segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

CIUME









CIUME*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


A mulher de Zacarias não tinha culpa de nada. Era uma santa. Mas Zacarias morria de ciúmes. Não porque fosse ela mais bonita de todas as outras mulheres, mas só porque possuía um corpo incomparável, macio, quente e extremamente voluptuoso. Tinha que ser somente dele e era capaz de furar os olhos de qualquer um que tivesse a afoiteza de olhar para Zízia.
Tinha a impressão de que a envolviam de maus pensamentos, e desejos espúrios. E com essa obsessão desmedida, Zacarias não tinha um momento de tranqüilidade. Suspeitava até de seus maiores amigos. Alias, para ele, essa questão de amizade era muito relativa. Muita gente se mostrava amiga só por conveniência. Uma simulação, por velhacaria. Sempre havia uma segunda intenção. E no seu caso, nem tinha dúvida, o que pretendiam era estar perto de Zízia. Estava na cara. E havia de prestar bem atenção no gesto, na conversa, na maneira de olhar.
Mas nada manifestava a Zízia. Seria um meio de apanhá-la de surpresa. Quando saía para sua casa comercial, o campo ficava aberto e saía com a impressão que nem um homem poderia olhar para Zízia sem segundas intenções. E martirizava-se por não poder adivinhar os pensamentos dos amigos e, inclusive do pãozeiro que entregava o pão todas as manhãs. Era um sujeito moço, de boa aparência e metido a alegre.
O mais certo era cortar-lhe o fornecimento de pão e ir ele mesmo a padaria. Não queria que patife nenhum estivesse se deliciando com as formas do corpo de sua mulher. Ele mesmo convivia com ela, beijava-a, dormia com ela, e fazia o que queria, nunca deixava de viver encantado, era de se imaginar os outros que não respeitavam os mandamentos de “não cobiçar as mulheres alheias”.
Por que não notara antes o corpo de Zízia ou não se lembrara do que ele seria capaz de despertar nos homens, principalmente nos desavergonhados. E quantos cafajestes já não haveriam se imaginado deitados com sua mulher, chamegando com ela. Zacarias tinha certeza de que Zízia era honesta e decente, mas todas essas coisas poderiam ter um limite. O mundo era uma mistura de coisas boas e ruins. Quem poderia saber se de um momento para outro, Zízia não se apaixonaria por um gaita qualquer, um desses atrevidos que andam farejando as mulheres casadas, pouco se incomodando de levar um tiro nas virilhas, ou uma facada no pé do umbigo. Depois da conquista, o resto seria água de coco anão. O certo mesmo seria dar um jeito de acabar com certas intimidades em sua casa. Essa história de primos e amigos quase irmãos, era conversa fiada. Entra em casa, um olhar para cá, outro para lá, uma palavrinha engraçada, um gesto, um aperto de mão mais apertado e amolegado e com algum tempo, “por casualidade”, uma encontroadazinha e assim vai indo o chamego. Tudo começa tão natural que nem parece haver uma sombra de má intenção.
Zacarias haveria de descobrir um meio prático de disfarçar e esconder as curvas do corpo de Zízia. Soltar mais os vestidos, mudar a cor do tecido, afinal, torna-la desgraciosa. Mas aí surgia o problema. Não sabia o gosto das pessoas. Às vezes o que lhe parecia pouco atraente, bem que poderia ser justamente apetitoso para os outros. E por arte do diabo a mulher não engravidava para tornar-se disforme.
Mas, ah! Que engano. O cretino do Malaquias, já lhe havia dito que era doidinho por mulheres grávidas. Um canalha legítimo! E Zacarias duvidava cada vez mais que alguém pudesse ver sua mulher sem desejá-la. E aquela intranqüilidade, aquelas dúvidas lhe tiravam o sono e a vontade de comer. Na loja já andava passando troco errado e entregando uma mercadoria por outra, e que lhe parecia um mau sinal. E por que cargas d’água não confiava na mulher, uma santa daquela. Deveria ser arte do capiroto. E aquilo poderia levá-lo a doidice completa. E era um perigo maior ainda. Doido internado num hospital e a Zízia entregue aos máscaras. Era urgente retirar aquelas idéias da cabeça, antes de endoidar. E passo a passo foi chegando a uma conclusão que lhe parecia a mais lógica deste mundo de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Sim, seria muito melhor ser corno do que doido. E o pior ainda seria ser doido e corno ao mesmo tempo. A desgraça seria total. E o povo gozando: - “Zacarias endoidou, minha gente”. A mulher dele tirou-lhe o juízo. Também não era para menos, uma coisa doida daquela, um corpo apetitoso daquele. Fulano foi comprar um Melhoral e lhe entregou um quilo de bacalhau e cobrou como se fosse uma garrafa de vinagre. E não se sabe a causa. Casado com uma mulher completa vive bem financeiramente e sempre teve saúde. Só pode ter sido mesmo a mulher. É esgotamento nervoso.
