João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
Para dona Atília, a vida na roça era uma espécie de
castigo que Deus lhe dera e sem ela saber a razão. Era católica, apostólica
dessas que cumpria zelosamente os seus deveres cristãos. Não considerava um
pecado o mal estar que sentia vivendo na roça, isolada do mundo, assustada na
solidão das noites intermináveis. O que desejava era, no entanto morar na
cidade, no meio de muita gente, andando de casa em casa, tendo com quem
conversar, ouvindo e transmitindo boatos e, quem sabe, falando da vida alheia.
Por arte do capiroto não tinha filhos e o marido só
lhe aparecia à hora das refeições, ocupado que andava, com os múltiplos
afazeres da fazenda, donde retirava o sustento da casa. Argumentava
constantemente com o seu Adonias sobre as vantagens de venderem tudo e
mudarem-se para a cidade. Lá botariam uma bodega ou arranjaria um emprego na
Prefeitura, fosse qual fosse. Ela é que não suportava mais o mato. Afora os
domingos que ia a missa e as quatro festas do ano, o mais era internada
naqueles cafundós de Judas. Não era vida de gente. Atanazava o homem a cada
instante e fazia promessas a tudo que era santo, para convencer o marido a sair
daquelas brenhas.
- Mas, Atília, não sei fazer outra coisa. Não tenho
jeito para o comércio e nem tenho letras para um emprego. Seria um desastre e
mais cedo do que pensas, estariam pedindo a benção às ticacas. O que eu sei
mesmo é plantar minhas roças e criar as vaquinhas e as cabras. É dai que sai a
manutenção da casa. E depois gosto do campo, dessa vida que levo, sem dever
nada a ninguém e aumentando meu pé-de-meia. Tenha santa paciência, mulher.
Também nascestes na roça como eu e porque, agora, esse desespero para ires para
a cidade?
- Não suporto mais viver aqui neste sumidouro.
Gostas, mas, eu não. Será que só pensas em ti. Que coisa!...
- Olha, não saio daqui nem amarrado. Tenho juízo.
E com pouco tempo a mulher anoiteceu e não
amanheceu. Quando Adonias chegou em casa para o almoço, cansado e o estomago
vazio, foi o lugar mais limpo que encontrou. Talvez a Atília tivesse ido à casa
de algum vizinho. Mas logo percebeu que não havia nada para o almoço. E
sentiu-se só e abandonado. Tomou de imediato, a resolução de não ir procurá-la.
Faria falta, mas não daria o braço a torcer. Arranjaria outra. Foi à casa do
sogro e comunicou o fato. Houve estarrecimento. Declarou que pensava que teria
resolvido voltar para casa dos pais. Mas nem dera notícias.
- Vai procurá-la.
- Não, não irei. Sofreria certamente, nova
decepção. Saíra porque quisera, sem nenhum motivo, sem discursão, sem nada.
Apenas quis deixa-lo.
- Certamente enlouqueceu.
- Nada disso. Vivia batalhando para irmos morar na
cidade. Não suportava a roça. Não tinha como sair. Resolveu ir só e foi. E
agora, sozinho, nem sei como poderei viver. Sabe como é, a falta que faz uma
dona de casa.
- Ela vai voltar na certa.
- Tenham santa paciência. Saiu, saiu. Comigo mais
não. É uma pena, mais não há outro caminho.
- Então, vamos fazer uma coisa. Venha fazer suas
refeições aqui.
- Seria ótimo, mas, pela distancia não dá.
A Marina ouvia calada todo drama do cunhado e
naquela simplicidade de roceira, sugeriu uma solução. Iria tomar conta da casa
até que Adonias arranjasse uma caseira. Passo o dia e venho dormir em casa. E
posso até dormir por lá mesmo. Já não sou nenhuma criança e seu Adonias é um
homem direito.
Adonias sentiu um calafrio na espinha. Uma mulher
com aqueles olhos atrevidos e um corpão saliente daquele, só podia estar doida
varrida.
Adonias agradeceu e acrescentou que se “arranjaria
de qualquer forma”.
