segunda-feira, 22 de abril de 2013

A fome Me Ensinou


A FOME ME ENSINOU*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

             Deolindo era uma dessas pessoas que nasceram sem sorte. O pai, sapateiro remendão, ganhava apenas o suficiente para manter a casa, isto mesmo fazendo uma economia de usurário.
Deolindo saíra da escola primaria e não tinha como continuar os estudos. Não lhe restava outra coisa se não ir bater sola de sapato com o pai. Não perdia, entretanto, oportunidade e colava-se aos livros. Acreditava que mesmo sem se formar poderia ser mais tarde uma pessoa letrada e de prestígio. Sua sorte poderia mudar. Não seria o primeiro. Talvez dependesse apenas de esforço e trabalho perseverante.
Com algum tempo na tenda de sapateiro, observou que a freguesia era pequena para os dois e teria que aumenta-la. E foi assim que tomara a iniciativa de fazer seu trabalho a domicílio, coisa não usual. Preparou sua tenda móvel para serviços de urgência, tais como repregar, colocar saltos e outros pequenos consertos. Aproveitava para pegar encomendas que executaria em casa. Ele ou o pai. E a coisa deu certo. Não lhe faltava trabalho e já estava indo longe. Para avisar sua passagem usava um apito fixo que poderia se ouvir longe. E assim, quando saia de uma casa já havia noutra alguém o esperando. Muitas das vezes tinha que comer qualquer coisa pela rua para poder atender sua freguesia.
Tinha sua maneira própria de cobrar. Cobrava mais, cobrava menos conforme a situação da família. Algumas pessoas lhe pagavam até mais do que cobrava. E ainda lhe pediam que não deixassem de passar sempre por ali. - Casa de muito menino, não havia sapato que durasse. Chutavam pedras e paus. - Deolindo conduzia material suficiente para os concertos e não perder tempo. Com isto sua vida e de sua família começou a mudar gradativamente. O pai teve que botar um auxiliar, para não perder freguesia. Deolindo verificou que tinha de fazer bem feito. Serviço ordinário significava perda de cliente. E o pior é que a notícia do mau trabalho se propagava rapidamente. Ao contrário, a propaganda era positiva.
            - Espera o Deolindo! Trabalha bem e não é careiro!
           O fato é que dinheiro não lhe faltava para ajudar em casa e comprar os livros. Levava uma vida humilde, mas honesta e tranquila.
Alguns comentavam: - quando se quer ser gente é assim como Deolindo. Viu que não podia estudar e dedicou-se logo ao trabalho. E pelo que se vê não está lhe faltando nada. Serviço limpo e razoável no preço. Se fosse outro estaria batendo bola ou vagabundeando, mas Deolindo não. Quando se quer ser gente é assim.
 Pela noite, aos domingos e feriados, Deolindo enfincava-se nas leituras, sobretudo de Português e História do Brasil. No entanto, História era o que, mas lhe atraia. Tinha mesmo gosto e facilmente aprendia. Os pais percebiam seu interesse pelos livros, mas não alcançavam até onde o filho queria chegar. De qualquer forma admiravam sua dedicação. Tempos depois já possuía uma prateleira cheia de livros. História e Gramática, sobretudo. Cadernos de anotações e coisas escritas. Pai e mãe não sabiam ler e toda aquela coisa servia de comentário entre os dois.
            - O menino não perde tempo. Deveria se divertir um pouco como faz os outros.
            É, Mariana. Mas deixa para lá. Ele sabe o que quer. Prefere um livro e uma caneta aos companheiros. Já é um rapazinho e não sai porque não gosta ou não quer.
            - Mas seria bom que falasses com ele, Adriano. Pode até pensar que a gente não gostaria que ele saísse.
            - Não, pai, já passo o dia pela rua e prefiro estar lendo e aprendendo alguma coisa. Quem sabe se não nos servirá depois.
Quando se tem boa memória, tem-se uma preciosidade na cabeça. E Deolindo possuía esse dom. Lia e guardava como se estivesse guardando moedas numa gaveta, por uma aberturazinha de mealheiro. Durante as horas vagas e nas refeições gostava de contar aos pais às narrativas que lia. Passou a servir de admiração e entretenimento. Ao mesmo tempo iam aprendendo fatos da História do Brasil e Universal.
            - Sabes de uma coisa, Mariana, este mocinho vai longe. É pena, não frequentar colégio.
            - É! E estive vendo que tem uma porção de coisa escrita nuns cadernos. Deve ser coisas que ele inventa. A gente pode até pedir para ele ler.
           O tempo foi se indo e Deolindo enfiado nos livros. Um dia chegou com um livrão grosso e os pais se perguntaram se ele teria cabeça para ler um livrão daquele. Era um dicionário, o pai dos burros como se costumava dizer. Deolindo explicou para que serve. E certo dia Deolindo entrou em casa com uma novidade espantosa.
