sexta-feira, 7 de setembro de 2012

A HERANÇA


A HERANÇA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Aquilo é que é um sujeitinho de sorte, todo mundo dizia. Filho único, o pai desaparece e fica com aquela fortuna, sem ter dado um prego para formá-la. De escola em escola, de colégio em colégio, sem fazer o menor esforço e recebe de mão beijada, uma riqueza daquela: Fazendas, gado de entupir curral, casas e dinheiro. Bem que dizem que a sorte é cega. Dos estudos não aproveitou nada. Não pegava num livro.
            Fulgêncio, sem experiência nas coisas da vida, andava tonto. Jamais pensara que poderia ficar sem mãe e sem pai, sozinho, e desorientado. Se adivinhasse com o que ia lhe acontecer, teria tomado outro rumo na vida. Se não tivesse nada, talvez não estivesse tão cercado de preocupações. Mas o que iria fazer para preservar tudo quanto o pai lhe deixara e sem qualquer participação sua. Não entendia de fazenda, nem de negócios. Só de uma coisa estava certo. Não faria como outros que dentro de pouco tempo põem fora tudo que receberam por herança.
            Percebia bem os comentários que faziam a seu respeito, mas isso deixava para lá. Iriam ver quem era Fulgêncio, apesar de moço e inexperiente. No meio de suas preocupações surgiu-lhe uma idéia. Consultar o melhor amigo de seu pai. Iriam ver como se põe uma herança fora. E foi á casa do fazendeiro.
Tiburcio por cuja filha nutria uma especial simpatia. Estava ali, dizia, para pedir orientação, sobre a conservação lucrativa da herança que havia inesperadamente recebida. Até então se despreocupara, inclusive, com os estudos na doce esperança de que teria por toda vida, um pai que zelaria por tudo.
            - É meu rapaz, fui sempre amigo de teu pai. Era quase como se fossemos dois bons irmãos. É pena que tenha se ido tão cedo. O destino é uma coisa terrível. Causa surpresa a cada instante. Desaparece quem deveria viver e ser eterno e ficam os que não deveriam existir, ou antes, não deveriam ter se gerado. Mas o mundo foi feito assim. Erros por cima de erros. Também era coisa demais para ser feito em sete magros dias. Haveria de sair muita coisa chamuscada. Nem sei para que tanta pressa. Muita coisa ruim foi criada, o que não me parece ter sido obra de um Deus. Na certa havia gente mascarada, falsificando as coisas. Há muito gato por ai passando por lebre...
            A maledicência, então, é uma coisa terrível. Sabes que há muita gente por aí prognosticando que dentro de pouco tempo consumirás toda a herança que o meu compadre Adriano te deixou. É isto mesmo. Ninguém sai para te ajudar ou te aconselhar. Amam a destruição da felicidade alheia. No entanto, tua intenção é bem outra e podes ficar certo de que se confiares em minha ajuda, tua fortuna crescerá para desespero dos que vaticinam tua destruição. E para começo de tua nova vida, começo dando-te um conselho de amigo. Não poderás nem deverás continuar sozinho. Não será apenas a solidão a te desencorajar. Ela própria conduzirá á dissipação, como um meio de fuga. O medo da solidão fará com que se procurem ambientes onde campeia a voracidade humana. E daí para frente, terá muitos amigos que serão uma atração. Mas amigos da abundância, da dissipação, da consumação total. Enquanto tiveres dinheiro, terás grandes amigos e não te faltarão elogios. É a regra geral, sem exceção. Mas quando se for o ultimo ceitil, fugirão de ti com medo que passes a precisar deles. E te acusarão como um perdulário, um inepto, um idiota e incapaz. Devoraram a vítima e atira o esqueleto onde não se sinta o mau cheiro. Pois bem meu Fulgêncio, sustenta o que é teu. Estás no caminho certo. Muitos haveres e poucos amigos. Fora desta regra, perderás as duas coisas. Os amigos só duram enquanto ouvem tinir das moedas, isto é, á exceção dos amigos desinteressados e leais. Mas como ia te dizendo, a primeira coisa que tens a fazer é casar, mas casar sem pressa e com alguém que não te confunda como o teu dinheiro ou os teus bens. Escolhe uma moça que não necessite do que é teu. Moça sem ambição e de boa raça. A raça também é importante.
            - Não será que já tem alguma em vista.
            - Já e há bastante tempo.
            - Quem, então, se me podes dizer.
            - Para ser franco, está bem perto do senhor. É a Aline, com sua permissão, desculpe-me. Sempre foi o meu grande doirado sonho. Depende exclusivamente dela e dos pais.
            - Mas será, Fulgêncio, que é minha filha, a jovem que irá realmente completar a tua vida.
            - Exatamente. Onde iria encontrar outra com maiores dotes morais. Nem fazendo como Diógenes. Saindo em pleno dia com candeeiro aceso!
            - Ao que parece, não viestes pensando em conselho para a boa direção de teus haveres, mas, para fazeres um pedido de casamento...
