sábado, 6 de abril de 2013

Agostinho




 AGOSTINHO*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


 Agostinho começara sua vida como caixeiro, um menino ainda, para ajudar a mãe viúva e cheia de filhos. Levava semanalmente o seu salário para as compras minguadas que haviam de sustentar a família com mais o pouco que Dona Tilinha ganhava com o seu fabrico de cocadas, bolinhos e tapioca. Era tudo tão pouco, para aquelas seis criaturas, que afinal de contas, não tinham culpa de terem nascidos. E Agostinho, apesar de tão jovem, pensava porque o mundo era assim. E porque havia de morrer tão cedo, o pai de uma família pobre. E muito pior ainda teria de ser, se viesse a perder aquele emprego. Fazia o quanto podia para cumprir suas obrigações e ser fiel, não dando motivo a qualquer reclamação. Quando recebia as moedas do seu trabalho era como se fosse por uns instantes, um menino rico.
Ajudava-o a boa memória, para guardar os preços das mercadorias e facilidade de fazer mentalmente os cálculos e passar os trocos. Não chegava a pensar em aumento de salário. Pedia a Deus é que lhe conservasse o emprego. Dois anos depois já ajudava a fazer as compras e marcar as mercadorias. No fim do mês, fechou a última porta, entregou a chave ao patrão e correu para casa. Levava no semblante uma alegria que espantou dona Tilinha.
– O que é isto Agostinho. Viste algum passarinho verde. E Agostinho meteu a mão no bolso e entregou-lhe o dinheiro da semana, quase duplicado.
            - Fui aumentado, mãe. Agora poderá comprar mais alguma coisa. E tive uma idéia que foi aprovada pelo patrão. Vou vender miudezas nos domingos e feriados. Ele me entregou as mercadorias, venderei com algum lucro e o que sobrar devolverei a casa. Não vai ser bom? Agora, quero aquela malinha da senhora emprestada. Depois comprarei uma ou mandarei seu Pedro, o marceneiro, fazer uma. Dependerá do lucro.
            - E irás vender o que?
            - A senhora é quem vai escolher. Coisas que as donas de casa sempre precisam e às vezes se esquecem de comprar.
            - Bem. Alguma delas, agente sabe, mas com o tempo irás anotando pela procura. Olha: Linhas, botões, agulhas, alfinetes, broches, pó, sabonete, vidrinhos de perfume baratos sem esquecer chupetinhas da vários tipos. Meninos viciados não se calam e nem dormem sem elas. E não esqueças cadarços de sapatos, graxa, escovas de dente e pastas. Um pouco de tudo. Mas olha uma coisa, não vendas fiado. Senão perderás o dinheiro e o freguês. É melhor vender mais barato. Terás a desculpa de dizer que a mercadoria não é tua e foi essa a recomendação dom patrão.
Agostinho caiu em campo. Os primeiro dias não lhe ajudaram muito. Já era esperado. Mas depois a coisa foi crescendo. Os lucros compensavam o sacrifício.
- Agostinho, - dizia-lhe a mãe, - precisas descansar um pouco, meu filho.
            - Não Posso ainda, mãe, mas irá chegar o tempo de nós todos podermos. Já possuo uma boa freguesia e quero que a senhora, sempre que poder vá guardando um pouco. Tenho um plano para mais tarde. Poderá dar certo e sei que dará.
Agostinho prestava contas rigorosamente ao patrão, Senhor Adalgiso, o que lhe aumentava a confiança e o crédito.
Agostinho já era um rapazinho simpático, andava sempre limpo e bem apessoado, o que contribuía para ser bem aceito e estimado. No seu bairro, quem era então que já não o conhecia e esperava. Em sua maleta nova já iam muitos outros artigos, inclusive batom, ruge, pó de arroz cheiroso e adornos para o cabelo. Seu segundo irmão saía com ele para ajudá-lo e ir treinando nos negócios. Mais tarde poderia sair os dois, cada um para seu lado.
- Olha mãe, a senhora, daqui por diante irá ficar vendendo em casa. De começo venderá pouco, mas com paciência chegará à freguesia. E dois meses depois já eram três a vender. Ganhava o dono da loja e ganhavam eles.
- Mãe, essas vendas que a senhora faz serão a semente daquilo onde pretendo chegar. Abrir nossa casinha de comércio. Miudezas e estivas.
