CREDULINO*
João Henriques da
Silva
(In Memoriam
20/09/1901 – 16/04/2003)
Quem era por Nossa Senhora, que não
conhecia Credulino, uma criatura ótima e que aparentemente, acreditava em tudo
que se dizia. Faveleira, uma dessas pequenas cidades do sertão da Paraíba,
tinha seu Credulino como um passa-tempo e um prato feito para os espertalhões.
Mas o que acontecia é que Credulino se fazia trouxa para pegar os sabidos.
Vivia de sua loja, um verdadeiro bazar, onde existia de tudo. De fumo de rolo
ao corte de seda. Tudo quanto lhe diziam ou contavam, achava graça e
confirmava. De si para si, argumentava que o bom comerciante não deve
contrariar ninguém. E, além disso, o que lhe custava concordar, pela rama, com
a sabedoria dos outros. O que importava era o seu julgamento íntimo; o partido
que podia tirar da boa fé dos outros. Rara era a pessoa que não se vangloriasse
de haver enganado seu Credulino.
Mas enquanto faziam assim, seu
Credulino ia estudando de um por um e alimentando sua vaidade. O negócio era
poder enterrar a faca sem o sujeito sentir.
Mas mesmo que sentisse não iria
dizer que havia sido enganado pelo boboca do Credulino. A coisa era contar
vantagem. E enquanto isto seu Credulino escondia os lucros e tinha a habilidade
de manter baixo o sortimento da casa. Nada de aparentar que estava fazendo bons
negócios. Para onde o freguês pendesse, ele estava armado para uma traquinagem.
Procurava vender barato umas coisas para
impressionar e carregava a mão em sua defesa encurtando o quilo, contagem e
metro. Por vezes exagerava medindo, pesando ou contando de mais para conservar
sua fama de tolo. Caso alguém reclamasse, apanhava rapidamente um saquinho ou
dois dos de 1.100 gramas e punha na balança, acrescentando: Conserte sua
balança. A minha está bem tarada. Nos domingos fazia sua aferição nos pesos e
medidas... De pouco em pouco a galinha enche o papo. Dias havia em que as
prateleiras estavam lá em baixo, desortidas propositadamente. As mercadorias
estavam guardadas e por isto sempre existiam alguns pacotes nas prateleiras.
- Minha gente, seu Credulino está
nas últimas. As prateleiras quase vazias.
- Só pode, não sabe pesar nem medir.
A balança vai acabar com ele. Mas deixa pra lá. Aposto que não está fazendo nem
pra comer. Vai ficar de esmola e não vai custar muito.
- E quem manda ser idiota. E também,
para que aquele trouxa que dinheiro. Em tecidos, são quatro pecinhas de madapolão,
chita, algodãozinho e brim ordinário. E não vende. Sempre o sortimento é o
mesmo.
Mal sabiam que seu Credulino o
estava sempre renovando. O depósito lá dentro estava bem sortido e a gaveta da
cômoda velha de cedro se enchendo.
-Meu compadre, tomam tudo que seu
Credulino tem. Já está reduzido a pó de traque.
Para medir fazenda seu Credulino
usava uma técnica especial. Enquanto o freguês estava de olho na mão direita
que levava o tecido, ele escorregava alguns centímetros na esquerda.
Aprendera essas coisas com o turco
com quem trabalhara como empregado e que, aliás, foi quem lhe ensinou a ser
tolerante e aceitar as reclamações dos clientes, achando-os sempre corretos.
“Cada briga perde um freguês”. Pensou algumas vezes em abrir uma grande casa,
mas se denunciaria e ninguém ira acreditar numa riqueza lícita. Se não
proviesse de furto, teria sido passando dinheiro falso. Estava na vista.
Oportunamente mudar-se-ia de lá então, espocava.
Às vezes pensava que nem valia a
pena sair. Iria lutar muito mais e, além disso, desfalcar o cofre. Afinal de
contas, o que valia mesmo era o dinheiro, somente o dinheiro. O tinir das
moedas e a maciez dos maços de notas. Por prudência, nem pensava em casamento.
