A
PRETINHA CRISTINA*
João Henriques da
Silva
(In Memoriam
20/09/1901 – 16/04/2003)
Dona Zefa criou a Pretinha Cristina
como se fosse sua filha legitima. Ninguém sabia quem era o pai de Cristina; e a
mãe morrera no parto. Alguém teria que socorrer a pretinha e foi dona Zefa quem
a levou. E jurou caprichar para fazer da menina uma moça direita. Só por ser
pretinha daquele jeito, não queria dizer que não pudesse ser uma criatura igual
às outras. Quando a apanhou já notara que Cristina possuía umas feições
agradáveis. Nem tinha lábios grossos nem nariz achatado. O cabelo também não
era encarapinhado. Estava visto que deveria ter uma mistura de sangue. Mas Dona
Zefa era uma mulher pobre, que levava a vida a fazer cestinhas de palha e de
cipó para manter-se. A sorte é que era muito hábil em seu artesanato e tinha a
sorte de não lhe faltar encomendas. Nas horas vagas fazia cocada e
bolo-pé-de-moleque para entregar nas bodegas. Era uma ajuda. Graça ao seu
trabalho tinha sempre uma sobrazinha de dinheiro. Sabia que cuidar da menina
lhe tomaria um bocado de tempo, mas não seria ela que iria desprezar uma menina
sem pai e sem mãe. Talvez um dia, quem havia de saber, tivesse alguém para
ampará-la na dura velhice. Dependeria da sorte, mas o pior era não ter esperança
nenhuma. Na verdade não confiava muito em criar filho dos outros, mas toda
regra tinha exceção. Cristina poderia ser uma boa filha e por que não. Iria
criá-la com essa intenção. E o fato é que Cristina foi crescendo, tornou-se uma
mocinha e foi aí que Dona Zefa teve medo. O diabo da negrinha era bonita demais
para não deixar de preocupá-la. Bonita e alegre. Talvez fosse lhe dar muito
trabalho. Era lógico que cairiam em cima dela. O mundo estava salpicado de
malandros e desses que achavam que as negrinhas não tinham dono e era de quem
fosse mais esperto. E uma daquela, então, era um desafio. Dona Zefa, por isto,
andava de olho em cima dela. Não gostava de mandá-la pra rua sozinha e muito
menos acompanhada por certas bichotinhas cheias de liberdade. A coisa, ela
sabia, começava de uma conversinha, de um olhar atrevido, de uma indireta. Mas
sabia também que nem todas as moças se deixavam levar facilmente. Em todo caso
não saía da vigilância e dos conselhos de uma forma indireta; sem dar a
entender que estava com receio de alguma coisa. O certo mesmo era demonstrar
que possuía o máximo de confiança em Cristina.
E certo dia Cristina lhe falou com
ares de contrariedade.
- Olha mãe, tem uns sujeitinhos que
andam me olhando como se fosse uma novidade. Outros procuram me acompanhar com
vontade de falar comigo.
- Tem nada não, minha filha. Os
homens são assim mesmo. Não podem ver uma mulher bonita que não fiquem todos
assanhados. E quando não se dá confiança eles param de perseguir. O que querem
é explorar as moças inexperientes e depois as deixam para um canto como se
fosse uma vassoura velha e imprestável. Não se pode, nem de longe, confiar
neles. Quando há boas intenções, procuram as moças em suas casas para uma
conversa clara e honesta.
- Pois é mãe, nem se preocupe
comigo, moleque, comigo vai rodar. Fui criada com muito amor e sei muito bem o
que quero. Se tiver de querer alguém, será para me casar e se a Senhora aprovar
e consentir. Fora disso, vão perder tempo com esta negrinha aqui. Se estiverem julgando
que negro é coisa á toa e sem dono, estão enganados. Não me dou não me troco e
nem me vendo.
