terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

CORONEL CÂNDIDO



CORONEL CÂNDIDO*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/4/2003)


            Tranquilino entrou em casa faiscando. As narinas acesas, as veias do pescoço pulando, os olhos em brasa, com se tivesse brigado com o demônio.
            Assustou todo mundo. Pegou o cravinote, botou no bolso um pouco de dinheiro, tudo às pressas e já ia querendo sair sem dar explicação. A mulher aproximou-se de Tranquilino e perguntou o que era aquilo, o que estava acontecendo.
            - A Policia deve vir por aí. Uma briga no meio da feira. Derrubei um meganha na ponta da faca. Deixei-o de olhos vidrados. Quiseram tirar minha faca e arreliei-me. O policia me deu ordem de prisão. Tranquei-lhe a mão nas fuças, investiu contra mim e fui obrigado a dar-lhe uma catucada no pé da virilha. Vou-me indo antes que cheguem. Vêem de bando e preso não vou. Até logo mulher. Depois mando dizer onde estou. Mas se bulirem contigo ou com os molequinhos faço carreira. Quebro mais uns dois ou três. Para quem já entrou na dança e está perdido, todo caminho é curto. Té logo mulher. Vai logo, para a casa do patrão e fica por lá. Vai correndo.
            Saiu pela porta da cozinha e sumiu na caatinga. Menos de uma hora depois o delegado cercou-lhe a casa. Estava deserta.
            - O cabra já entrou na lenha. Mas não vai ficar assim. A mulher deve saber para onde foi.
            Bateram à porta do coronel Cândido:
– Vimos prender o Tranquilino. Matou um soldado.
            - Não o vi, nem sei onde anda.
            - Queremos então levar a mulher. Ela deve saber.
            - Ela não tem culpa de nada. E não vou consentir.
            - Não esqueça o senhor que sou autoridade.
            - Aqui não! E não adianta insistir, seu delegado. Isto é uma arbitrariedade. Procurem o tranquilino, aliás, sempre foi um cabra ordeiro. Nem posso entender como isso aconteceu. Culpa dele, ou culpa do soldado?
            - Seja de quem for coronel, o criminoso é ele.
A presença da polícia era uma novidade nas terras do coronel Cândido. E o pátio da fazenda encheu-se da cabroeira, aos grupos em pontos diferentes.
- Quer que essa gente aqui, coronel Cândido?
- São moradores. Certamente veio cumprimentá-lo. Respeito à autoridade. É gente ordeira. Não se preocupe.
- Bem, coronel, já nos vamos. Quero apenas fazer-lhe um pedido: caso o Tranquilino apareça, faça o favor de mandá-lo apresentar-se às autoridades.
- Pois não! É nossa norma. Antes, porém, desejo saber as causas do crime. E talvez até o soldado tenha sido imprudente ou violento e deu-se mal. Isso acontece.
- Já vamos indo.
- Não senhor. Vão fazer um lanche, primeiro. Daqui não se sai sem um cafezinho.
- Já que o senhor insiste, aceitamos.
Depois do lanche, o senhor delegado, conversou, a parte com o coronel:
- O tranquilino poderia voltar. Afinal, o soldado abusara ou excedera, querendo prender um cidadão pacato. E soldado era pago para morrer. Metera-se a cavalo do cão e levara a pior. Isso sempre acontece. E, além disso, o polícia era um mau caráter. Sempre andava em embrulhadas, com paisanos e com os próprios companheiros. Andava sempre transferido. Tranquilino poderia ir até a cidade, fazer suas feiras ou ir às missas dos domingos.
Despedira-se e retornara a delegacia.
Tranquilino não fora muito longe, mas estava bem reservado. Dias depois mandou um portador saber notícias. O coronel mandou que voltasse. O delegado dera o caso por acabado. E tranquilino duas noites depois estava em casa.
Ainda bem. Mas por precaução, por alguns dias não dormia em casa. Nunca se deveria confiar em polícia. Poderia ser uma armadilha.
O sargento, sorrateiramente mandara um meganha a paisana sondar a coisa. Certificado que Tranquilino estava em casa, preparara uma armadilha. O coronel havia caído em sua promessa.
Mas acontecera que alguém havia notado a presença do desconhecido e o coronel Cândido preveniu-se. Achava difícil a volta do delegado, mas aquela espécie de gente não merecia confiança. Colocou alguns dos seus cabras na vigilância.
Por segurança, tranquilino não deveria dormir em casa. Seria mais seguro e mudar sempre de local da dormida.
Uma bela madrugada o coronel ouviu tiros. O atrevido do sargento deveria ter voltado. Bateram-lhe na porta.