Maiores despesas e maiores preocupações.
A coisa continuava ao gosto de seu
Credulino, embora o falatório lá fora fosse aniquilador. Sozinho com uma
empregadinha doméstica, as despesas eram limitadíssimas e os lucros iam sendo
engavetados. Como só comprava à vista ia logo ganhando na compra. E mais um ano
se foi sem que Credulino quebrasse, como esperavam. E parecia mais tolo ainda.
Sua casa - A Barateira – conservava o mesmo padrão de negócios. Nem subia e nem
desci. E foi nessa fase que Pedro Albérico, sujeito sempre reservado fez uma
advertência aos que consideravam seu Credulino um boboca e em caminho da
derrota comercial.
- Olha minha gente, creio que todos
nos estamos equivocados com seu Credulino. Ele não é o besta que se supõe. Deve
estar é se enchendo de dinheiro, mesmo com aquela malevolência. Reparem que o
estoque de mercadoria é pequeno, mas não lhe falta para atender a freguesia.
Repõe diariamente o que vai saindo. E donde tira. Certamente de estoque
escondido. O que me parece que é um grande espertalhão. A freguesia aumenta, na
expectativa de vantagens e ele forrando o bolso.
- Deve estar comprando fiado e
qualquer dia destes, liquida-se.
- Espera deitado, que em pé cansa.
Aquilo foi caixeiro de turco e deve ter aprendido muitas manhas. Turco começa
com um bauzinho pelas portas, batendo um metro e termina rico, dono das
melhores casas comerciais. E é isto que vai acontecer com seu Credulino.
Aguardem-se. Os idiotas somos nós. Já repararam que sempre distribui
presentinhos com a meninada da freguesia. É uma tática de atrair. Toda mãe é
sensível ao agrado feito aos filhos e estes arrastam a freguesia. Menino não
quer saber quanto custam às mercadorias. Só interessa-lhe os bombons que recebem
– “Vamos comprar na Barateira, mãe. Lá tem confeito”.
Quanto menos se esperava seu
Credulino comprou uma casa no local da feira. Casa para comércio, com quatro portas.
Um casarão. Mandou retocá-la e pintar. Contratou um carpinteiro e com pouco
tempo saíram: o balcão e as prateleiras. O letreiro estava lá – O Novo Baratão
– dias depois as prateleiras se encheram. Um bazar completo. Tecidos, secos e
molhados. Um armarinho. Dois empregados. Um rapazinho e uma moça. Fez a
inauguração no meio da semana e distribuiu confeitos e doces à meninada. As
mocinhas e senhoras, sabonetes cheirosos e pó de arroz Coty. Aos homens.
Cigarros, charutos.
Credulino mudou completamente de
sistema de vida. A fase dura, difícil, havia passado. Tinha que ser assim,
enquanto estava moço e fogoso. Dali para frente poderia evitar inteiramente qualquer
manobra. Bastaria zelar o que possuía e fazer um comércio limpo. Esquecer as
lições do turco.
- O que era que eu dizia a vocês?
Olha aí o Credulino com a maior e melhor casa de negócio da cidade. O que
pensavam ser tolice, não passava de esperteza. Gente com cara de besta quase
sempre é manhoso. Enrolou e zombou de todos nós. – “Coitadinho do Credulino” e
ele enchendo as algibeiras. E vejam como mudou de fisionomia. Parece
irreconhecível. E dizem que irá se casar. Esperem que qualquer dia destes
comprará uma residência das melhores. E vai ter influência política! Vão ver.
-Duvido que, sabido como é, vai se
meter em politicagem. Isto é coisa para gente vaidosa e besta, que gasta o que
tem para eleger espertalhões.
- Será disputado pelos dois
partidos.
E de fato não demorou. Credulino foi
cercado.
- Vamos a ele. Cheio das granas
poderá ajudar muito nosso partido.
- Boa tarde seu Credulino. Viemos
fazer-lhe uma visita e cumprimentá-lo pelo seu grande êxito.