E a mãe tomou a frente: - Não havia problema. Seu
Adonias era homem de toda confiança. Deveria ir mesmo substituir a irmã
tresloucada no arranjo da casa. Não havia nada de mais.
E como a velha era quem mandava e desmandava em
casa, o marido não deu pitaco, embora estivesse claro que nem Nosso Senhor
evitaria o desmantelo. Pobre coitado, sem voz ativa, baixou a crista e lá se
foram Marina e seu Adonias, na maior tranquilidade aparente, os dois pensando
na mesma coisa.
Em casa, jantaram, conversaram e já meio tarde
recolheram-se. Logicamente nenhum conseguia adormecer. E lá para as tantas da
noite, Marina chamou Adonias, com a voz tremula e assustada.
- Seu Adonias, estou com medo, seu Adonias. Nunca dormi sozinha. O que é que faço?
- Acalme-se, criatura. Nesta casa nunca se viu
assombração.
- É mais estou com tanto medo...
E logo em seguida já estava no quarto do cunhado.
- Vou me deitar aqui do lado, mas não bula comigo.
- Nem se preocupe.
E pouco demorou, Marina foi-se encolhendo e encostando-se
ao Adonias. E o medo foi aumentando, aumentando de tal forma que Marina
agarrou-se com Adonias.
-Tem coisa aqui no quarto, homem. Me cubra com seu
cobertor, senão morro de medo.
E com pouco tempo o medo acabou-se. E Marina dormiu
até o dia clarear.
- Está vendo o que você fez sinha medrosinha. Eu
bem disse que aqui não havia assombração.
- O culpado foi você. Eu só fiz me encostar com
medo. Tinha nada de mais. Mãe disse que você era de confiança. E nem foi nem
nada. E agora como é que eu vou pra casa já assim em duas bandas... Não se pode
mais confiar em ninguém. Levei todo esse tempão e nunca me aconteceu nada. Vou
fugir também, procurar minha mana.
- Assim, não. Dissestes que vinhas para o lugar
dela.
- Mas somente para o arranjo de casa.
- É. Eu bem que te disse que não tinhas que ter
medo. Medo é uma coisa danada. A pessoa fica sem saber o que faz. A culpa foi
somente tua, com as tuas besteiras. Agora o galo já cantou e é esperar que
cante novamente.
E as horas foram se passando, sem o galo cantar.
- Ou Adonias, que galo danado de preguiçoso é esse?
Será que só canta uma vez? Se for assim, vou já voltar para casa.
Cerca de um mês e meio a Atília bateu em casa dos
pais. Vinha desfigurada, com ar de desiludida. Procurou pela irmã. Seria o seu
consolo, sua confidente. Tinha muita coisa para dizer-lhe. A cidade não era o
que ela pensava. Lá ninguém nem ao menos olhava para ela. Era uma espécie de
bruxa. Andava de léu em léu, sem arrimo e sem consolo. Pedia emprego: - Não
empregamos gente desconhecida. Teve vontade de cair na gandaia, mas não era isto
que queria. Não era isto o que pretendia.
- Mas onde anda Marina. Será que também caiu na
burrada de fugir como eu?
- Nada disso. Anda em casa de Adonias que deixastes
sozinho, sem alguém para fazer-lhe a comida e arranjar a casa.
- Na casa de Adonias? Vou já buscá-la. No meu
lugar. Que desavergonhamento. Então foi somente eu dar as costas, meteu-se com
aquele sabidão. Aposto que foi ele quem a iludiu. Aquilo não vale nada. Mesmo
assim é meu marido.
- Não vais a parte nenhuma. Se querias um marido.
Deverias ter ficado com ele. Agora que os dois estão se dando muito bem, não
irás atrapalhar mais uma vez a vida do homem.
- Não está vendo que isso não pode dar certo. Uma
moça solteira, sozinha com um homem descarado. Como foi que a senhora concordou
com semelhante disparate.
