quinta-feira, 6 de setembro de 2012

A VOLTA


A VOLTA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003

            A janela do quarto amanheceu aberta e a cama vazia. Francelina havia fugido e foi aquele alvoroço em casa de seu Abílio.
            Ninguém esperava que ela fizesse aquilo. A família não queira o casamento, mas não chegava a ponto de proibi-lo totalmente. Queria apenas que Francelina fizesse uma melhor escolha para não começar logo errada. Mas a menina endoidou e pela madrugada sumiu, com o namorado, um moço de boa família, mas desocupado
Na verdade não era um viciado e estivera vários anos internado em um bom colégio da capital. Deixara os estudos e vivia à custa do pai, dando de pernas pela cidade. Raramente ajudava nos afazeres da casa comercial, apesar da insistência do pai.
            Pegou Francelina e desapareceu, levando pouco dinheiro e a inexperiência no trabalho. Era dessas criaturas que não queriam nada na vida.
Procura daqui, procura dali e nem notícia do paradeiro. As duas famílias desesperadas tiveram que se acomodar e aguardar noticia. A única esperança que alimentaram era que quando o dinheiro acabasse estariam de volta. Mas isso não aconteceu e lá e foram muitos meses e mais de dois anos. Não adiantava chorar. Nem se maldizer. Saíram porque quiseram e bem contra a vontade dos pais. Se não voltaram era certamente porque estava indo bem. Mas as coisas têm sempre o seu dia e, inesperadamente, os dois apareceram. Aliás, os três, pois Francelina já trazia um filho, gorducho e esperto. Foi um dia de alegria imensa, embora nada soubessem ainda como estavam vivendo lá fora. Bastava-lhe a presença dos três e o passado parecia não mais existir. O tempo parou, encarregou-se do resto.
            - Onde andou minha filha, que nunca deu à menor noticia?
            - Doidice minha, mamãe. Não queria dar-lhe desgosto e sei que dei ainda maior. Fomos andando, andando sempre, procurando onde viver. Trabalhando os dois em qualquer coisa que aparecia. Tínhamos saudades de casa, mas também tínhamos vergonha de voltar.
            Vida dura, mamãe, mais dura do que possa imaginar. Dias longos e noites mais longas ainda, com o pensamento sempre acordando a gente. Tinha-se a impressão que se estava para lá do fim do mundo, perdidos no meio de um deserto. Mas tinha-se que arranjar comida e lugar onde morar. Findamos parando numa cidadezinha do alto sertão, para lá das Espinharas – Volta do Riacho. Nunca havia ouvido falar nesse lugar. Felizmente o povo era bom e teve pena da gente. Perilo arranjou emprego numa casa comercial e eu trabalhava cuidando de crianças numa casa de família. Lá mesmo comíamos e dormíamos, separados. Não havia outro jeito. Só depois compramos uma cama e alugamos um quarto onde passamos a viver. A sorte é que sempre nos entendemos muito bem, e confiávamos um no outro. Findei engravidando, o que já esperava. Com mais algum tempo alugamos uma casinha e comprávamos para ir pagando, o essencial. Passamos a ganhar mais um pouco e já se estava mais tranqüilos. Era como se estivéssemos ricos. Nasceu o menino. As famílias me ajudaram e ganhávamos o leite para o Toninho. Nunca estivemos doentes. A doença braba era somente saudade. Dias que a gente sofria mesmo. Vontade de sair correndo os dois até aqui. Mamãe tenho tanta pena dessas moças que fazem como eu. E como dói andar com o coração apertado e sem remédio. É essa tal de paixão que se tem pelas pessoas. Sim, somente paixão e doidice. Amor. Amor é outra coisa bem diferente. É a gente sofrer juntos sem reclamar, sem culpar um ao outro, pacientemente. Conviver na santa paz, achando que tudo vai bem. Não querer mais se separar. Amor é o que se tem por um filho, fazendo-o sempre sorrir. Mas a final de contas, estamos aqui, vendo com os próprios olhos, papai, mamãe, os manos e não apenas com a imaginação.