- É assim que se faz minha filha. E
tem mais. Casamento mesmo é necessário ter muito cuidado. Há muito sujeito
safado que quando vêem que não conseguem nada prometem e juram casar,
abandonando as coitadas logo depois que fazem o que queriam. É uma artimanha
dos canalhas. E o mundo está cheinho deles. Pra te falar a verdade às vezes é
melhor nem casar. Eu mesma tenho experiência disso. Casei-me mocinha e
inexperiente e fui atirada fora quando o sujeito bem quis. Procurei vingar-me.
- E vingou-se?
- Que nada. Mulher é bicho frágil.
Nem me vinguei, por falta de coragem, e nem me casei mais...
Dona Zefa não iria contar o que fez
e o que poderia acontecer se abusassem de Cristina. Pior ainda. Cristina,
negrinha bonita como era, tornava-se difícil escapar. Saía de uma, mais cairia
nos braços de outro. Até parecia que a coisa tinha os dias marcados. Em todo
caso demonstrava confiar em Cristina para dar-lhe mais resistência. A confiança
ajudaria muito.
Cristina, na escola, chamava
atenção. E não era para menos. Com um rostinho daquele e um corpo tão bem
modelado, despertava cobiça. Quando chegava e quando saía das aulas sempre
tinha alguém a observá-la e a procurar atraí-la. Bem que ela notava isso. E foi
ficando envaidecida e o capeta começou a catucá-la lá por dentro, a sentir umas
coisas diferentes como se o sangue se agitasse nas veias e o corpo
desabrochando como uma flor que espera só mais um pouco para se abrir. Cristina
teve vontade de contar tudo a Dona Zefa, mas poderia ser só uma tolice, uma
coisa passageira. Mas, que nada, todos os dias o calor e aquela esquisitice iam
aumentando. Procurava fugir daquelas agonias, era mesmo que não estar tentando
nada. Não havia outra saída senão contar a Dona Zefa o que lhe estava
acontecendo sem ela querer.
- É Cristina, isto acontece com
todas as moças em tua idade. Vai indo, indo e essa coisa sai do mesmo jeito que
chegou.
- Mas, mãe, já faz tempo que começou
e só faz aumentar. Será que sou diferente das outras moças. Quem sabe, sangue
de preta. Acho que alguém que me deseja, está botando olhado. Pode ser? Há
tanta gente que olha pra mim.
- Bem que pode, ma não ligues para
isto.
- Olhe, quando noto que alguém está olhando
para mim a coisa aumenta. E por que será!
- Qualquer um que olhe, ou tem
alguém em especial que ferva mais dentro de ti?
- É, tem um. E já não é tão moço.
- Preto ou branco?
- Alvo. E Deus me livre de negro, já
sofro de mais por isso.
- Pois é. Não se deixe envolver que
isto passa. São fases na vida das mulheres.
Cristina terminou os estudos que
podia fazer. Agora era ajudar a mãe Zefa ganhar dinheiro e cuidar mais dela.
Era a sua vez. Já havia feito demais e notava que estava cansada ou quase.
Tomou para si quase todos os serviços dos doces que os meninos vendiam na rua
ou encomendavam. Preta bonita continuava a ser visada pelos espertalhões. No
entanto, tudo inutilmente. Cristina só namoraria para casar. Não adiantava
procurar envolve-la. Certo seria que qualquer deslize seu a levaria á perdição.
Já não era mais uma menina e entendia muito bem o que significavam as ligações
passageiras ou os casamentos por simples paixão, paixão que se acaba com a tal
de lua-de-mel. Seguiria a orientação de mãe Zefa, certa, certíssima de que só
lhe encaminharia para o bem. Afinal, não se preocupava com casamento. No seu
tempo aconteceria se tivesse de acontecer. Cristina fez prosperar as atividades
da casa. E como possuía inclinação para bordado e costura, comprou uma maquina
à prestação.