- Nada de disparate. Adonias é um homem
respeitador, correto. Depois que a menina foi para lá, não nos tem faltado
nada. No teu tempo, nem te lembravas de que a gente era viva. Deverias era
agradecer à tua irmã. Adonias sempre te tratou muito bem. Foste tu que o
abandonastes só pela mania de ir para a cidade. Agora está ai em que deu a
cidade. Não tens marido, não tens casa e a cidade muito menos.
- Vou, vou lá de qualquer, maneira. Fique ou não
fique.
- Adonias já disse aqui que nem queria mais ver-te.
Saístes sem motivo, ganhastes o mundo e ele não vai te aceitar de volta, nem
transformada em joia. Fica quieta ai e deixa tua irmã sossegada.
- Não está vendo que não pode ser. Está na certa
dormindo com ele. Mande pelo menos chamá-lo.
- Vou mandar, vou mandar.
Marina chegou, desconfiada e medrosa de que viessem
suspeitar do que estava acontecendo. Mas se apertassem, colocaria logo os
pontos nos is. Não tinha mais jeito a dar e nem tinha culpa. Não estava
habituada a tais situações e o diabo atiçou o braseiro. A mana saíra por que
quisera. Culpa exclusiva dela que, ainda, por cima, motivara sem querer e sem
pensar, o encontro dos dois. Coisas da vida. Agora era aguentar o jogo de
cintura. Felizmente sabia que não havia pegado nada. Na certa seu Adonias era
estéril. E boa sorte.
- Onde andas sinha desavergonhada. Tomastes o meu
marido, não foi? Pois não voltaras mais para lá. Quem vai voltar serei eu, eu,
ouvistes.
- Não ouvi nada. E de lá não saio e nem Adonias te
quer. A cidade é o teu lugar. E o que andou fazendo por lá. Muita baboseira,
por certo.
- Não passas de uma descarada! Vivendo com o marido
alheio. Onde foi que já se viu semelhante falta de vergonha. E logo o marido de
tua irmã.
- Estás enganada. Não vivo com teu marido. Apenas
sou medrosa e durmo com ele, mas não acontece nada, nada mesmo. Que falta de
confiança, meu Deus. Quem quer marido não o larga. De lá não vou sair, a menos
que o Adonias me mande embora.
- Pois te fica lá com aquele matutão brocoió. E
digas a ele que não me bote às pranchas aqui. Não quero vê-lo. Uma zebra que
nem gerar filho gera.
- Então, está muito bom para tua irmãzinha
inocente. Até logo, mana. E anda direito senão o Adonias te pega.
- Verás depois..., o que vai te acontecer. Fui uma
estúpida. Não acreditava no que me dizia Adonias. Cidade não enche barriga de
ninguém. Nosso lugar é aqui mesmo. Agora sou a criatura mais infeliz do mundo.
Estou como saí. Não fui desonesta. E daqui por diante, continuarei como sempre
fui. Não mereço nada de ninguém. Vou para o campo ajudar papai. Cuidar das
lavouras, engrossar as mãos e chorar minha desdita.
Marina voltou e na volta chorou a má sorte da irmã.
Não queria que ela visse nem soubesse.
- Por onde andavas Marina. Já pensava que havias
fugido como a Atília. Seria o fim de minha vida.
- Fui ver Atília, em casa do papai. Chegou de não
conhecer. Magra, desconsolada, chorosa, arrependida, aniquilada. Queria vir te ver, mas teve medo. A cidade era
uma ilusão. Não consegui trabalho, não se misturou com ninguém e voltou pura
como saiu. Sabes que sempre foi honesta. Não foi isto mesmo? Tenho muita pena.
Eu não tenho o direito de tomar o seu lugar. Caí nos teus braços como uma
borboleta atraída pela luz. Acho que estava fora de mim. Não me arrependo dos
nossos encontros e nem quero sair fora deles. Não teria mais jeito, nem
adiantaria nada. O que tinha para quebrar, já quebrei. Ninguém emenda mais. E o
que pensas de tudo isto. Tenho pena de minha irmã, muita pena mesmo. Ela está
ansiosa. Mulher quando vira mulher não pode mais fugir do “bicho papão”.
