A
ZELADORA*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
Dona Maricota
sem ter freqüentado colégio de freira, era caída pela reza e pelo zelo dos
altares. Padre Tota nem tinha preocupação com a igreja. Confiava tudo a dona
Maricota, desde a sacristia até o adro da igreja.
Santo não
criava poeira. Não era possível existir uma zeladora mais dedicada e pontual.
Maricota vivia de
rendimentos de casas alugadas e de saldos bancários. Tentara casar-se algumas
vezes, mas não aparecia o seu anjo da guarda. Tinha sempre a impressão de que
só havia interesse pelos seus bens materiais e ela queria casar por amor, amor
verdadeiro.
O resto era coisa
impura, contrária a sua religiosidade. Nunca! Ou gostava dela como mulher, ou
então que se ficassem pra lá. Sabia muito bem viver sozinha, servindo à igreja,
sob as graças de Deus e do padre Tota. Pelo menos duas vezes ao dia dona
Maricota comparecia à igreja. Fiscalizava coisa por coisa como se fosse o seu
patrimônio mais precioso. Fazia tudo com o maior fervor. Levava sempre um lírio
ou uma rosa para enfeitar os altares. Os paramentos eram classificados e
arrumados com um zelo especial. Antes das missas ou outros atos religiosos,
separava cuidadosamente as peças que deveriam ser usadas. Substituíra nas
gavetas das cômodas as bolinhas de naftalina, por um cravo, um jasmim, uma rosa
ou um molhinho de raízes cheirosas. A naftalina era coisa para afugentar
morcego. Padre Tota sempre tinha uma palavra de conforto e agradecimento. Sob
tais estímulos dona Maricota ia se despreocupando de si própria. Já se encostava aos seus trintas e dois anos,
naquela monotonia de vida sem se aperceber que estava envelhecendo só e só,
fazendo maiores economias e batendo poeira de santo. Era necessário um
acontecimento que a despertasse. Acomodada como estava terminaria uma refinada
barata-de-igreja. Contentava-se com cheiro de incenso e a visão do céu, que nem
ao menos sabia onde era.
– “Vai se casar a Florinda”.
Os comentários corriam pelas esquinas. E é pra
já. Talvez tenha havido alguma precipitação. Mais velha do que ela, de feições
pouco atrativas, valendo-lhe apenas o formato do corpo de curvas acentuadas e o
trato a que se dava, Florinda iria mesmo se casar. O noivo – quem diria – um rapagão bem mais moço e fiscal da
prefeitura. Entrava apenas com o físico e um emprego efetivo. Dona Florinda,
solteirona, não dependeria dele. O noivo poderia até sair do emprego. Em todo
caso, um fiscal, era sempre uma autoridade. Casamento com dia marcado. Noivos
na igreja e padre Tota já paramentado todo, quando dona Maricota chegou. Teve
um choque emocional. Pensou em sua vida de solitária, nas noites vazias,
conversando apenas com os seus haveres. A igreja lhe era uma ocupação também
vazia. Não deixava nada para esta vida. Era uma inútil para si mesma. Será que não tinha um corpo como
dona Florinda. O seu só havia servido para digerir e levá-la a Igreja. Coisa
esquisita aquela. O que estaria sentindo dona Florinda ao lado do noivo que
mais tarde estariam sozinhos em casa. Ela que se benzia quando lhe vinha
qualquer pensamento que considerava impuro, ante-religioso. E dentro dela foi
se acendendo esquisita chama em forma de desejos. Lembrou-se, então, de já
haver sentido a mesma coisa quando era uma mocinha. Tentou mudar de
pensamentos, mas inutilmente. Os noivos sorriam um para o outro e olhavam-se com
uma espécie de gula. E quando o padre Tota disse “estão casados e vão viver
felizes”, dona Maricota não teve mais dúvidas de que teria de ouvir também
aquelas santas palavras.