Tomou as primeiras encomendas,
desincumbiu-se satisfatoriamente. Era mais um derivativo rentável. Já não
necessitava mais de caçar emprego. O bom mesmo era ter uma profissão liberal,
sem dever favor político a ninguém. Mãe Zefa já parecia outra. Com aparência
invejável para sua categoria social. Cristina deixara a escola, mas não deixara
os livros. O seu desejo era adquirir maiores conhecimentos. Português,
geografia, matemática e ciências naturais eram revistos e avançava sempre. Mais
tarde, por iniciativa de uma ex-colega, treinou datilografia, pondo a sua
disposição a máquina do escritório de seu pai, nos dias de domingo, feriados e
dias santos. Fez progresso relativamente rápido. A colega acenava-lhe a
possibilidade de inscrever-se em concurso bancário ou de algum órgão oficial.
Cristina fez-lhe um reparo. Preta
como era dificilmente teria vez para nomeação. Quem haveria de querer negra em
sua repartição.
- Nem pense nisso, Cristina.
Dependerá somente da classificação. No Brasil não há descriminação de cor.
- Não há, mas preferem as morenas e
as brancas. Preto é preto mesmo, enquanto o mundo for mundo.
- Olha uma moça com as tuas feições,
bonita, simpática e alegre, quem não deseja. Verás.
Quase um ano depois, foi aberta
inscrição para um instituto de previdência. Muito a custo Cristina
inscreveu-se. Teria que ir a Capital. Reforçou os estudos dentro da
programação. Memória não lhe faltava. E não era pequena sua sorte. Classificada
em sexto lugar e logo depois nomeada. Muita gente de boa família ficou na
poeira.
Quando Cristina - a pretinha –
chegou aprovada, a cidade não comentava outra coisa. – “A Pretinha Cristina,
sem pai, sem mãe, sem parentes, vai ser nomeada para a previdência. Está aí o
que é esforço, boa vontade e coragem. Os filhos de família nem foram lá e se
fossem não seriam aprovados. A negra Cristina tem raça”.
Depois de nomeada, começou a ser
prestigiada. Convite para clubes e festas e não faltava quem pretendesse casar
com o seu ordenado. De recusa em recusa, Cristina chegou onde desejava. Casar
com quem não necessitava de seu ordenado.
Seu Teodósio, quarentão, afortunado,
com uma boa fazenda e padaria, aventurou-se e falou com a Dona Zefa, fazendo
uma sondagem: Casando com ele não precisaria de emprego e se desse errado e ela
o abandonasse, não a deixaria sem apoio financeiro. Mas a mãe Zefa nada
prometeu. Aprovaria ou não o que a filha pretendesse. Não tomaria qualquer
iniciativa, para não sugestiona-la. Que fosse se aproximar da menina, fizesse
sua declaração e só então saberia onde estava navegando. E isso era de certa
forma difícil, pois Cristina nem adivinhava das intenções.
Seu Teodosio mordeu a língua. Estava
um tanto atordoado. Mas não queria que aquela negrinha bonita caísse nos braços
de outro. Toda vida sentia atração pelas negrinhas. E Cristina era um sonho
bom. Procurou meio, aproximou-se da menina, pisando macio como se fosse um gato
atrás de pegar uma rolinha fogo-pagou. Fez elogio ao seu preparo, a conquista
de um bom emprego e a muitas coisas que lhe vieram ao bestunto.
- Veja seu Teodósio, o Senhor é
branco, corado, simpático, quase rico. Como pode querer se casar com uma que
nem família tem. Terá coragem de me abraçar ou tomar minha mão e dar passeio
comigo. Ou me quer para ficar no borralho, tomando conta da casa e criando
filhos. Hoje não tenho presas na vida. Cheguei onde jamais havia de esperar.
Tenho meu emprego por concurso, faço costuras nas horas vagas e cuido de mãe
Zefa, não lhe deixando faltar o essencial.
