O MOLEQUE SARAMPO*
João Henriques
da Silva
(In Memoriam –
20/09/1901 – 16/04/2003)
O moleque Sarampo nascera mesmo sem
sorte. Filho de pai ignorado, e, a mãe fugira com um malandro qualquer,
deixando-o em casa de uma vizinha. - Seria apenas por poucos dias, - dias que
nunca terminavam e Sarampo teve que se valer da rua para sobreviver.
Largara a casa da vizinha, onde era
tratado com desprezo e cascou-se na rua para que desse e viesse. Dormia aqui e
ali, onde o sono o pegava, como um bicho do mato. Depois de algum tempo uma
preta velha levou-o para casa e deu-lhe um cantinho para dormir. Mas teria que continuar
a pedir comida, alguns níqueis e roupas velhas para vestir. Dava graças a Deus
ter onde se recolher quando a cidade dormia.
O pouco dinheiro que lhe davam,
entregava religiosamente a madrinha Preta, como a chamava. E quando sobrava
comida, chegava com ela em casa, para a madrinha.
Tinha sorte numa coisa; não adoecia.
A vida crua que levava era-lhe uma vacina polivalente. Passou a entender que a
madrinha Preta passava fome, não tinha fumo para o cachimbo de barro e às vezes
nem a panela ia para as trempes.
Dia inteiro com o fogo apagado. Ele
poderia sim, passar fome, mas aquela velhinha não poderia agüentar. E começou a
esmiuçar a casa. O quarto onde a madrinha dormia era uma lástima. Uma cama
velha forrada com uma esteira de carnaúba, um lençol velho aos pedaços. E
naquele Cariri frio de julho, como poderia dormir aquela criatura magra e
cansada. Sarampo pensava naquilo tudo,
enquanto roia um pedaço de pão que lhe haviam dado e madrinha Preta comia os
restos que Sarampo lhe entregara numa lata de doce usada e sem tampa. Aquela
miséria lhe obrigava a pensar, pensar no que haveria de fazer para sair daquela
ruína.
O que lhe davam era tão pouco e
havia ainda de suportar as recriminações: – Por que não vai trabalhar moleque
vadio, não tem pai nem mãe, seu preguiçoso?
- Doía-lhe como uma pancada na cabeça aquela situação infeliz. Nem podia
atinar porque ainda viviam os dois. Ninguém acreditava nele e cada dia saía
mais espantado e desiludido. Os dias amanheciam vazios e mais sombrios ainda.
Chegou a pensar em furtar, levar para casa um pouco do muito que via nas
mercearias: Feijão, farinha, arroz, um pedaço de carne...
No entanto, pior seria se fosse
apanhado e recolhido. Não teria mais quem pedisse para a madrinha Preta. E como
iria ela viver. Teve, então, a idéia de pedir nas casas comerciais, e nas
feiras. Apanhara nos terrenos baldios, sacolas de papel abandonado. E lá ia um
punhadinho de feijão, um pouquinho de farinha, um naco de carne do Ceará, uma
colher de café e outra de açúcar.
- “Pra madrinha Preta que estar
morrendo de fome. Ela não pode andar, nem trabalhar e está tão magrinha que faz
dó”.
Teve mais sorte. Chegava a casa
com um pouco mais e que não era resto de comida.
Não se esquecia de passar pela
padaria e pedir um pão ou bolachas quebradas. Tudo servia. De volta, nas casas,
depois do almoço e do jantar pedia alguma coisinha mais. Queria já crescer para
arranjar trabalho e deixar de pedir.
A madrinha teve uma lembrança:
- Vai pedir também em casa do
padre, do médico e do Dr. Juiz. É tudo gente rica. Quem sabe, Sarampo. E podem
até te arranjar um emprego.
E teve sorte. O médico chamou-o
para zelar o consultório. Pagaria por semana. Mas Sarampo teve que explicar.
- Sim senhor, seria tão bom, mas tenho que pedir esmolas para madrinha
Preta que me cria. Uma velhinha que vive com fome. Peço para ela comer. Ela e
eu.
- Tem nada não. Toma dinheiro e vai
comprar alguma coisa. Deixa em casa, e vem para o trabalho. Varrer, espanar,
fazer mandados.
- Vou ligeiro e volto correndo!
Saiu aos pinotes como um doido.
Nem saiba o que fazer com aquele dinheiro todo, bem apertado na mão. Entrou em
casa como um foguetão ou um buscar-pé em dia de festa.