- Uma presepada coronel. A polícia cercou a casa do seu Tranquilino. Botamos para correr no tiro. Fora o jeito. O cabra é atrevido. Não se sabe se saiu algum baleado. Só se sabe que correram.
E quando o dia amanheceu o coronel mandou um homem à cidade, saber das novidades. Um soldado havia sido ferido no ombro. Por um triz não havia levado um balaço no peito. O sargento delegado estava fumaçando. Falava em prender o coronel Cândido. Atentado contra as autoridades. Precisava desfazer o coito da cabroeira. Iria pedir reforço e iria a plena luz do dia.
O coronel Cândido preparou-se para ser preso.
O chefe de polícia mandou um tenente, uma autoridade superior.
- Olhe senhor tenente, é melhor ir sozinho, conversar com o homem, sugeriu o chefe político. O coronel reagirá e vai morrer gente. Não será esta a primeira vez. Pisar em suas terras sem ordem dele constitui um desrespeito para ele. E o homem não torce caminho.
- Que nada! Esses coroneizinhos só têm conversa. Não estou aqui para brincadeira. E o senhor sabe de uma coisa, vou mandar intimá-lo e quero que ele não venha. Precisa-se acabar com esses valentões, donos do mundo.
O chefe político olhou para os pés do tenente, mediu-lhe a altura, calculou-lhe o peso e fez nova observação:
- Olhe seu tenente, nem ele vem e é capaz de mandá-lhe um recado desaforado. Aquele homem tem veneno nas tripas. Além disso, nunca foi desrespeitado. É melhor mandar curar a ferida do soldado e deixar o coronel em paz.
- O senhor pensa que tenho medo desses arreganhos? É porque essa gente nunca viu homem perto dele.  Por outro lado preciso, conseguir uma promoção por ato de bravura. Já estou marcando passo há muito tempo. E esta é minha oportunidade. Vou lá, cerco-lhe a casa, meto-o no xadrez. Donde foi que saiu essa onça braba.
- É dos pastos daqui mesmo, seu tenente.
Preparou a tropa para a investida. Era só mesmo o que lhe faltava, perder mais um galão. Quando disse para onde ia, o destacamento assanhou-se. Não tinha mingúem doido para uma botada no coronel Cândido.
- Quem desobedecer meto no xilindró. Não vim aqui para brincar.
O sargento delegado fez suas advertências:
- Seu tenente, o senhor se arrisca muito. Aquilo lá é um ninho de cobras. E o coronel é uma jararaca. Cabra lá anda no bolo. Não tem pena de couro de ninguém. O homem não vai ser desfeitado. Toma nota do que estou lhe dizendo. E afinal de contas, o senhor é capaz, de não escapar, e ainda perder os galões. O homem tem muito voto. Sempre elegeu aqui quem ele quer. Quem vê aquele chochinho, aquela figurinha insignificante, não pode avaliar quem está lá por dentro. Vá, mais vá preparado para o pior.
- E para que diabo, sargento mole, o governo nos dá esses fuzis e nos paga. Está conversando.
Nesse, entretanto, o próprio chefe político já havia mandado avisar ao coronel Cândido. E antes da volante sair, já o coronel entrava na cidade.
- Coronel Cândido vem aí, seu tenente.
- Deve ter vindo se entregar. Vocês são uns frouxos. Essa gente nunca viu autoridade...
- Entregar-se, coronel Cândido! Que esperança. Acho bom o senhor se resguardar. Aqui neste sertão, não se brinca de bonecas.
- Que vergonha, sargento. De que lhe serve essa farda e esse título de delegado.
- Quem avisa amigo é, diz o ditado.
E não tardou, o coronel estava à porta da delegacia. O tenente botou-se a ele:
- É o senhor o coronel Cândido?
- Ele mesmo em carne e osso.
- Deseja alguma coisa?
- Fui informado que ia me prender e resolvi poupar-lhe a caminhada. Cumpra sua missão. Uma autoridade como o senhor deve ser respeitada.
A cabroeira esperava o desfecho. A soldadesca sumira da delegacia adentro. O tenente estava só. Olhou a redor e não viu ninguém.
- Ora coronel Cândido, quem foi que lhe falou nisso? Vou descobrir quem foi que disse que eu ia prendê-lo. O culpado do que aconteceu foi esse sargento arbitrário. Será imediatamente transferido e preso. Um irresponsável. Pois como é que vai invadir sua fazenda para prender um homem, em legítima defesa, deu um tombo num soldado que não valia nada! Pura e simples irresponsabilidade. Peço-lhes desculpas de ter sido ameaçado de vir até aqui se entregar. Nem pense nisso coronel.
- Eu sou um homem da ordem e do respeito às autoridades. Pode dizer onde vou ficar. Cadeia, diz o povo, é feita pra gente.
- Que é isso, coronel!!!... Se eu cometesse uma indignidade dessas deveria perder os galões e a farda.
O coronel fez menção de entrar.
