A
HERANÇA*
João Henriques da
Silva
(In Memoriam
20/09/1901 – 16/04/2003)
Aquilo é que é um sujeitinho de
sorte, todo mundo dizia. Filho único, o pai desaparece e fica com aquela
fortuna, sem ter dado um prego para formá-la. De escola em escola, de colégio
em colégio, sem fazer o menor esforço e recebe de mão beijada, uma riqueza
daquela: Fazendas, gado de entupir curral, casas e dinheiro. Bem que dizem que
a sorte é cega. Dos estudos não aproveitou nada. Não pegava num livro.
Fulgêncio, sem experiência nas
coisas da vida, andava tonto. Jamais pensara que poderia ficar sem mãe e sem
pai, sozinho, e desorientado. Se adivinhasse com o que ia lhe acontecer, teria
tomado outro rumo na vida. Se não tivesse nada, talvez não estivesse tão
cercado de preocupações. Mas o que iria fazer para preservar tudo quanto o pai
lhe deixara e sem qualquer participação sua. Não entendia de fazenda, nem de
negócios. Só de uma coisa estava certo. Não faria como outros que dentro de
pouco tempo põem fora tudo que receberam por herança.
Percebia bem os comentários que
faziam a seu respeito, mas isso deixava para lá. Iriam ver quem era Fulgêncio,
apesar de moço e inexperiente. No meio de suas preocupações surgiu-lhe uma
idéia. Consultar o melhor amigo de seu pai. Iriam ver como se põe uma herança
fora. E foi á casa do fazendeiro.
Tiburcio por cuja filha nutria uma
especial simpatia. Estava ali, dizia, para pedir orientação, sobre a
conservação lucrativa da herança que havia inesperadamente recebida. Até então
se despreocupara, inclusive, com os estudos na doce esperança de que teria por
toda vida, um pai que zelaria por tudo.
- É meu rapaz, fui sempre amigo de
teu pai. Era quase como se fossemos dois bons irmãos. É pena que tenha se ido
tão cedo. O destino é uma coisa terrível. Causa surpresa a cada instante.
Desaparece quem deveria viver e ser eterno e ficam os que não deveriam existir,
ou antes, não deveriam ter se gerado. Mas o mundo foi feito assim. Erros por
cima de erros. Também era coisa demais para ser feito em sete magros dias.
Haveria de sair muita coisa chamuscada. Nem sei para que tanta pressa. Muita
coisa ruim foi criada, o que não me parece ter sido obra de um Deus. Na certa
havia gente mascarada, falsificando as coisas. Há muito gato por ai passando por
lebre...
A maledicência, então, é uma coisa
terrível. Sabes que há muita gente por aí prognosticando que dentro de pouco
tempo consumirás toda a herança que o meu compadre Adriano te deixou. É isto
mesmo. Ninguém sai para te ajudar ou te aconselhar. Amam a destruição da
felicidade alheia. No entanto, tua intenção é bem outra e podes ficar certo de
que se confiares em minha ajuda, tua fortuna crescerá para desespero dos que
vaticinam tua destruição. E para começo de tua nova vida, começo dando-te um conselho
de amigo. Não poderás nem deverás continuar sozinho. Não será apenas a solidão
a te desencorajar. Ela própria conduzirá á dissipação, como um meio de fuga. O
medo da solidão fará com que se procurem ambientes onde campeia a voracidade
humana. E daí para frente, terá muitos amigos que serão uma atração. Mas amigos
da abundância, da dissipação, da consumação total. Enquanto tiveres dinheiro,
terás grandes amigos e não te faltarão elogios. É a regra geral, sem exceção.
Mas quando se for o ultimo ceitil, fugirão de ti com medo que passes a precisar
deles. E te acusarão como um perdulário, um inepto, um idiota e incapaz.
Devoraram a vítima e atira o esqueleto onde não se sinta o mau cheiro. Pois bem
meu Fulgêncio, sustenta o que é teu. Estás no caminho certo. Muitos haveres e
poucos amigos. Fora desta regra, perderás as duas coisas. Os amigos só duram
enquanto ouvem tinir das moedas, isto é, á exceção dos amigos desinteressados e
leais. Mas como ia te dizendo, a primeira coisa que tens a fazer é casar, mas
casar sem pressa e com alguém que não te confunda como o teu dinheiro ou os
teus bens. Escolhe uma moça que não necessite do que é teu. Moça sem ambição e
de boa raça. A raça também é importante.
- Não será que já tem alguma em
vista.
- Já e há bastante tempo.
- Quem, então, se me podes dizer.
- Para ser franco, está bem perto
do senhor. É a Aline, com sua permissão, desculpe-me. Sempre foi o meu grande
doirado sonho. Depende exclusivamente dela e dos pais.
- Mas será, Fulgêncio, que é minha
filha, a jovem que irá realmente completar a tua vida.
- Exatamente. Onde iria encontrar
outra com maiores dotes morais. Nem fazendo como Diógenes. Saindo em pleno dia
com candeeiro aceso!
- Ao que parece, não viestes
pensando em conselho para a boa direção de teus haveres, mas, para fazeres um
pedido de casamento...