Zacarias resolveu levar a mulher para a casa comercial. Pelo menos estava ali à sua vista e faria um teste. Ficaria de olho nela em relação à freguesia. Mas aconteceu, por coincidência, o que ele não previa. Dois dos seus amigos foram visitá-lo na mercearia.
- Não, aquilo não poderia ser coincidência. Os safadórios foram ali somente para admirar o corpo de Zízia. Era muito descaramento. E o mais sintomático era aquela demora e aquela conversa mole. Assuntos desconexos, às vezes fúteis demais. De outro lado, procuravam fazer graça para, na certa chamar a atenção da mulher. E não teve outra iniciativa senão mandar a mulher para casa. E mandou.
- Vai Zízia, vai cuidar dos arranjos da casa. Há pouco movimento nesta bodega, hoje.
E Zízia se foi. Mas o diabo andava rondando Zacarias. Instantes depois os dois amigos deram uma desculpa esfarinhada e saíram também. Então Zacarias não tinha mais nem um pouco de dúvida, os dois vira-latas haviam ido lá somente para cravar os olhos no corpo de sua mulher. Havia observado que a mulher não lhe dera a menor confiança. Confiava nela, mas o que o danava era estarem a farejá-la e certamente esperando a qualquer momento, uma retribuição, um olhar de aceitação o sorriso gracioso. E como poderia saber se a mulher não estaria simulando. Mulher quando ama é capaz de enganar até o mais esperto e desconfiado dos homens. Zacarias precisava aconselhar-se com alguém para tentar tirar-lhe aquelas cismas. Mas com quem? Lembrou-se do padre Joaquim, homem sério e livre de certos preconceitos.
Foi até lá. Abriu o coração e não ocultou nada. Sabia que a mulher era honesta, mas não suportava pensar que alguém olhava ou pensava nela. Parecia um absurdo, mas não conseguia se controlar. No entanto precisa sair desse empurrão que a vida lhe dava.
- Olhe seu Zacarias, vai perder sua esposa, uma criatura que poucos têm a sorte de possuir.
- Perder, por que padre?
- Ora, por isto mesmo. Pela sua falta de confiança na jóia que tem em casa. Onde foi que já se viu tratar uma senhora honesta dessa forma. E diga-me uma coisa. O senhor não olha por acaso para as filhas e as mulheres alheias?  E quem pode deixar de olhar. Mesmo quando não olha, pensa nelas, não é verdade? E que mal há nisto. O próprio Cristo teve Maria Madalena, a pecadora ao seu lado. Nem por isto deixou de ser um santo. O que o senhor é, é um homem fraco, indeciso, um vencido pelas suas dúvidas e receios injustificáveis. E nada mais o que esta sua fraqueza vai o conduzir? Simplesmente à doidice, se já não o é. Conheço sua mulher desde menina. Sempre foi uma criatura digna. O senhor olha e admira as mulheres dos outros e ninguém pode olhar para sua. Acabe com esta leseira e cuide em sua casa e em seus negócios. Confie nos seus amigos e dê graças a Deus ter a esposa que, segundo está me parecendo não merecia! Trate-a com total confiança e deixe de andar fiscalizando a ela e aos seus amigos. E faça-me o favor de não me falar mais nisto. Que absurdo. E eu que o considerava um homem normal, não passava de um grande tolo, vá para casa, tome um banho com sabão de matar pulgas de cachorro, para tirar a sujeira dos maus pensamentos e deixe sua mulher e seus amigos na santa paz. Onde foi que já se viu semelhante disparate. E veja mais. Se sua santa mulher quisesse proceder mal, só Deus o impediria. Quero que passe a ser aquele homem que sempre pensei que era. Que coisa! Desterre de sua imaginação doentia todos os seus maus pensamentos. Maus pensamentos são a borra de um mau caráter. Já pensou quanto tem sofrido sua esposa. Crie juízo amigo Zacarias. E para festejar sua estréia no novo regime de vida, ofereça um jantar aos seus amigos e ao padre Joaquim, que há muito tempo não sai do trivial. E não tenha a menor dúvida que serei o primeiro a olhar e conversar com sua senhora.
- Ah! Mas o senhor é padre.
- Espere, está pensando que padre não é também um homem!...