Enquanto não arrebenta os ponteiros da gaiola não sossega. Atília está assim,
notei pelo jeito de olhar e de morder os lábios constantemente, como quem está
sentindo uma secura. E é assim que a gente se perde.
Marina calou-se e começou a chorar. Adonias parecia
impassível e perplexo. Tantos anos juntos com aquela mulher, lembrando-se da
vida que levaram até quando Atília endoidara pela cidade. Lembrava-se dela moça
ainda ao seu lado, ofegante e tremula como uma juriti presa numa arapuca. Agora
estava só, esperando por ele e sabendo que a irmã lhe tomara o lugar em todos
os recantos da casa. E era duro, cruel, pensar à noite que Marina, sua própria
irmã dormia ao seu lado e ela acompanhando tudo que deveria estar se passando
com os dois.
- Vamos lá Marina.
- Vamos, sim, com uma condição. Eu fico lá e ela
vem.
- Não e não. Não vou te deixar, nunca. Salvo se
estás arrependida e não me queres mais.
- Nada disso. Nem morta, me arrependeria. Mas
Atília é minha irmã e esta arrependida e sofrendo horrivelmente. Bem sabes o
que é um desejo insatisfeito.
Entraram os dos e surpreenderam Atília chorando,
debruçada na mesa. Assustou-se com a presença dos dois e permaneceu calada como
se houvesse perdido a voz. Lentamente ergueu a cabeça e olhou para Adonias e
voltou a chorar as suas desilusões.
- Como vai Atília?
- Tão amargurada quanto se podia pensar. Meu único
consolo é estar ao lado dos meus, depois de sentir-me perdida onde pensava
encontrar a felicidade. Vaguei como uma desesperada passei fome e dormi de
caridade com vergonha de voltar. As noites mais longas de minha vida e os dias
mais tormentosos que se poderia imaginar.
- E o que queres fazer, Atília?
- Quem fez o que eu fiz, não tem mais nada para
querer. Morrer aqui, trabalhando na roça. E ainda me parece muito pouco para
quem errou tanto.
Adonias amoleceu. Não esperava tanta imaginação
daquela mulher que era tão cheia de vontade e tanto sonhava com uma vida de
fantasias.
- Como é. Queres ir para tua casa? Tua irmã quer
voltar. Foi-me muito útil e amiga. Tomou o teu lugar e não poso ser ingrato com
ela. Nos momentos mais desesperadores por que passei, amenizou o meu
constrangimento. Assim vocês duas decidam.
- Olha Adonias, é Marina quem merece.
E estabeleceu-se a contenda. - Você vai e eu fico a
vez é sua; - e não saía uma solução. Enquanto isso, Adonias mantinha-se na expectativa,
imaginando o que iria acontecer, se as duas não se decidiam. Pelo visto nenhuma
queria ficar e o jogo de cintura era somente gentileza. E para que a coisa não
se encompridasse mais, Adonias com a maior fleuma fez uma sugestão: uma vez que
estão nessa dúvida que parece não ter fim, talvez eu possa dar uma solução, bem
entendido, se aceitarem.
- Qual, qual, - falaram as duas ao mesmo tempo.
- É simples. Vão as duas. Tenho farinha e feijão
para sustentá-las.
E as duas se entreolharam como se se consultassem
com os olhos. E a resposta veio em cima da fivela.
- Muito bem, muito bem. Homem é quem sabe resolver
as coisas. Mas será mesmo, Adonias, que darás conta das duas?
- Vai-se ver. Depende do trato que me derem e do
calendário...
E dentro de meia hora, já estavam no caminho e na
maior alegria da vida.
E Adonias, o espertalhão, nem sabia pra onde se
virar. E as duas fizeram um acerto. Um dia, o arranjo da casa, o outro,
Adonias. E nesse revezamento, nunca se viu tanta harmonia, nem tanto bem
querer. E Adonias mandou celebrar uma missa de ação de graças pela volta de
Atília e a permanência de Marina. E assistiu-a ajoelhado do começo ao fim. Vá
ter sorte assim no inferno.
*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
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