A
FOME ME ENSINOU*
João Henriques da
Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
Deolindo era uma dessas pessoas que nasceram
sem sorte. O pai, sapateiro remendão, ganhava apenas o suficiente para manter a
casa, isto mesmo fazendo uma economia de usurário.
Deolindo saíra da escola primaria e
não tinha como continuar os estudos. Não lhe restava outra coisa se não ir
bater sola de sapato com o pai. Não perdia, entretanto, oportunidade e
colava-se aos livros. Acreditava que mesmo sem se formar poderia ser mais tarde
uma pessoa letrada e de prestígio. Sua sorte poderia mudar. Não seria o
primeiro. Talvez dependesse apenas de esforço e trabalho perseverante.
Com algum tempo na tenda de
sapateiro, observou que a freguesia era pequena para os dois e teria que aumenta-la.
E foi assim que tomara a iniciativa de fazer seu trabalho a domicílio, coisa
não usual. Preparou sua tenda móvel para serviços de urgência, tais como
repregar, colocar saltos e outros pequenos consertos. Aproveitava para pegar
encomendas que executaria em casa. Ele ou o pai. E a coisa deu certo. Não lhe
faltava trabalho e já estava indo longe. Para avisar sua passagem usava um
apito fixo que poderia se ouvir longe. E assim, quando saia de uma casa já
havia noutra alguém o esperando. Muitas das vezes tinha que comer qualquer
coisa pela rua para poder atender sua freguesia.
Tinha sua maneira própria de cobrar.
Cobrava mais, cobrava menos conforme a situação da família. Algumas pessoas lhe
pagavam até mais do que cobrava. E ainda lhe pediam que não deixassem de passar
sempre por ali. - Casa de muito menino, não havia sapato que durasse. Chutavam
pedras e paus. - Deolindo conduzia material suficiente para os concertos e não
perder tempo. Com isto sua vida e de sua família começou a mudar
gradativamente. O pai teve que botar um auxiliar, para não perder freguesia.
Deolindo verificou que tinha de fazer bem feito. Serviço ordinário significava
perda de cliente. E o pior é que a notícia do mau trabalho se propagava
rapidamente. Ao contrário, a propaganda era positiva.
- Espera o Deolindo! Trabalha bem e
não é careiro!
O fato é que dinheiro não lhe
faltava para ajudar em casa e comprar os livros. Levava uma vida humilde, mas
honesta e tranquila.
Alguns comentavam: - quando se quer ser
gente é assim como Deolindo. Viu que não podia estudar e dedicou-se logo ao
trabalho. E pelo que se vê não está lhe faltando nada. Serviço limpo e razoável
no preço. Se fosse outro estaria batendo bola ou vagabundeando, mas Deolindo
não. Quando se quer ser gente é assim.
Pela noite, aos domingos e feriados, Deolindo
enfincava-se nas leituras, sobretudo de Português e História do Brasil. No
entanto, História era o que, mas lhe atraia. Tinha mesmo gosto e facilmente
aprendia. Os pais percebiam seu interesse pelos livros, mas não alcançavam até
onde o filho queria chegar. De qualquer forma admiravam sua dedicação. Tempos
depois já possuía uma prateleira cheia de livros. História e Gramática,
sobretudo. Cadernos de anotações e coisas escritas. Pai e mãe não sabiam ler e
toda aquela coisa servia de comentário entre os dois.
- O menino não perde tempo. Deveria
se divertir um pouco como faz os outros.
É, Mariana. Mas deixa para lá. Ele
sabe o que quer. Prefere um livro e uma caneta aos companheiros. Já é um
rapazinho e não sai porque não gosta ou não quer.
- Mas seria bom que falasses com
ele, Adriano. Pode até pensar que a gente não gostaria que ele saísse.
- Não, pai, já passo o dia pela rua
e prefiro estar lendo e aprendendo alguma coisa. Quem sabe se não nos servirá
depois.
Quando se tem boa memória, tem-se
uma preciosidade na cabeça. E Deolindo possuía esse dom. Lia e guardava como se
estivesse guardando moedas numa gaveta, por uma aberturazinha de mealheiro.
Durante as horas vagas e nas refeições gostava de contar aos pais às narrativas
que lia. Passou a servir de admiração e entretenimento. Ao mesmo tempo iam
aprendendo fatos da História do Brasil e Universal.
- Sabes de uma coisa, Mariana, este
mocinho vai longe. É pena, não frequentar colégio.
- É! E estive vendo que tem uma
porção de coisa escrita nuns cadernos. Deve ser coisas que ele inventa. A gente
pode até pedir para ele ler.
O tempo foi se indo e Deolindo enfiado
nos livros. Um dia chegou com um livrão grosso e os pais se perguntaram se ele
teria cabeça para ler um livrão daquele. Era um dicionário, o pai dos burros
como se costumava dizer. Deolindo explicou para que serve. E certo dia Deolindo
entrou em casa com uma novidade espantosa.