Agustinho andava, andava, com o olho fixo em seus planos. Um dia chegaria à oportunidade. Tinha, entretanto uma preocupação, não podia largar o balcão de seu Adalgiso, que lhe dera a mão e lhe franqueara tudo. Mas havia de conciliar as duas coisas. Havia nascido homem e sentia-se responsável pela mãe e pelos manos. Teria de vê-los, um dia, saldáveis e felizes. Mas não pensava em riqueza. Preocupava-se, sim, em não faltar comida na mesa e nem roupas e agasalhos para o tempo frio.
Agostinho observava que muitas pessoas faziam-lhes compras com a visível intenção de ajudá-los de alguma forma. Agradecia todas as compras que faziam e prometia sempre voltar. Já não estavam mais na penúria do começo de suas lutas. E isto já lhe parecia uma grande vitória. Nenhum dos irmãos menores botava mais aqueles olhos compridos quando viam comida. Também não viam mais a mãe angustiada e ás vezes com lágrimas a queimarem-lhe o rosto moreno e triste. Um grande alivio para o seu coração. Mas Agostinho nunca se maldizia, e nem se amorteciam suas grandes e firmes esperanças. Era uma questão de tempo e paciência. Havia de apagar todas as rugas deixadas por sacrifícios tão grandes. Teria de ver todos os rostos alegres e todas as bocas sorrindo. E casa vez mais se acendia em Agostinho a chama da esperança. Pensava tudo isto consigo mesmo, para não relembrar o que se passara. Que esperassem pela sua coragem e dedicação
Dona Tilinha fabricava seus doces e vendia ajudada pela filha mais velha, que tomava a si as tarefas mais pesadas. O bazarzinho de miudezas ia se afreguezando. Todas as noites e ao amanhecer dona Tilinha fazia suas orações de ação de graças. Rezava pela sorte da família, pela alegria que já lhes abrandava as mágoas passadas. Rezava; sobretudo pelo filho Agostinho substituíra o pai com tanto empenho e quase devoção.    
E dona Tilinha imaginava o que se passava com outras mães que não possuíam uns filhos iguais aos seus, filhos que suportaram toda sorte de privações e nunca desesperaram. Filhos que lhe davam coragem e mesmo assim, na penúria em que viveram não se maldiziam. Filhos que a adoravam, filhos que ela abençoava a todos os momentos. Quantas famílias Tilinha conhecia que era melhor que não tivessem tido filhos. Tinha pena dessas criaturas infelizes que tinham de lutar pela vida e muito mais para controlar os filhos, desastrados e desobedientes. Filhos que não sabem mais o que é um pai, nem um mestre. Filhos que exigem aquilo a que não tem direito, nem merecem.
Agostinho, inesperadamente, foi despertado por um sentimento esquisito. Não que ele o tivesse motivado voluntariamente, mas, por alguém que o desejava e o vinha seguindo a bastante tempo, atraída não só pelos seus dotes morais, pela sua conduta desde o verdor dos anos, mas, igualmente pela sua aparência pessoal. Agostinho reunia o que uma moça honesta e bem intencionada poderia querer para uma convivência feliz. Antes não tivera tempo de olhar para as mulheres pensando em casar-se. E foi numa de suas idas e vindas visitando sua freguesia a domicílio, que notara os olhares e os sorrisos de Jacira, uma jovem que, pela sua condição social, estava muito acima da sua. Além disso, a família possuía uma representação financeira invejável. Agostinho, em sua modéstia e reconhecendo sua posição, não acreditava que fosse mais do que um gesto de simpatia e admiração pelo esforço que fazia, tentando vencer na vida, ou uma forma educada de encorajá-lo a prosseguir. Mas aqueles olhares e aqueles sorrisos repetiam-se todas as vezes que se encontravam. A principio teve vontade de esquivar-se não indo, mas a casa de Jacira. Quando se aproximava; pensava em distanciar-se, mas enquanto ia pensando ia também se aproximando e era a primeira pessoa que via, como se o estivesse esperando. E, então, Jacira demorava-se na escolha das pequenas coisas que inventava de comprar. Outras vezes se entretiam a procurar artigos que sabia de antemão que Agostinho não conduzia. A mãe de Jacira, muitas vezes chamava-lhe atenção:
- Deixa o moço ir Jacira, vender suas mercadorias. Ele precisa fazer seus negócios. Não tomes assim o seu tempo.