Quando saltei a janela do meu quarto, pensava que o mundo era todo cor de rosa. Parecia que a vida estava em doar-me e sentir os prazeres do corpo. Uma semana depois, ou melhor, logo no dia seguinte, cai na realidade. Por alguns momentos de prazer, enfrentara o desconhecido, quando poderia muito bem ter esperado ou deixado de ser mulher. Nos dias próximos ao parto, quanto precisei de mamãe, de estar pertinho da senhora, de papai, no conforto da família. Deus teve dó de mim e nada aconteceu, mas ninguém avalia a angustia e a falta que me faziam.
            Tudo, entretanto, já passou e creio que já paguei minha ingratidão. Perdoem-me e me sentirei feliz. Viemos para voltar. E já nem sei como será. Lá em Volta do Riacho temos bons amigos, mas não temos parentes. Isto me aflige. Mas é lá que temos trabalho. Foi lá que recomeçamos a viver. Não sei como será a despedida, mamãe, no entanto é o que temos a fazer. Perilo anda amargurado. Desejaria não voltar, mas diz que foi um ingrato com a família e não merece outra coisa.
            - O que! Saírem mais daqui? Nunca, Francelina. Nunca. Divide-se o pão em dois pedaços. Com ou sem trabalho, não permitiremos o regresso. E não acredito que o pai de Perilo permita que ele retorne a Volta do Riacho. Em todo caso, concordaremos que voltem lá para uma despedida e os agradecimentos. Só, se é que não o fizeram ao sair.
            - Na verdade já, mamãe. Não desejaríamos mais voltar. Esta é que é a verdade... No entanto poderia ter que voltar.
            - Assim é que se pensa e se faz.
            - Não sabíamos como iriam nos receber depois de nossa ingratidão e de nossa doidice.
            - Foi muito difícil no começo. Ninguém se conformava. Depois tivemos que aceitar como uma coisa consumada. Mesmo assim, não perdíamos a esperança de reencontrá-los. São desatinos dessa mocidade sonhadora e inexperiente. Mocidade que  acha que todos os demais estão errados.
            - Ah! Mamãe, errados andávamos nós. E depois dos erros cometidos fica-se esmagado. Eu e Perilo, coitado, tivemos dias amargos. Felizmente nos sobraram paciência e compreensão para resistir. Foram muitos meses de duras provações. Mudamos inteiramente. Tinha receio que Perilo desse para beber, e então tudo estaria completamente perdido. Mas não. O tostão que pegava era para levar qualquer coisa para casa ou guarda-lo como quem guarda um tesouro. Nunca pensei que uma moedinha de nada pudesse ter tanto valor. Gostava de contar as poucas que ia juntando, coisa que antes  nunca havia feito. Quando se tem tudo que quer, não se dá valor a essas pequenas coisas. Quando estava em casa era assim. Nem me passava pela cabeça que alguns centavos viessem a fazer falta. Não imagina a alegria que tinha quando ia juntando e somava um cruzeiro. Tinha uma fortuna. E a gente mesmo ria de tanta felicidade, naqueles momentos cruciais de apertura.
            - Francelina, vai ao teu cofre que eu vou ao meu. Vamos ver quem tem mais. Parecíamos dois usurários. Mas somente Deus sabia avaliar nossa riqueza. E cada um ia apresentando uma moedinha e somando. Quase sempre eu ganhava. E chegávamos a nos beijar de contentamento.
– “Mulher, sobrou  isto tudo, mulher!”.
            Planejamos a volta para um fim de semana, quando iríamos receber o último dinheiro. Era necessário ir juntando. E lá se foram muitas semanas, até que um dia contamos o “dinheiro”. Pareciam moedas de ouro. – Dê ou não dê, vamos embora, disse-me Perilo. Vamos enfrentar o caminho de volta. O pior e o melhor dia será o da chegada à casa do lajedo Vermelho. Como irão nos receber não se sabe!
            - Não é isto que eu penso. O que me preocupa, Perilo, é como nos apresentaremos. Com que cara e com que roupa.
            - Ora, Francelina, com aquela mesma cara com que saímos. Os pais da gente irão entender e perdoar nossa doidice. Não posso mais te ver, tão angustiada e nem te quero ver sofre mais. O nosso filhinho não tem culpa de nossas loucuras de amor.

*O Conto pertence ao Livro, “Vidas Nordestinas”, no prelo.

  

            

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