensasse nela. Seria necessário despertar-lhe atenção. Homem já bem vivido, solteirão, dono de uma pequena mercearia. Exatamente ele. Admirava-lhe a conduta, o respeito humano que merecia. Completamente destreinada no assunto necessitava de alguém para os primeiros contatos, ou as convenientes sondagens. Lembrou-se da lavadeira de seu Adroaldo Pereira, o seu bem amado. Conversou com Mirita, explicou-lhe minuciosamente a sua pretensão:
 – Como poderia viver só. Porque não procurava uma companheira ou uma moça já vivida, para se casar.
Tinha pressa nisso, pois se não desse certo, partiria para outro.
            Mirita sabia que seria gratificada e apressou-se. Lavou e passou rapidamente a roupa de Adroaldo e botou-se à casa do homem. Entregou a roupa, tomou a sua habitual dose de vinho de jurubeba e puxou conversa.
            - Seu Adroaldo. Como é que o senhor agüenta viver só, passar as noites falando com as paredes.
            Depois vai ficando velho, nervoso, aborrecido da vida e não encontra mais com quem se casar. E envelhecer sozinho é muito triste e até perigoso. Uma mulher em casa enche-a de alegria. Já pensou ter uma mulher para dormir com ela, fazer o arranjo da casa, cantar, colocar flores nos jarros. E aquelas outras coisas boas. O senhor sabe.
            - Na minha idade, Mirita, quem iria se interessar por mim. Não iria querer qualquer doidinha dessas que andam por aí, casando por casar, só para ter arrimo. Vivo dessa bodega e não poderei dar o conforto merecido a uma moça de categoria, caso a encontrasse. Difícil, muito difícil, Mirita.
            - Talvez não seu Adroaldo. Conheço uma moça, já de certa idade, pela casa dos trinta e vive bem. Ótima pessoa.
            - E quem será essa jóia?
            - O senhor conhece muito bem. Dona Maricota aquela que era zeladora da igreja. Deixou a igreja e hoje cuida somente de si e de seus bens. Vive também sozinha, num certo abandono. Daria certinho, no meu entender. Pode ser que não simpatize com o senhor, mas isso só vendo. Fale com ela como quem quer e não quer. Ela sempre faz compras aqui e será fácil observá-la.
            A gente conhece uma mulher quando deseja alguma coisa. Puxa-se o assunto por longe, fazendo arrodeios. Que é um bom partido, lá isso é. Honesta, bem pensada e bem de vida. Bens, dinheiro e zelo.
            - Mas olha. As mas línguas falavam dela com o padre Tota, que não bota água, à pinto. Quem sabe se não houve mesmo alguma coisa. Tantos anos metida na sacristia.
            - Esta não. Posso jurar. Ali é uma mulher direita, honesta. Uma moça completa. É possível que seu vigário tenha tentado. O bicho é esperto, mas, daquela ele não sentiu nem o cheiro. Ouvi dona Maricota, duvido. Sei de tudo que se passa por aqui. Aquela se não casar vai se juntar às onze mil virgens
            - Então, vou tentar, mas sem nenhuma esperança. Uma moça instruída, independente, bonitona, vai lá se interessar por um babeco de minha marca. Mas, olha lá. Não toques no assunto com ela.
            - Deus que me guarde. Fique sem cuidado.
            Seu Adroaldo ficou na escuta. Impaciente. Dona Maricota não aparecia. Deveria estar fazendo suas compras noutra mercearia.
            A velha Mirita aguçara as idéias de Adroaldo. Embora de temperamento calmo, voltado só para os seus negócios, começou a sentir qualquer coisa mexendo com ele, martelando-lhe o juízo. Que diabo tinha aquela maluca de meter na cachola idéias de casamento. Sempre viveu só, sem problemas, quando queria visitava as pensões de mulheres e lá elas ficavam sem lhe dar dor de cabeça. Agora se saía àquela avariada de uma figa, atiçando um fogo já quase apagado. Teve até vontade de tomar-lhe a lavagem de roupa, para deixar de ser intrometida. Mas será um castigo. Dona Maricota vivia acendendo-lhe a luzinha da memória. Procurava ocupação para desviá-la, mas era inútil. A velha Mirita botara-lhe feitiço.
– “Não tinha nada que se meter em minha vida de solteiro. Não era de sua conta”.
 Mal sabia que lhe viera já de encomenda, com os olhos famintos em cima da gratificação. No mais, poderia atolar os dois. E a coisa aconteceu depois de longos dias de espera.
            Dona Maricota chegou para fazer umas comprinhas. Entrou cumprimentou seu Adroaldo, com simplicidade e certa indiferença. Seu Adroaldo entristeceu. Mas não perdia ensejo de admirar o mulherão que estava pertinho dele. Notou, entretanto, que vinha usando perfume, de blusa nova, um pouco decotada, mangas curta, bem diferente dos tempos de zeladora.
            - Então, dona Maricota, soube que deixou a igreja. O padre Tota deve ter sentido muito.
            Em pouco tempo, entrava dona Maricota toda de branco, de braços dado com o Adroaldo, fazendo inveja as demais balzaquianas da cidade e ao padre Tota.

*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.