- Ora, mãe, é porque gosto de conversar com o Agostinho, de ouvir suas explicações. É só esta vez. E que vez era essa que se repetia sempre. E dona Almira passou a suspeitar que estivesse havendo outra espécie de interesse. E foi então que chamou a filha para sondar-lhe o coração. Será verdade Jacira, o que estou pensando de tuas conversas com o Agostinho. Espero que não. Em todo caso uma mãe custa a se enganar. O que há realmente contigo, perguntava-lhe olhando-a firmemente.
- É mãe, gosto do Agostinho. Ele me prendeu. E eu mesma não sei o que fazer. Sei que nem a senhora, nem papai vão aprovar e talvez  achem que é doidice minha.
- Não é possível o que estas me dizendo. Agostinho além de viver ainda lutando pela vida, minha filha, não tem tua condição social. Isto é um disparate. Acaba com isto. Muda de idéia, procura um outro de tua igualha. Teu pai vai ficar desapontado. Coloca logo, - enquanto é cedo, - um ponto final nessa doidice, nessa falta de juízo. Pois não vês, menina, que poderás encontrar um moço de teu nível. Afinal de contas o que esperar de Agostinho. Não tem nada para de dar. Mal tem onde cair vivo. Deus do céu.
- Não fui eu quem o procurou e nem foi ele quem me procurou. Foi uma simpatia que nasceu como um ramo que brota depois de uma chuva de verão. Estava para brotar e brotou e o ramo começou a crescer e a florar. Nem eu, nem ele temos culpa do que está acontecendo. E agora, mãe?
            - Já de disse, sai fora. Esquece Agostinho. Olha para outros rapazes.
            - Mas olho para os outros e não vejo nada neles e quando vejo, sobre o seu rosto, só vejo o rosto de Agostinho. Aí é que está. E por que não Agostinho? Só por que é um moço pobre? Nos outros aspectos, quem é melhor do que ele. Trabalhador, honesto, simpático, cordial e simples. Não tem jeito não. Já disse que foi uma coisa que nasceu dentro de mim.
- Vou falar com Adriano. Espera o estouro da boiada. Sabes muito bem o que ele é.
            - E o que posso fazer. Fale, pois eu mesma nem tenho coragem. Mesmo parece cedo.
            Adriano chegou. A mãe de Jacira contou-lhe tudo, minuciosamente e esperou o estouro. Sabia que iria haver relâmpagos e coriscos.
- Terminou mulher?
            - Terminei.
            - Pois é. E a Jacira gosta mesmo do vendedorzinho de miudezas? Parece-me um bom moço. E sei que é. Então, quando pretendes que eles se casem. Arruma as coisas e marca a data do casamento.
            - Estas ficando biruta, homem.
            - Por quê?     
            - Esse mocinho é pobre, um Zé ninguém e tens a coragem de entregar-lhe nossa única filha, assim sem mais nem menos. Conhecia-te, outro. Criar uma menina com tanto mimo, tanto zelo e me sais com esta. Santo Cristo.
            - Olha mulher, se conseguir convence-la do contrário, nada direi. Deixo, pois, contigo. Mas não contes comigo. Eu já havia percebido que ela estava apaixonada pelo Agostinho e tive o cuidado de saber quem era ele. Basta te dizer que sempre foi um ótimo filho, trabalhador, honesto e sem vícios perniciosos. Que queres mais. Um desses pilantrazinhos bem penteadinhos e todo engraxado, que só possuem a aparência. Sou pelo Agostinho. E uma coisa te digo, não tentes forçar a menina. Se fosse uma safadório aí sim, não aprovaria, mas um Agostinho, e só por ser pobre. Pobre em dinheiro e rico em sentimentos. Toma cuidado.
Para que diabo Jacira vai querer mais do que tem. Será que só quem tem obrigação de ser rico é o noivo. A riqueza do noivo, isto é, a maior, é o caráter. É faça-me o favor de não me envolver nas suas tramas contra Agostinho.
E neste exato momento Jacira vai chegando. Notou a fisionomia da mãe, transtornada, mas o pai recebeu-a com um sorriso.
- Então, Jacira, parece-me que estás querendo casar? Não será muito cedo, filha?
            - Pode até ser, pai, mas não sei o que me deu. Estou gostando do Agostinho, e nem sei o que vou fazer. Sei que não vão aprovar, mas tenho que confessar minha atração por Agostinho. Mamãe ficou zangada.
- Olha Jacira, zangada somente ela. De mim, estou de pleno acordo. Faz o que pede teu coração e contes comigo. Gosto do Agostinho.
            - Vocês dois são da mesma estopa...

 *O conto pertence ao romance “Vidas Nordestinas”, no prelo.

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