Foram deslizando na conversa até
encostar-se ao objetivo verdadeiro. A política, seu Credulino, é a mola
propulsora do progresso. E as pessoas de prestígio, como o senhor, são imprescindíveis.
Precisa-se justamente de homens de tino administrativo, como o senhor. Mas
tarde poderá dirigir os destinos de nossa cidade. Creio que podemos contar com
o seu apoio franco e decidido.
- Pois é. Comerciante de tino não se
filia à política. Conheço vário que se arruinaram por isto. Entram na política,
esquecem os seus negócios, gastam o que tem e no final das contas não lhe
aparece mais uma viva alma. Às pessoas afortunadas não faltam amigos. Aos
decaídos, o desprezo e a solidão, além dos comentários jocosos. – “Aquele besta
meteu-se em política para eleger os outros e arruinou-se. Bem feito para deixar
de ser burro”.
De política partidária, não desejo
ver nem a notícia. O pouco que hoje possuo, custaram-me os olhos da cara,
enquanto me considerava um bobalhão. Somente eu sei o que curti para chegar a
ter esses bagulhos.
A única coisa que tenho para dar é o
meu voto e isto mesmo se o candidato merecer. Quero é ser amigo de todos e
aumentar minha freguesia. No dia que me filiasse a um partido, os adversários
sumiriam de meu balcão e ainda fariam campanha conta minha casa comercial. Pois
é. Contem comigo, onde estiver menos no balcão da política. Minha parte estou
fazendo. Abri uma loja apresentável, sortida, continuarei a vender barato e
dormirei tranqüilo. Dinheiro para política nem um vintém. Eleja-se quem tiver
prestigio. Vejam o Serafim. Está aí tomando benção as ticacas. Comeram-lhe o
dinheiro que possuía, fecharam-lhe a casa comercial e não lhe arranjaram nem um
lugar de coveiro ou porteiro de cemitério. Enquanto tinha o que dar aos
sabidões, era seu Serafim pra aqui, seu Serafim pra acolá! Hoje não passam nem
à porta dele para saber da saúde. Tem receio que peça alguma coisa. E quando eu
estiver de esmola, ou morrer não irão nem ao meu enterro. Defunto não vota...
Nem chaleira ninguém. Além do mais, quando vivia na pedra, quem se lembrava de
Credulino, afora sua freguesia. Somente Deus que me ajudava e continua ajudando.
Políticos! Desculpem-me, tem duas caras e nunca se sabe qual é a certa. Meus
eleitores são minhas mercadorias e meus fregueses. Neles eu voto
tranqüilamente. Foram eles que me deram esta nova “Barateira”. Disponham dela e
me deixem na santa paz do Senhor. Obrigado pelo presente de gregos... Credulino
é um tolo, mas não tanto pra entrar em política... Falem-me em alguma coisa que
me traga vantagem, que reforce minhas economias. Nada que me tire dinheiro ou a
paciência. E depois o que vai ver em política um toleirão, quase falido como
diziam, nessa fase imaginária, sofri o diabo, calado e revoltado com a preocupação
de muitas pessoas contra a forma de vida que eu tinha e que não era da conta de
seu ninguém. Para chegar onde estou, era obrigado a fingir e suportar o visco
das más línguas. Não passava de um zé-ninguém, na opinião geral. E agora tenho
a confirmação de que o valor das pessoas está em função do dinheiro que
possuem. A pessoa mesma é como um saco vazio que só tem importância quando se
enche e se sabe que está cheio. O mundo é assim e não fui eu quem o fez. Quem
me representa são estas prateleiras superlotadas de mercadorias. E elas só votam
em mim e nos meus clientes. Eu próprio continuo sendo aquele Zé-ninguém que
estava quase falido... Muito bem. Creio que já me expliquei.
- Até logo seu Credulino. De
qualquer maneira seja nosso amigo.
- Está certo. Honro-me com isso. E
espero que me compreendam. Minha Barateira está as suas ordens.
24/09/1986
*O conto faz parte do livro “Vidas
Nordestinas”, no prelo.
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