            - Sabe pai, sabe mãe, vou fazer um concurso de ensinar. No colégio do estado. Então chamando quem queria se inscrever. Para ensinar história.
            - E tu sabes contar história Deolindo. Nunca te ouvimos contar história nem de Trancoso, nem de “Camonge”.
            - Não, mãe, são outras histórias. Histórias do que se passou de importante no Brasil e no mundo.
            - Está ficando biruta, Deolindo. Tem tanto doutor sabido por aí e queres te meter no meio deles. Isto é doidice, meu filho. Doutor sabe tudo, Deolindo, vai passar é vergonha. Além disso, gente pobre não deve nem ir perto dessas coisas.
            - Sei não. Mas não custa tentar.  Deu, deu. Não deu paciência.
            - Olha minha gente, inscreveu-se um rapazinho filho do sapateiro e sapateiro também. Deve ser doido. Só tem o primário. Nem deviam ter aceitado. Vai ser uma palhaçada. Vão ver que nem sabe o que está fazendo. Talvez até pense que é concurso de corrida ou de queda de braço.
            - Tem nada não. Pelo menos vai dar para rir e desopilar o fígado.
            - Mas sabes que o ridículo é desumano. Não se deve fazer zombaria de ninguém. O coitado não sabe o que está fazendo. É bom adverti-lo. É ainda muito jovem para passar por tamanho ridículo. Nunca mais será gente! A menos que seja um demente.
            - Olha Deolindo, desiste dessa ideia de concurso de história. Estás equivocado. Ficarás humilhado.
            - Desisto não. Já disse que aprendi muita história em casa. E minha memória não é lá tão ruim.
            - Está bem, teimoso!
            No dia das provas, Deolindo sentou-se perto da banca examinadora. Os concorrentes comentaram e riram de si para si. Que diabo viera ver aquele fedelho de cara de anjo, numa competição como aquela. Pouco juízo e muita ignorância e teimosia. Pelo menos renderia assunto para algumas semanas.
            Deolindo fez de propósito. Foi o primeiro que entregou a prova. Pediu licença e saio para aguardar à outra.  A prova oral seria logo após a correção da primeira que era eliminatória. E Deolindo não fora eliminado como esperavam. A coisa criou pulga na orelha. Não era possível. Só poderia ser brincadeira da banca examinadora. Que diabo queria fazer com o rapazinho teimoso. Não iriam concordar com zombaria.
            - Olha, pode não ser. Ás vezes o coelho corre de onde se pensa que não há. Já têm acontecido coisas assim. Quem sabe lá se os bobos não somos nós. Presta atenção. Uns já foram eliminados e Deolindo não. E é bom que tomemos cuidados, para evitar uma dura surpresa desagradável.
            - Estás brincando, hein?
            - Sei lá? De mim te digo que não tenha medo, mas aquele pivete pode muito bem ser uma criatura dotada, um privilegiado.
            - Ele confunde História do Brasil com história de Trancoso e de Pedro Malazarte...
            - Pensei assim, antes, mas agora que o mocinho já está aprovado na eliminatória. É melhor ninguém rir antes de tempo.
           Começou a oral e Deolindo ficou para último. Deveria ser mesmo para um arremate pitoresco. Calado, pensativo, Deolindo aguardava sua vez. Nem ria, nem chorava como se costuma dizer com as pessoas impassíveis. E afinal chegou sua vez. Entregou o trabalho de livre escolha, e ficou em pé apesar de o mandarem sentar-se.
            - Muito bem, senhor Deolindo. Estamos chegando ao final. O senhor já logrou aprovação na primeira prova. Esperamos que tenha sorte na última. Quer expor a matéria ou prefere perguntas.
            - Os senhores são quem escolhem. Para mim será a mesma coisa.
            - Então, vamos às perguntas.
            E foi aí que veio a maior surpresa. Deolindo era tão claro e tão incisivo que surpreendeu a todas. Perceberam então que não era história de Trancoso, nem de Pedro Malazarte. O menino, como diziam, era um cobra na matéria. E como poderia ser se não frequentara escolas além do primário e levava a vida remendando sapatos. Que milagre era aquele. Já não havia a menor dúvida de que o lugar seria dele, o que foi confirmado três dias depois.
            Deolindo visitou toda sua clientela para avisar-lhe que deixaria a profissão. Havia sido nomeado por concurso, professor de História. No entanto iria deixar alguém em seu lugar. O ajudante do pai substitui-o e seu Adriano chamou outro para ajudante.
            Na cidade não se fala de outra coisa. O Deolindo ganhou o concurso para professor do ginásio. Derrotou, sem se esperar, os mais sabidos da terra. Menino danado. Não se sabe com quem aprendeu. Outros poderiam fazer à mesma coisa, mas o que se vê é pai pagando colégio sem resultado. Muitos gastaram a mesada em farras e quando conseguem um diploma, não vale uma titica. Perdeu-se logo na vida prática e há bacharéis que não sabem nem copiar um requerimento. Menino danado. Remendando sapato para viver e ter tantos conhecimentos de história. Só merece elogios.