- Está aí, madrinha. O doutor me deu
pra gente comprar comida e me deu um emprego. Vá à senhora comprar aí na bodega
do vizinho. Hoje a gente vai almoçar do bom e do melhor. Vou correr para o
consultório do doutor.
- Como é bom ter juízo. Deu certo o
que a senhora me disse. Chego para a comida. Não se esqueça de comprar sal e
fumo para o seu cachimbinho de barro. E pão novo, o dinheiro dá!
Sarampo entrou no consultório do
doutor Albino como se fosse um empregado graduado. Aquilo sim era vida de
gente.
Doutor Albino chamou a enfermeira e mandou-a dá sabão e uma toalha a
Sarampo. Despachou para a loja a fim de comprar duas calças e duas camisas
prontas e um par de botinas. Queria Sarampo limpo e apresentável. Depois do
banho, veio-lhe a surpresa. Roupas novas. Já era luxar demais. Dalí fizera um
juramento, só sairia empurrado. Tocou a vassoura, varreu tudo, espanou, passou
mais um pano nos móveis, mas sem se esquecer de olhar para a roupa nova, em que
estava entonado e na outra que estava guardada.
Tudo pronto, foi ao jardim, passou
para o quintal e limpou de canto a canto. Três dias depois, era somente
conservar.
- Sarampo?
- Pronto seu doutor.
- Donde tirastes esse nome
engraçado. Quem te botou?
- Foi o povo mesmo. Eu acho que era
de tanto andar pedindo. Sarampo não é doença que pega no ar?
- E o teu nome mesmo, como é?
- Abílio. José Abílio. Mas é melhor
me chamar mesmo de Sarampo. É mais fácil e todo mundo já me conhece assim.
Sarampo...
Sarampo era ligeiro como um raio.
Parece que quando ia já estava de volta.
- Vai comprar cigarro, pacote de
gases, esparadrapo, algodão.
Nem carecia de nota. Tinha boa
memória. Quando a enfermeira aplicava injeção ou fazia qualquer tratamento,
Sarampo estava por aí, farejando e tentando aprender.
Algum tempo depois já era ajudante
da enfermeira. Fazia curativos leves e achava graça quando o cliente gemia:
- Deixa de ser mole. Sara logo. Pior é se fosse para cortar a perna ou
arrancar a língua... O doente terminava rindo.
Quando Sarampo andava pela rua ou
qualquer local e via um sujeito magro ou gordo de mais, logo aconselhava. Vai
consultar o doutor Albino. Ele tem remédio para tudo. O magro engorda e o gordo
emagrece. E tem uma enfermeira que vale a pena ver. Vai lá enquanto é tempo,
mesmo que seja só para ver a enfermeira... É mais bonita do que eu.
Com algum tempo ninguém mais
reconhecia a madrinha Preta. Vestira os ossos da carne, pisava firme e
tornara-se alegre. Tinha uma cama com colchão de lã e um cobertor novinho em
folha. Sarampo dormia em rede de varanda e a casa havia recebido uma mão de
cal.
Doutor Albino lhe mandava
fortificantes que a tonificavam. Sarampo, gordo lustroso, freqüentava escola à
noite e terminou cursando enfermagem, onde se diplomou. Doutor Albino
empregou-o na Casa de Saúde, onde ele se dizia rico.
Mas não deixava o seu protetor hora
nenhuma. Parecia andar de ouvidos no ar e sondar os seus desejos. Quando
pretendeu se casar correu lá a lhe pedir conselhos.
- Vai te casar com moça branca,
sarampo. Achas que dará certo. Por que não formas um parzinho igual?
- É doutor não há mais jeito. É
grande a paixão dos dois.
- É filha de quem Sarampo?
- Aí é que está o problema. É filha
do senhor Pedro Ferreira, comerciante.
- O que, Sarampo?
- Verdade, doutor. Foi ela que me buscou.
E a família sabe e aprova.
- Você merece sarampo; uma boa moça
mesmo.
- E sabe. O senhor vai ser meu padrinho. Também já não sou mais o
moleque sarampo. Agora sou José Abílio, nome de gente branca, não acha?
- Bem se é assim, seja feita tua
vontade.
E lá passou o moleque Sarampo de
braço com uma moça branca e bonita todo cheio de amores.
- Confio em Nosso Senhor e no doutor
Albino. Acho que estou certo. Só quero é que os meninos puxem a beleza dela. Lá
em casa, de gente feia basta um... Já aluguei casa e não quero móveis velhos.
Tudo do bom e do melhor em homenagens a santinha Maria...
Em, 16.7.1986
*O
conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo
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