- Sabe pai, sabe mãe, vou fazer um
concurso de ensinar. No colégio do estado. Então chamando quem queria se
inscrever. Para ensinar história.
- E tu sabes contar história
Deolindo. Nunca te ouvimos contar história nem de Trancoso, nem de “Camonge”.
- Não, mãe, são outras histórias.
Histórias do que se passou de importante no Brasil e no mundo.
- Está ficando biruta, Deolindo. Tem
tanto doutor sabido por aí e queres te meter no meio deles. Isto é doidice, meu
filho. Doutor sabe tudo, Deolindo, vai passar é vergonha. Além disso, gente
pobre não deve nem ir perto dessas coisas.
- Sei não. Mas não custa tentar. Deu, deu. Não deu paciência.
- Olha minha gente, inscreveu-se um
rapazinho filho do sapateiro e sapateiro também. Deve ser doido. Só tem o
primário. Nem deviam ter aceitado. Vai ser uma palhaçada. Vão ver que nem sabe
o que está fazendo. Talvez até pense que é concurso de corrida ou de queda de
braço.
- Tem nada não. Pelo menos vai dar
para rir e desopilar o fígado.
- Mas sabes que o ridículo é
desumano. Não se deve fazer zombaria de ninguém. O coitado não sabe o que está
fazendo. É bom adverti-lo. É ainda muito jovem para passar por tamanho
ridículo. Nunca mais será gente! A menos que seja um demente.
- Olha Deolindo, desiste dessa ideia de concurso de história. Estás equivocado. Ficarás humilhado.
- Desisto não. Já disse que aprendi
muita história em casa. E minha memória não é lá tão ruim.
- Está bem, teimoso!
No dia das provas, Deolindo sentou-se
perto da banca examinadora. Os concorrentes comentaram e riram de si para si.
Que diabo viera ver aquele fedelho de cara de anjo, numa competição como
aquela. Pouco juízo e muita ignorância e teimosia. Pelo menos renderia assunto
para algumas semanas.
Deolindo fez de propósito. Foi o
primeiro que entregou a prova. Pediu licença e saio para aguardar à outra. A prova oral seria logo após a correção da
primeira que era eliminatória. E Deolindo não fora eliminado como esperavam. A
coisa criou pulga na orelha. Não era possível. Só poderia ser brincadeira da
banca examinadora. Que diabo queria fazer com o rapazinho teimoso. Não iriam
concordar com zombaria.
- Olha, pode não ser. Ás vezes o coelho
corre de onde se pensa que não há. Já têm acontecido coisas assim. Quem sabe lá
se os bobos não somos nós. Presta atenção. Uns já foram eliminados e Deolindo
não. E é bom que tomemos cuidados, para evitar uma dura surpresa desagradável.
- Estás brincando, hein?
- Sei lá? De mim te digo que não
tenha medo, mas aquele pivete pode muito bem ser uma criatura dotada, um
privilegiado.
- Ele confunde História do Brasil
com história de Trancoso e de Pedro Malazarte...
- Pensei assim, antes, mas agora
que o mocinho já está aprovado na eliminatória. É melhor ninguém rir antes de
tempo.
Começou a oral e Deolindo ficou para
último. Deveria ser mesmo para um arremate pitoresco. Calado, pensativo,
Deolindo aguardava sua vez. Nem ria, nem chorava como se costuma dizer com as
pessoas impassíveis. E afinal chegou sua vez. Entregou o trabalho de livre
escolha, e ficou em pé apesar de o mandarem sentar-se.
- Muito bem, senhor Deolindo.
Estamos chegando ao final. O senhor já logrou aprovação na primeira prova.
Esperamos que tenha sorte na última. Quer expor a matéria ou prefere perguntas.
- Os senhores são quem escolhem.
Para mim será a mesma coisa.
- Então, vamos às perguntas.
E foi aí que veio a maior surpresa.
Deolindo era tão claro e tão incisivo que surpreendeu a todas. Perceberam então
que não era história de Trancoso, nem de Pedro Malazarte. O menino, como
diziam, era um cobra na matéria. E como poderia ser se não frequentara escolas
além do primário e levava a vida remendando sapatos. Que milagre era aquele. Já
não havia a menor dúvida de que o lugar seria dele, o que foi confirmado três
dias depois.
Deolindo visitou toda sua clientela
para avisar-lhe que deixaria a profissão. Havia sido nomeado por concurso,
professor de História. No entanto iria deixar alguém em seu lugar. O ajudante
do pai substitui-o e seu Adriano chamou outro para ajudante.