- Marque o dia e me avise. E leve um bom vinho. E não lhe perdoarei se faltar costelas de carneiro ou porco, assadas.
- E eu que pensava que o senhor era um homem sério!
- Era não. Sou. Mas onde foi que olhar para uma mulher já deixou de ser coisa séria? Já diziam os antigos que não havia nada de melhor do que um bom jantar, vinho capitoso e mulheres bonitas. Vá cuidar de nosso jantar. As flores eu mandarei daqui do meu jardim. Vá ver que em sua casa não se encontra nem um pé de resedá. Ciúmes da mulher...
Zacarias meio aliviado. O padre tinha toda razão. Deus havia feito as mulheres para ornamentos da sociedade. Então era para serem vistas e admiradas. E por que a dele ia ser exceção. E havia de confiar nos amigos. Muito bem. No entanto o padre Joaquim não lhe parecia muito confiável. O bicho parecia entender de mulheres desde o tempo da criação. E quem poderia saber se não seria uma reencarnação do papai Adão
Segundo os volteios do espiritismo isto era possível. Não era nada mal ficar de olhômetro nele. Do mato que não se espera é donde sai raposa. O fato de ser tonsurado e vestir batina, não significa dignidade. E aquela história de celibato poderia ser manha da turma. Tinha que ficar de olho no bicho. Quem não te conhece que te compre...
O jantar foi marcado e os convites feitos. Por coincidência caiu numa sexta feira de agosto, dia 13. Quem lembrou a coincidência foi padre Joaquim e por isto convocou os convidados para uma oração protetora. Zacarias ficou preocupado. Só mesmo quem tivesse escolhido propositadamente. O certo é que o perigo estava na coincidência azarenta. E a idéia do jantar fora justamente do padre. De qualquer maneira e por segurança iria proibir a mulher de se confessar com o padre Quincas. Sabia lá o que se passaria no confessionário. Poderia puxar pela inocente da mulher na tentativa de descobrir suas fraquezas, e deixa-la em dúvida. – “Veja bem dona Zízia, relacionamento com as pessoas, bem entendido, amoroso não é pecado. É uma lei natural. Não se impressione se algo acontecer daqui para frente”. Zacarias entendia que confissão era mais ou menos assim. Descobrir as franquezas das pessoas e abrir caminho para aventuras. Mas pelo menos, na verdade, padre Joaquim respeitava as mulheres dos amigos.
Zízia não foi mais vigiada!
E quando passava com aquela fartura de beleza corporal que Deus lhe dera, caia uma chuva de olhares em cima dela.
Mas Zacarias ficava orgulhoso de tanta admiração. O que acontecia, Zacarias nunca veio, a saber. Não perguntava à mulher para onde ia e nem de onde vinha e também não prestava atenção a que hora chegava. Vivia tranqüilo cumprindo a receita que padre Joaquim lhe dera, aliás, um santo remédio.
- Olá, amigo Zacarias. Como vai?
- Otimamente. A mania de fiscalizar a mulher e os amigos sumiu. Parece até que tomei Doril!
- E dona Zízia?
- Ora, um modelo de fidelidade conjugal. Sai quando quer, volta quando deseja e quando entra em casa, à noite, é a mesma Zízia. Bem que o senhor me disse que os olhares dos amigos não ofendem ninguém.
- Pois é, não notou nela qualquer diferença, não é assim?
 - Para falar a verdade, só uma. Uma só. Quando vai se deitar, dorme logo e não me incomoda. É uma tranqüilidade. Anteriormente puxava demais por mim. Parecia uma endemoniada. Seus conselhos, padre Joaquim, foram minha salvação. Agora tiro as noites de um sono só. Aliás, não era brincadeira. Acordava-me pelo menos três vezes por noite e me obrigava a tomar todos os dias um daqueles potinhos de geléias de mocotó, a coisa mais enjoada deste mundo.
- Pois é. Quem possui uma mulher assim tem que deixar passear até matar a “vontade” (frisou) para chegar a casa mais calma, tranqüila, e deixar o marido repousar na santa paz de São Cornélio.
- E será que o senhor pode me fazer um favor?
- Qual?
- Arranjar-me uma imagem desse santo milagroso lá para casa. Quero colocá-lo bem pertinho de minha cabeça.
- E não a possui ainda? Pois deixe comigo e nem fale com os amigos senão, não vai ter onde colocar tanto São Cornélio.


Em 23.9.1986.                                                                                              

*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

                     
                                                  







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