A
VOLTA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam
20/09/1901 – 16/04/2003
A janela do quarto amanheceu aberta
e a cama vazia. Francelina havia fugido e foi aquele alvoroço em casa de seu
Abílio.
Ninguém esperava que ela fizesse
aquilo. A família não queira o casamento, mas não chegava a ponto de proibi-lo
totalmente. Queria apenas que Francelina fizesse uma melhor escolha para não
começar logo errada. Mas a menina endoidou e pela madrugada sumiu, com o
namorado, um moço de boa família, mas desocupado
Na verdade não era um viciado e
estivera vários anos internado em um bom colégio da capital. Deixara os estudos
e vivia à custa do pai, dando de pernas pela cidade. Raramente ajudava nos
afazeres da casa comercial, apesar da insistência do pai.
Pegou Francelina e desapareceu,
levando pouco dinheiro e a inexperiência no trabalho. Era dessas criaturas que
não queriam nada na vida.
Procura daqui, procura dali e nem
notícia do paradeiro. As duas famílias desesperadas tiveram que se acomodar e
aguardar noticia. A única esperança que alimentaram era que quando o dinheiro
acabasse estariam de volta. Mas isso não aconteceu e lá e foram muitos meses e
mais de dois anos. Não adiantava chorar. Nem se maldizer. Saíram porque
quiseram e bem contra a vontade dos pais. Se não voltaram era certamente porque
estava indo bem. Mas as coisas têm sempre o seu dia e, inesperadamente, os dois
apareceram. Aliás, os três, pois Francelina já trazia um filho, gorducho e
esperto. Foi um dia de alegria imensa, embora nada soubessem ainda como estavam
vivendo lá fora. Bastava-lhe a presença dos três e o passado parecia não mais
existir. O tempo parou, encarregou-se do resto.
- Onde andou minha filha, que nunca
deu à menor noticia?
- Doidice minha, mamãe. Não queria
dar-lhe desgosto e sei que dei ainda maior. Fomos andando, andando sempre,
procurando onde viver. Trabalhando os dois em qualquer coisa que aparecia.
Tínhamos saudades de casa, mas também tínhamos vergonha de voltar.
Vida dura, mamãe, mais dura do que
possa imaginar. Dias longos e noites mais longas ainda, com o pensamento sempre
acordando a gente. Tinha-se a impressão que se estava para lá do fim do mundo, perdidos
no meio de um deserto. Mas tinha-se que arranjar comida e lugar onde morar.
Findamos parando numa cidadezinha do alto sertão, para lá das Espinharas –
Volta do Riacho. Nunca havia ouvido falar nesse lugar. Felizmente o povo era
bom e teve pena da gente. Perilo arranjou emprego numa casa comercial e eu
trabalhava cuidando de crianças numa casa de família. Lá mesmo comíamos e
dormíamos, separados. Não havia outro jeito. Só depois compramos uma cama e
alugamos um quarto onde passamos a viver. A sorte é que sempre nos entendemos
muito bem, e confiávamos um no outro. Findei engravidando, o que já esperava.
Com mais algum tempo alugamos uma casinha e comprávamos para ir pagando, o essencial.
Passamos a ganhar mais um pouco e já se estava mais tranqüilos. Era como se
estivéssemos ricos. Nasceu o menino. As famílias me ajudaram e ganhávamos o
leite para o Toninho. Nunca estivemos doentes. A doença braba era somente
saudade. Dias que a gente sofria mesmo. Vontade de sair correndo os dois até
aqui. Mamãe tenho tanta pena dessas moças que fazem como eu. E como dói andar
com o coração apertado e sem remédio. É essa tal de paixão que se tem pelas
pessoas. Sim, somente paixão e doidice. Amor. Amor é outra coisa bem diferente.
É a gente sofrer juntos sem reclamar, sem culpar um ao outro, pacientemente.
Conviver na santa paz, achando que tudo vai bem. Não querer mais se separar.
Amor é o que se tem por um filho, fazendo-o sempre sorrir. Mas a final de
contas, estamos aqui, vendo com os próprios olhos, papai, mamãe, os manos e não
apenas com a imaginação.