- Sei, sei de tudo isto. E pensei
que a menina poderia estar sonhando em se casar. Não a quero para ser minha
escrava, mas para esposa, convivendo com igualdade e muito amor. Nada de mandar
um no outro. Seria detestável e meus hábitos sempre foram de concordância quando
as coisas andam certas. Alias já me conhece bastante. Por ventura quando ia
fazer compras em nossa loja, dirigi-lhe algum gracejo ou a qualquer outra
jovem. Acostumei-me ao respeito e á decência.
- E se eu lhe dissesse que não
pretendo me casar tão cedo. Ficaria zangada comigo?
- Nunca. Ficaria apenas sentido e
sempre a esperar. Esperar uma pessoa que se ama é viver na esperança. Dói menos
do que um desengano. Também não sei se seria capaz de me aceitar. Alias,
aconselharia a usar de toda franqueza. Ninguém é obrigado a gostar de alguém,
mesmo que este alguém esteja morrendo de amores, como é o meu caso.
- Veja bem. Embora não me considere
inferior às outras pessoas, sou uma preta e a sociedade faz discriminação.
Estou cansada de ouvir. Que faz aquela preta no meio de brancos. Se eu me
casasse consigo haveriam de dizer: - Aquele branco só pode ser doido, casar com
aquela franga de urubu.
- Pois olhe, seria o meu maior
orgulho e estou certo que todos ficariam com ciúme e inveja. Isto sim. Mas, tenho
de me conformar com minha pouca sorte. Perdoe-me ter alimentado essa esperança,
vou, agora, viver de saudades. Seja feliz. E como dói a morte de uma grande
esperança. De qualquer forma desejo ser um seu amigo e ter a sorte de sempre
poder vê-la.
- Mas não é tanto assim. Sabe, a
gente tem que pensar, e quem nestes casos pensa por mim é mãe Zefa. Espere que
eu fale com ela. Por hora, mesmo apreciando suas qualidades morais, não poderia
dizer nada. E mesmo é bom um pouco de reflexão. E veja, casar-me consigo era
coisa quem nem poderia sonhar. Então até breve. Sonhe de lá que eu sonho de cá.
Reze para mãe Zefa. Vou rezar também. Eu mesma vou falar com ela. Não lhe diga
nada.
E Cristina aproveitou a hora do
jantar para falar de Teodósio.
- Bem Cristina. O Teodosio é uma
pessoa honesta e ótima. Mas, neste particular quem...**. (Incompleto)
...Quem deve decidir é você própria,
pois a vida de agora em diante é de sua inteira responsabilidade. Fiz o que
pude por você. Tirando das tripas e do coração para lhe dar uma vida digna de
qualquer moça rica, e, você minha filha correspondeu com todos os meus
ensinamentos de uma mulher que também sofreu com uma vida cheia de dificuldades
e de abandono.
- Sei mamãe! Tanto sei que ainda não
faço nada sem a sua permissão e seus conselhos, mas casamento... Só a senhora
tem experiência.
- Casamento filha, não é só amor e
nem paixão, é em maior parte conveniência das duas partes. Casar por amor, com
um vagabundo e preguiçoso, só por que é bonito e se estar cheio de ilusão, como
fora o meu, e deu no que deu. Viver sozinha depois da grande decepção. Ainda
bem que apareceu você na minha vida. Veja bem onde vai cair, espere um pouco
mais até conhecer o escolhido e principalmente sua família. Não deixe que seu
coração fale mais alto, o coração tem razões que a própria razão desconhece!
Cristina deu um tempo. Especulou a
vida do Teodósio, foi conhecer a família, que morava em outra cidade e quando
amadureceu de fato o seu coração, se decidiu.
O casamento foi uma festança, assim
quis seu Teodósio. Mostrar a cidade que Cristina, sua esposa, que de agora em
diante, não era mais a Pretinha Cristina e sim Cristina Nóbrega de Carvalho e
Albuquerque.
*O conto pertence ao livro “Vidas
Nordestinas”, no prelo.
**Dai por diante foi completado e
feito certas modificações por Grijalva Maracajá Henriques, seu filho.
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