            - Apenas a primeira intenção, o que seria um preparativo para a segunda, mas a oportunidade foi tão propicia que me antecipei. Se der certo, serei muito feliz e daí para frente, não me faltará mais nada. Estarei em casa, como se diz e os meus negócios crescerão.
            Aline concordou e dentro de poucas semanas o casamento realizou-se. Com a presença apenas de amigos diletos. Eram poucos, mas qualificados. Daqueles que vaticinavam a diluição rápida da herança, nem a sombra. E estes não desistiram:
- “agora sim, o tal coronel Teburcio vai deixá-lo somente como a filha. Trocou uma coisa pela outra”.
            Mas enganaram-se, Fulgêncio dia a dia solidificava mais ainda o seu patrimônio, com o apoio e a orientação do sogro. E para demonstrar sua prosperidade, comprava casas na cidade e fazendas que alugava ou explorava lucrativamente. Em cada casa colocava uma placa indicativa de propriedade. Queria era ver muita gente morando em suas casas, seus inquilinos. Era uma forma de desmascarar os maldizentes. E, na verdade não houve outra saída se não reconhecerem que o Fulgêncio possuía grande tino administrativo.
            Dentro de poucos anos, Fulgêncio era uma das pessoas mais influentes da cidadezinha de Abelhas. Quem necessitava de dinheiro em situação de emergência ou não, recorria a ele, o que significava ser o mais procurado para os bons negócios:
- “vai, vai ao Fulgêncio, é dinheiro vivo e na hora”. Alem disso, guarda inteiro sigilo. Também não é nenhum usurário. Muitas vezes, até valoriza um pouco o que lhe oferecem. O relacionamento é cada vez mais largo e já chegam até a falar em fazê-lo prefeito. Sabe-se que não quer envolver-se em política, embora prometa ajudar algum amigo honesto que se candidate. Mal tem tempo para cuidar do que é seu e detesta boatos e acusações graciosas ou não.
            Sabe que nas campanhas políticas, e na administração da coisa publica, poucos respeitam a honorabilidade do candidato ou do administrador. A ganância pelos cargos faz esquecer os princípios da dignidade. É uma canalhice. E o que acontece é que os mais honestos, os mais limpos, os mais bem intencionados e autênticos, raramente se elegem. No entanto, aqueles que já cheiram a podre e que água não lava, são os eleitos. O povão gosta é de trapaça, de cambalachos. Mas não é povinho só, não senhor. Os piores são aqueles que antevêem oportunidades para coisas escuras.
 Fulgêncio estava fora disso. Não adiantava tentar. Possuía outras formas de ajudar a cidade e a seu povo. Alem disso não faltavam candidatos. Estavam aí ás enxurrado, com lama e tudo. Quem já vira, por ventura, eleger-se alguém que prometesse consertar as coisas. Só se for por um engano ou algum milagre.
            - Aline colaborava com o marido, particularmente nos apontamentos dos bens e no registro dos animais e casas. Não desejava encher-se de filhos, mas queria um casal ou como ela mesma dizia um par. Homens ou mulheres, não havia importância. Um só seria criado com muito mimo e lhe faltaria um companheiro mais tarde. Mas de tanto ir com sede á fonte, lhe vieram quatro, uma mulher e três homens. Eram tão graciosos que até pensava que poderia vir uma dúzia.
No entanto, a mãe lhe desaconselhava: - olha Aline, filhos demais quebram as forças da gente e quando crescem dão muitas preocupações. Querem tornar-se independentes e fazer o que pretendem, sobretudo quando são extrovertidos. Ninguém os segura.
Dos meus seis filhos, posso-te dizer que apenas um não me tirou muitas noites de sono. Saem, voltam quando querem apesar do rigorismo de teu pai. Já as mulheres são diferentes um pouco. Muitas, ainda umas meninas, inventam de namorar, não escolhem com quem. Basta o sujeitinho ter uma cara de anjo, embora mal lavada, e já se enchem de paixão. E cegam a gente. Os homens andam por onde querem e ninguém vê ninguém comenta; as mulheres não. Qualquer liberdadezinha estará na boca do povo. Deixa como está. Quatro já chegam para encher tua vida. Aposto que somente viestes, a saber, o que é uma mãe, depois que tivestes filhos. Antes disto, uma mãe, mesmo adorada, e uma Santa é não raro apenas uma mulher que teve filhos e não fazem o que os filhos querem. Exigente, antiquada, palmatória do mundo. No entanto, só mesmo uma mãe sabe verdadeiramente quanto lhe custa nove meses de gestação, as noites de insônia, as preocupações nas doenças, o pensamento no futuro dos filhos. A dor que sente quando tem que contrariá-los.
            - É, mamãe, é assim mesmo. E então, o primeiro é um Deus nos acuda. Não se dorme tranqüila, não se sabe se está como sede, o que é que lhe doe. Um martírio. Se não fossem criaturinhas tão mimosas e nascidas do amor da gente, daria para não deseja-los.
            - Filhos que agente adora e que, por vezes. Doem tanto na gente.
             
 Em 22-7-1986
*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.





                                                       



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