- Apenas a primeira intenção, o que
seria um preparativo para a segunda, mas a oportunidade foi tão propicia que me
antecipei. Se der certo, serei muito feliz e daí para frente, não me faltará
mais nada. Estarei em casa, como se diz e os meus negócios crescerão.
Aline concordou e dentro de poucas
semanas o casamento realizou-se. Com a presença apenas de amigos diletos. Eram
poucos, mas qualificados. Daqueles que vaticinavam a diluição rápida da
herança, nem a sombra. E estes não desistiram:
- “agora sim, o tal coronel Teburcio
vai deixá-lo somente como a filha. Trocou uma coisa pela outra”.
Mas enganaram-se, Fulgêncio dia a
dia solidificava mais ainda o seu patrimônio, com o apoio e a orientação do
sogro. E para demonstrar sua prosperidade, comprava casas na cidade e fazendas
que alugava ou explorava lucrativamente. Em cada casa colocava uma placa
indicativa de propriedade. Queria era ver muita gente morando em suas casas,
seus inquilinos. Era uma forma de desmascarar os maldizentes. E, na verdade não
houve outra saída se não reconhecerem que o Fulgêncio possuía grande tino
administrativo.
Dentro de poucos anos, Fulgêncio era
uma das pessoas mais influentes da cidadezinha de Abelhas. Quem necessitava de
dinheiro em situação de emergência ou não, recorria a ele, o que significava
ser o mais procurado para os bons negócios:
- “vai, vai ao Fulgêncio, é dinheiro
vivo e na hora”. Alem disso, guarda inteiro sigilo. Também não é nenhum
usurário. Muitas vezes, até valoriza um pouco o que lhe oferecem. O
relacionamento é cada vez mais largo e já chegam até a falar em fazê-lo
prefeito. Sabe-se que não quer envolver-se em política, embora prometa ajudar
algum amigo honesto que se candidate. Mal tem tempo para cuidar do que é seu e
detesta boatos e acusações graciosas ou não.
Sabe que nas campanhas políticas, e
na administração da coisa publica, poucos respeitam a honorabilidade do candidato
ou do administrador. A ganância pelos cargos faz esquecer os princípios da
dignidade. É uma canalhice. E o que acontece é que os mais honestos, os mais
limpos, os mais bem intencionados e autênticos, raramente se elegem. No
entanto, aqueles que já cheiram a podre e que água não lava, são os eleitos. O
povão gosta é de trapaça, de cambalachos. Mas não é povinho só, não senhor. Os
piores são aqueles que antevêem oportunidades para coisas escuras.
Fulgêncio estava fora disso. Não adiantava
tentar. Possuía outras formas de ajudar a cidade e a seu povo. Alem disso não
faltavam candidatos. Estavam aí ás enxurrado, com lama e tudo. Quem já vira,
por ventura, eleger-se alguém que prometesse consertar as coisas. Só se for por
um engano ou algum milagre.
- Aline colaborava com o marido,
particularmente nos apontamentos dos bens e no registro dos animais e casas.
Não desejava encher-se de filhos, mas queria um casal ou como ela mesma dizia
um par. Homens ou mulheres, não havia importância. Um só seria criado com muito
mimo e lhe faltaria um companheiro mais tarde. Mas de tanto ir com sede á
fonte, lhe vieram quatro, uma mulher e três homens. Eram tão graciosos que até
pensava que poderia vir uma dúzia.
No entanto, a mãe lhe
desaconselhava: - olha Aline, filhos demais quebram as forças da gente e quando
crescem dão muitas preocupações. Querem tornar-se independentes e fazer o que
pretendem, sobretudo quando são extrovertidos. Ninguém os segura.
Dos meus seis filhos, posso-te dizer
que apenas um não me tirou muitas noites de sono. Saem, voltam quando querem
apesar do rigorismo de teu pai. Já as mulheres são diferentes um pouco. Muitas,
ainda umas meninas, inventam de namorar, não escolhem com quem. Basta o
sujeitinho ter uma cara de anjo, embora mal lavada, e já se enchem de paixão. E
cegam a gente. Os homens andam por onde querem e ninguém vê ninguém comenta; as
mulheres não. Qualquer liberdadezinha estará na boca do povo. Deixa como está.
Quatro já chegam para encher tua vida. Aposto que somente viestes, a saber, o
que é uma mãe, depois que tivestes filhos. Antes disto, uma mãe, mesmo adorada,
e uma Santa é não raro apenas uma mulher que teve filhos e não fazem o que os
filhos querem. Exigente, antiquada, palmatória do mundo. No entanto, só mesmo
uma mãe sabe verdadeiramente quanto lhe custa nove meses de gestação, as noites
de insônia, as preocupações nas doenças, o pensamento no futuro dos filhos. A
dor que sente quando tem que contrariá-los.
- É, mamãe, é assim mesmo. E então,
o primeiro é um Deus nos acuda. Não se dorme tranqüila, não se sabe se está
como sede, o que é que lhe doe. Um martírio. Se não fossem criaturinhas tão
mimosas e nascidas do amor da gente, daria para não deseja-los.
- Filhos que agente adora e que, por
vezes. Doem tanto na gente.
Em 22-7-1986
*O
conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
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