Saíram os noivos
e ela saiu atrás procurando adivinhar o que iria acontecer mais logo descobriu,
então, que também era mulher e que estava perdendo o melhor de sua vida. Dona
Florinda nem era mulher de andar rezando nem batendo poeira de santo e o padre
Tota desejou-lhe felicidade. Tinha sido até ali, uma inocente, uma boboca. Nem atinava
como se havia deixado envolver por coisas místicas e se esquecendo de que
também poderia ser feliz como dona Florinda. E o segredo estava justamente na
coragem de arranjar também um homem para fazer-lhe companhia. Passou a se
sentir só, incompleta e burra. Os homens não gostavam de carolismo, de
baratas-de-igreja. Faziam até mau juízo. Quase sempre deveriam estar cheirando
a batina de seu vigário e por isso não pensavam mais em ninguém.
E o padre Tota
que era um espertalhão. Sempre notava o seu jeitão de olhar para ela como quem
fazia um convite. Mas tudo para ela era pecado. Desejava um lugarzinho no céu
no coro das onze mil virgens.
Despregou-se,
entretanto, dessas idéias fantásticas. Foi à casa do padre Tota. Revelou-lhe
que estava cansada. Iria abandonar a zeladoria. O tempo estava passando sem que
cuidasse de si. Lamentava não poder colaborar por mais tempo. Pedia
compreensão.
- Não há que
fazer. Já fez muito pela igreja de Cristo. Seja feliz
Dona Maricota
saiu como se tivesse ganhado a liberdade e um noivo. Teria que freqüentar festas,
visitar amigos, gastar mais um pouco consigo mesma. Melhores vestidos, mais
decotados e colados, perfumes, em fim uma melhor apresentação. Falar sempre em
casamento, na felicidade de um lar, passeios, conhecer outras cidades, tudo
quanto pudesse despertar a atenção. De igreja só a lembrança, alguma missa aos
domingos e longe do cheiro enjoado da sacristia. Ver os homens como um
participante ativo na vida das mulheres. Conversar com eles sobre seus
rendimentos. Sobre a vida que poderia levar. E aventura-se a dizer que
pretendia casar-se. Precisava de alguém que tomasse conta dela e de seus
haveres. Que havia deixado a igreja para cuidar de sua vida enquanto era tempo.
Tudo dependeria de encontra um pretendente. E, de fato, começaram a aparecer.
Conhecia a vida de todos e saberia selecionar. Na verdade, sua escolha estava
feita. Sabia a quem desejava. Não queria
assim qualquer um. Casar só para usufruir vantagens, isto não. O seu escolhido
não se manifestava e talvez nem pensasse nela. Seria necessário despertar-lhe
atenção. Homem já bem vivido, solteirão, dono de uma pequena mercearia.
Exatamente ele. Admirava-lhe a conduta, o respeito humano que merecia.
Completamente destreinada no assunto necessitava de alguém para os primeiros
contatos, ou as convenientes sondagens. Lembrou-se da lavadeira de seu Adroaldo
Pereira, o seu bem amado. Conversou com Mirita, explicou-lhe minuciosamente a
sua pretensão:
– Como poderia viver só. Porque não procurava
uma companheira ou uma moça já vivida, para se casar.
Tinha pressa
nisso, pois se não desse certo, partiria para outro.
Mirita sabia que
seria gratificada e apressou-se. Lavou e passou rapidamente a roupa de Adroaldo
e botou-se à casa do homem. Entregou a roupa, tomou a sua habitual dose de
vinho de jurubeba e puxou conversa.
- Seu Adroaldo.
Como é que o senhor agüenta viver só, passar as noites falando com as paredes.
Depois vai
ficando velho, nervoso, aborrecido da vida e não encontra mais com quem se
casar. E envelhecer sozinho é muito triste e até perigoso. Uma mulher em casa
enche-a de alegria. Já pensou ter uma mulher para dormir com ela, fazer o
arranjo da casa, cantar, colocar flores nos jarros. E aquelas outras coisas
boas. O senhor sabe.