- Coronel, um homem como o senhor não pode por os pés dentro de uma delegacia. Não posso consentir.
- Ora, tenente, não perca a sua promoção. Quero ajudá-lo.
- Que promoção que nada. Coronel Cândido. Há muito tempo que venho me preparando para deixar a polícia. Quero nem ouvir em falar em promoção. E estamos aqui para ajudá-lo no que for possível.
- Olhe seu tenente, desejo simplesmente pedir-lhe uma coisa, uma vez que não quer me prender. É recomendar aos policiais que tratem bem os matutos de minha terra. Também é gente. Apenas são ignorantes. Orientar em vez de intimidar e intimar. É uma gente boa.
- Pois não, coronel Cândido. Deixarei isso bem claro. Virá para cá outro delegado. Este que está aí é um arbitrário.
- Não, tenente, deixe o homem aí. Irá aprendendo aos poucos.
- Desculpe-me coronel. Mas ele foi desatencioso com o senhor.
- Afinal, onde anda ele. Desejava dar-lhe uma palavrinha.
- Está por aí, envergonhado. Poupe-lhe essa humilhação. É um pobre diabo.
- Dê lembranças a ele. É o coronel Cândido quem manda!
O tenente desabou logo depois. Chegou à capital cantando de galo. Havia resolvido tudo, bastara sua presença para o coronel Cândido, comparecer a delegacia e pedir pinico. Humilhou-se e por isso não o havia deixado preso.
Mas, dias depois o chefe político foi à capital e falou com o Secretário de Segurança.
- Então o tenente Eliodoro apaziguou tudo lá em seu município? Intimou o coronel Cândido, deu-lhe uns conselhos e deixou tudo na santa paz. Se tivesse mais alguns de sua fibra moral, o Estado estaria tranqüilo. Não cometeu violência e o coronel humilhou-se. Estava necessitando de uma reprimenda. Precisa-se acabar com o coronelismo.
- Não entendeu nada, senhor Secretário! Quando o coronel teve notícias de que ele iria detê-lo, para uma prestação de contas, o Cândido foi à delegacia e o tenente borrou-se. Foi uma vergonha. A polícia escondeu-se e o homem derreteu-se em desculpas. Botou o coronel acima das nuvens. Só faltava mesmo beijar-lhe os pés. Um frouxo e covarde. Desdisse tudo quanto havia fanfarronado. Até uma promoção que estaria assegurada com a prisão do coronel, disse que nunca pensou nisso e que há muito tempo estava pensando em deixar a polícia.
- É a assim! Pois vou mandá-lo de volta prender o homem. Quero-o aqui na capital.
Telefonou chamando o tenente Eliodoro. Com urgência.
- Pelo amor de Deus, senhor Secretário, deixe o tenente em paz.
- Está certo, mas quero pelo menos causar-lhe um susto.
Eliodoro chegou. Esfriou quando avistou o chefe político.
- Olhe tenente Eliodoro, nosso amigo Clementino acaba de avisar que o coronel Cândido está por lá cuspindo no cabo do facão, ameaçando Deus e o diabo. Quero que volte lá e traga-me o homem algemado. Não admito banditismo no meu estado.
- Senhor Secretário, o senhor veja se pode mandar um outro. Faz cinco dias que estou com amebiana e o tratamento é demorado.
- Bem, então vamos deixar para depois da cura.
- Intensifiquei o tratamento. O senhor sabe que depois dessa doença a gente fica fraca, precisando de repouso...
- Tem nada não. Depois do repouso... O homem está uma fera e só confio no senhor. Talvez venha até nomeá-lo delegado da regional de lá. Assim, haverá respeito e tranqüilidade na região. Vou recomendar ao médico do batalhão que ative o tratamento. Sua presença ali é a solução, parece-me.
- Poderei fazer uma carta ao coronel Cândido, pedindo-lhe calma. Sei que me atenderá.
- Parece que está com medo, tenente?
- Ah! Senhor Secretário, até hoje não sei que bicho é esse... Brabo comigo, derrete-se logo. Nem preciso puxar a orelha.
- Infelizmente, as informações que tenho são um tanto desencontradas. O coronel Cândido está lhe esperando.
- Ora, foi à delegacia sem mandar buscá-lo. Bastou saber de minha presença.
- Pois é. É o homem que eu necessito para trazê-lo aqui. Acabar com o caciquismo do sertão.
- Dê licença, senhor Secretário. Está me apertando uma cólica.
- Então corra para não encher e não enodoar as calças.
- Ou rapaz? Bastou falar no nome do coronel Candido... E comete logo um ato de bravura...
- Pra falar a verdade, senhor Secretário o coronel Cândido é um purgante de jalapa. Só o engole quem tem bom fôlego. Prefiro perder o posto. Lá em Quixabeiras já perdi umas calças. Não prestou pra lavar. Mas aquele coronel ainda me paga...

1.9.84.
*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.






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