            - É isto mesmo. Menino pobre, inteligente, mas, sobretudo sério e dedicado. E podem esperar uma bela carreira no magistério. As provas que fez foi elogiada. E o mais engraçado e curioso é que os concorrentes zombaram dele antes das provas. Pensavam que o jovem estava confundindo história legítima, com historias de Trancoso e Pedro Malazarte. Procuraram levá-lo ao ridículo e terminaram sobrando, desclassificados.
            Deolindo prosseguia nos estudos de português, sem esquecer o aprofundamento em História Universal. Queria ir mais longe. Sua estante de livros crescia. E já homem feito pensou nos colégios da capital e em cursos superiores, visando apenas o ensino. Esperava que houvesse algum concurso sobre História ou Português. E com algum tempo abriu-se vaga para a língua materna. Não teve dúvida em se inscrever. Era um nome ainda pouco conhecido no ensino superior e isto talvez viesse a ajudá-lo. Não lhe dariam importância e poderia pegar os concorrentes de surpresa. Preparou uma tese sobre concordância e queimou as pestanas nos estudos especialmente de certas particularidades da língua. Naturalmente se pretendessem desclassifica-lo empurrando o mais difícil poderia causar-lhe uma surpresa. Já se apercebia que a política se enfiava em tudo e ele só contava mesmo com os seus conhecimentos e suas habilidades. Tinha que estar tanto quanto possível, seguro.  A língua portuguesa era cheia de fricotes linguísticos e precisava estar afiado nas regras da última reforma. Possuía boa memória para ajudá-lo e a força de vontade era seu melhor incentivo. Se pretendesse espicha-lo iriam ver que não seria tão fácil assim. E pela segunda vez Deolindo foi aprovado. Ninguém sabia, entretanto, quantos dias, madrugadas e noites Deolindo puxava pela memória e pela inteligência para a tessitura de seus conhecimentos. Sabia o quanto lhe custara viver ao lado dos pais roendo fome e crivado de problemas. E se Deus havia lhe dado inteligência e boa memória seria certamente para usá-las. Não podia pagar professores, mas os livros lhe ensinavam tudo. Era uma questão de querer vencer, passar um pano molhando no quadro negro de seu passado de sacrifícios. Se a vida lhe tivesse sido fácil e permitido frequentar boas escolas, talvez não fosse além das coisas primárias, como é freqüente aos que não sabem o que é dormir e acordar com o estomago vazio. Era bem certo o ditado que a dor ensina a gemer. E agora estudava, lia e lia porque era agradável faze-lo, percorrer os caminhos que conduzem à sabedoria.
            Deolindo sabia, entretanto, no exercício de seu ministério, que muitos jovens careciam de livros didáticos mais claros e compreensíveis. Havia alunos de pequena capacidade de interpretação, particularmente no domínio da língua materna. Tomou então à decisão de elaborar uma gramática onde o aluno não tivesse dificuldade em assimilar conhecimentos práticos e tirar todas as dúvidas por meio de exemplos e explicações bem claras.
 O livro apareceu de surpresa e as decisões se sucederam. E, então, os alunos diziam ao professor: “Não precisa mais explicar, bastaria medir nossos conhecimentos”. Sua gramática já explica claramente tudo. Todos os professores deveriam escrever livros assim. Mas é isto mesmo. Talvez não saibam fazer e escrever e escrevem um emaranhado que complica mais do que esclarece.
            - É rapazes, aprendi sem professor e os livros me mostraram as dificuldades que os estudantes enfrentam. Fiz o que pude. E graças a Deus vocês compreendem e perdoam minhas deficiências. Na outra edição tentarei melhora-lo.
            - Ora, professor, livro como este só existe mesmo um. Este aqui. Livro de quem conhece o assunto e os alunos. Mas, afinal de contas, professor, o Senhor estudou sozinho. E por quê?
            - Muito simples muito simples.
            Não tinha dinheiro para pagar professor...
            - E professor era tão caro assim.
            - Que nada. Cobravam uma ninharia, mas se não se tinha nem o que comer. Meu pai consertava calçado. Não dava para nada. Somente depois a ajudá-lo e então não nos faltou mais o feijão... E foram tais dificuldades que me empurraram para os livros. Trabalhava e estudava sozinho, procurando um outro caminho na vida. E agora tenho a felicidade de estar aqui com vocês, transmitindo-lhes o que a fome me ensinou...

Em 19.09.1986
*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

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