Na cidade não se fala de outra
coisa. O Deolindo ganhou o concurso para professor do ginásio. Derrotou, sem se
esperar, os mais sabidos da terra. Menino danado. Não se sabe com quem
aprendeu. Outros poderiam fazer à mesma coisa, mas o que se vê é pai pagando
colégio sem resultado. Muitos gastaram a mesada em farras e quando conseguem um
diploma, não vale uma titica. Perdeu-se logo na vida prática e há bacharéis que
não sabem nem copiar um requerimento. Menino danado. Remendando sapato para
viver e ter tantos conhecimentos de história. Só merece elogios.
- É isto mesmo. Menino pobre,
inteligente, mas, sobretudo sério e dedicado. E podem esperar uma bela carreira
no magistério. As provas que fez foi elogiada. E o mais engraçado e curioso é
que os concorrentes zombaram dele antes das provas. Pensavam que o jovem estava
confundindo história legítima, com historias de Trancoso e Pedro Malazarte.
Procuraram levá-lo ao ridículo e terminaram sobrando, desclassificados.
Deolindo prosseguia nos estudos de
português, sem esquecer o aprofundamento em História Universal. Queria ir mais
longe. Sua estante de livros crescia. E já homem feito pensou nos colégios da
capital e em cursos superiores, visando apenas o ensino. Esperava que houvesse
algum concurso sobre História ou Português. E com algum tempo abriu-se vaga para
a língua materna. Não teve dúvida em se inscrever. Era um nome ainda pouco
conhecido no ensino superior e isto talvez viesse a ajudá-lo. Não lhe dariam
importância e poderia pegar os concorrentes de surpresa. Preparou uma tese
sobre concordância e queimou as pestanas nos estudos especialmente de certas
particularidades da língua. Naturalmente se pretendessem desclassifica-lo
empurrando o mais difícil poderia causar-lhe uma surpresa. Já se apercebia que
a política se enfiava em tudo e ele só contava mesmo com os seus conhecimentos
e suas habilidades. Tinha que estar tanto quanto possível, seguro. A língua portuguesa era cheia de fricotes linguísticos e precisava estar afiado nas regras da última reforma. Possuía boa
memória para ajudá-lo e a força de vontade era seu melhor incentivo. Se
pretendesse espicha-lo iriam ver que não seria tão fácil assim. E pela segunda
vez Deolindo foi aprovado. Ninguém sabia, entretanto, quantos dias, madrugadas
e noites Deolindo puxava pela memória e pela inteligência para a tessitura de
seus conhecimentos. Sabia o quanto lhe custara viver ao lado dos pais roendo
fome e crivado de problemas. E se Deus havia lhe dado inteligência e boa
memória seria certamente para usá-las. Não podia pagar professores, mas os
livros lhe ensinavam tudo. Era uma questão de querer vencer, passar um pano
molhando no quadro negro de seu passado de sacrifícios. Se a vida lhe tivesse
sido fácil e permitido frequentar boas escolas, talvez não fosse além das coisas
primárias, como é freqüente aos que não sabem o que é dormir e acordar com o
estomago vazio. Era bem certo o ditado que a dor ensina a gemer. E agora
estudava, lia e lia porque era agradável faze-lo, percorrer os caminhos que
conduzem à sabedoria.
Deolindo sabia, entretanto, no
exercício de seu ministério, que muitos jovens careciam de livros didáticos
mais claros e compreensíveis. Havia alunos de pequena capacidade de
interpretação, particularmente no domínio da língua materna. Tomou então à
decisão de elaborar uma gramática onde o aluno não tivesse dificuldade em
assimilar conhecimentos práticos e tirar todas as dúvidas por meio de exemplos
e explicações bem claras.
O livro apareceu de surpresa e as decisões se
sucederam. E, então, os alunos diziam ao professor: “Não precisa mais explicar,
bastaria medir nossos conhecimentos”. Sua gramática já explica claramente tudo.
Todos os professores deveriam escrever livros assim. Mas é isto mesmo. Talvez
não saibam fazer e escrever e escrevem um emaranhado que complica mais do que
esclarece.
- É rapazes, aprendi sem professor e
os livros me mostraram as dificuldades que os estudantes enfrentam. Fiz o que
pude. E graças a Deus vocês compreendem e perdoam minhas deficiências. Na outra
edição tentarei melhora-lo.
- Ora, professor, livro como este só
existe mesmo um. Este aqui. Livro de quem conhece o assunto e os alunos. Mas,
afinal de contas, professor, o Senhor estudou sozinho. E por quê?
- Muito simples muito simples.
Não tinha dinheiro para pagar
professor...
- E professor era tão caro assim.
- Que nada. Cobravam uma ninharia,
mas se não se tinha nem o que comer. Meu pai consertava calçado. Não dava para
nada. Somente depois a ajudá-lo e então não nos faltou mais o feijão... E foram
tais dificuldades que me empurraram para os livros. Trabalhava e estudava sozinho,
procurando um outro caminho na vida. E agora tenho a felicidade de estar aqui
com vocês, transmitindo-lhes o que a fome me ensinou...
Em
19.09.1986
*O
conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
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