Quando saltei a janela do meu
quarto, pensava que o mundo era todo cor de rosa. Parecia que a vida estava em
doar-me e sentir os prazeres do corpo. Uma semana depois, ou melhor, logo no
dia seguinte, cai na realidade. Por alguns momentos de prazer, enfrentara o
desconhecido, quando poderia muito bem ter esperado ou deixado de ser mulher.
Nos dias próximos ao parto, quanto precisei de mamãe, de estar pertinho da
senhora, de papai, no conforto da família. Deus teve dó de mim e nada
aconteceu, mas ninguém avalia a angustia e a falta que me faziam.
Tudo, entretanto, já passou e creio
que já paguei minha ingratidão. Perdoem-me e me sentirei feliz. Viemos para
voltar. E já nem sei como será. Lá em Volta do Riacho temos bons amigos, mas
não temos parentes. Isto me aflige. Mas é lá que temos trabalho. Foi lá que
recomeçamos a viver. Não sei como será a despedida, mamãe, no entanto é o que
temos a fazer. Perilo anda amargurado. Desejaria não voltar, mas diz que foi um
ingrato com a família e não merece outra coisa.
- O que! Saírem mais daqui? Nunca,
Francelina. Nunca. Divide-se o pão em dois pedaços. Com ou sem trabalho, não
permitiremos o regresso. E não acredito que o pai de Perilo permita que ele
retorne a Volta do Riacho. Em todo caso, concordaremos que voltem lá para uma
despedida e os agradecimentos. Só, se é que não o fizeram ao sair.
- Na verdade já, mamãe. Não
desejaríamos mais voltar. Esta é que é a verdade... No entanto poderia ter que
voltar.
- Assim é que se pensa e se faz.
- Não sabíamos como iriam nos
receber depois de nossa ingratidão e de nossa doidice.
- Foi muito difícil no começo.
Ninguém se conformava. Depois tivemos que aceitar como uma coisa consumada.
Mesmo assim, não perdíamos a esperança de reencontrá-los. São desatinos dessa
mocidade sonhadora e inexperiente. Mocidade que
acha que todos os demais estão errados.
- Ah! Mamãe, errados andávamos nós.
E depois dos erros cometidos fica-se esmagado. Eu e Perilo, coitado, tivemos
dias amargos. Felizmente nos sobraram paciência e compreensão para resistir. Foram
muitos meses de duras provações. Mudamos inteiramente. Tinha receio que Perilo
desse para beber, e então tudo estaria completamente perdido. Mas não. O tostão
que pegava era para levar qualquer coisa para casa ou guarda-lo como quem guarda
um tesouro. Nunca pensei que uma moedinha de nada pudesse ter tanto valor.
Gostava de contar as poucas que ia juntando, coisa que antes nunca havia feito. Quando se tem tudo que
quer, não se dá valor a essas pequenas coisas. Quando estava em casa era assim.
Nem me passava pela cabeça que alguns centavos viessem a fazer falta. Não
imagina a alegria que tinha quando ia juntando e somava um cruzeiro. Tinha uma
fortuna. E a gente mesmo ria de tanta felicidade, naqueles momentos cruciais de
apertura.
- Francelina, vai ao teu cofre que
eu vou ao meu. Vamos ver quem tem mais. Parecíamos dois usurários. Mas somente
Deus sabia avaliar nossa riqueza. E cada um ia apresentando uma moedinha e
somando. Quase sempre eu ganhava. E chegávamos a nos beijar de contentamento.
– “Mulher, sobrou isto tudo, mulher!”.
Planejamos a volta para um fim de
semana, quando iríamos receber o último dinheiro. Era necessário ir juntando. E
lá se foram muitas semanas, até que um dia contamos o “dinheiro”. Pareciam
moedas de ouro. – Dê ou não dê, vamos embora, disse-me Perilo. Vamos enfrentar
o caminho de volta. O pior e o melhor dia será o da chegada à casa do lajedo
Vermelho. Como irão nos receber não se sabe!
- Não é isto que eu penso. O que me
preocupa, Perilo, é como nos apresentaremos. Com que cara e com que roupa.
- Ora, Francelina, com aquela mesma
cara com que saímos. Os pais da gente irão entender e perdoar nossa doidice. Não
posso mais te ver, tão angustiada e nem te quero ver sofre mais. O nosso
filhinho não tem culpa de nossas loucuras de amor.
*O
Conto pertence ao Livro, “Vidas Nordestinas”, no prelo.
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