- Na minha idade,
Mirita, quem iria se interessar por mim. Não iria querer qualquer doidinha
dessas que andam por aí, casando por casar, só para ter arrimo. Vivo dessa
bodega e não poderei dar o conforto merecido a uma moça de categoria, caso a
encontrasse. Difícil, muito difícil, Mirita.
- Talvez não seu
Adroaldo. Conheço uma moça, já de certa idade, pela casa dos trinta e vive bem.
Ótima pessoa.
- E quem será
essa jóia?
- O senhor
conhece muito bem. Dona Maricota aquela que era zeladora da igreja. Deixou a
igreja e hoje cuida somente de si e de seus bens. Vive também sozinha, num
certo abandono. Daria certinho, no meu entender. Pode ser que não simpatize com
o senhor, mas isso só vendo. Fale com ela como quem quer e não quer. Ela sempre
faz compras aqui e será fácil observá-la.
A gente conhece
uma mulher quando deseja alguma coisa. Puxa-se o assunto por longe, fazendo
arrodeios. Que é um bom partido, lá isso é. Honesta, bem pensada e bem de vida.
Bens, dinheiro e zelo.
- Mas olha. As
mas línguas falavam dela com o padre Tota, que não bota água, à pinto. Quem
sabe se não houve mesmo alguma coisa. Tantos anos metida na sacristia.
- Esta não. Posso
jurar. Ali é uma mulher direita, honesta. Uma moça completa. É possível que seu
vigário tenha tentado. O bicho é esperto, mas, daquela ele não sentiu nem o
cheiro. Ouvi dona Maricota, duvido. Sei de tudo que se passa por aqui. Aquela
se não casar vai se juntar às onze mil virgens
- Então, vou
tentar, mas sem nenhuma esperança. Uma moça instruída, independente, bonitona,
vai lá se interessar por um babeco de minha marca. Mas, olha lá. Não toques no
assunto com ela.
- Deus que me
guarde. Fique sem cuidado.
Seu Adroaldo
ficou na escuta. Impaciente. Dona Maricota não aparecia. Deveria estar fazendo
suas compras noutra mercearia.
A velha Mirita
aguçara as idéias de Adroaldo. Embora de temperamento calmo, voltado só para os
seus negócios, começou a sentir qualquer coisa mexendo com ele, martelando-lhe
o juízo. Que diabo tinha aquela maluca de meter na cachola idéias de casamento.
Sempre viveu só, sem problemas, quando queria visitava as pensões de mulheres e
lá elas ficavam sem lhe dar dor de cabeça. Agora se saía àquela avariada de uma
figa, atiçando um fogo já quase apagado. Teve até vontade de tomar-lhe a lavagem
de roupa, para deixar de ser intrometida. Mas será um castigo. Dona Maricota
vivia acendendo-lhe a luzinha da memória. Procurava ocupação para desviá-la,
mas era inútil. A velha Mirita botara-lhe feitiço.
– “Não tinha
nada que se meter em minha vida de solteiro. Não era de sua conta”.
Mal sabia que lhe viera já de encomenda, com
os olhos famintos em cima da gratificação. No mais, poderia atolar os dois. E a
coisa aconteceu depois de longos dias de espera.
Dona Maricota
chegou para fazer umas comprinhas. Entrou cumprimentou seu Adroaldo, com
simplicidade e certa indiferença. Seu Adroaldo entristeceu. Mas não perdia
ensejo de admirar o mulherão que estava pertinho dele. Notou, entretanto, que
vinha usando perfume, de blusa nova, um pouco decotada, mangas curta, bem
diferente dos tempos de zeladora.
- Então, dona Maricota,
soube que deixou a igreja. O padre Tota deve ter sentido muito.
Em pouco tempo,
entrava dona Maricota toda de branco, de braços dado com o Adroaldo, fazendo
inveja as demais balzaquianas da cidade e ao padre Tota.
*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário