sábado, 28 de dezembro de 2013

CARRAPETA



João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/4/2003)


            Carrapeta era filho de mãe solteira que não o desprezara e queria-lhe tanto bem como qualquer mãe extremosa. Era ele só e ela, morando numa casinha de taipa à beira da estrada à saída do povoado.
            Maria Rosa vivia exclusivamente de sua máquina de costura e não lhe faltava trabalho. Costurava roupa de homem e de mulher, caprichosamente. Principalmente nos períodos de festas tinha que se desdobrar, entrando pela noite e acordando com as madrugadas para atender a freguesia.
            Carrapeta não lhe dava trabalho. Brincalhão e esperto achava sempre entretenimento que não perturbasse Maria Rosa. Era tão boa e tão doce com ele que nem tinha coragem de interrompê-la. Quando queria qualquer coisa, ficava ali por perto, rondando como se quisesse falar.
- O que é Carrapeta. Fala logo.
- Mãe, posso pegar uma bolacha ou pedaço de pão, mãe?
- Pode sim, menino. Não precisas me pedir. Tira quando quiseres, mas não para estragar.
E Carrapeta ia direto ao armário, e saia mostrando de longe a Maria
Rosa, o que levava. A mãe achava naquela obediência e sentia-se maravilhada, com o filho que tinha. E enquanto ia cortando, alinhando e costurando, pensava em outras mães que não tinham sorte de ter um filho tão bonito igual à Carrapeta.
 E lá fora, à frente da casa, Carrapeta reunia os seus poucos brinquedos e se esquecia do mundo, nas inocentes brincadeiras.
Adorava o caminhãozinho de madeira, que puxava pra lá e pra cá, carregado de areia, ou de pedras miúdas. Quando algum companheiro chagava, parava de transportar, encostava o caminhão e mudava de brincadeira. Ninguém pegava naquela sua maior riqueza de menino pobre.
Foi crescendo, crescendo e começou a pensar em ganhar dinheiro. Poderia muito bem fabricar caminhões iguais ao seu para vender aos outros meninos. Sabia que ambicionavam ter também um veículo para fazer à mesma coisa. Mas não dispunha das ferramentas. Um serrote pequeno, um martelinho e um canivete Corneta. Material arranjaria. Pedaços de taboas, caixões, latas e pregos. Falou com Maria Rosa. A mãe aprovou. - Era bom que fosse aprender a fazer as coisas e a ganhar uns trocados.
Mas cedo do que esperava, lá estava com suas ferramentas que só faltou mesmo beija-las. E caiu em campo em busca de material. Foi logo a mercearia de seu Juca da venda e depois de explicar-se, perguntou se poderia lhe dar caixões que vinham com mercadorias.
- Vai, Carrapeta, vai ali ao quintal e escolha lá. Leva o que precisares. Carrapeta enfiou-se de corredor adentro e teve uma surpresa. Era um monte de caixão de sabão, de velas e outros artigos. E o melhor é que tinha os pregos que necessitava. E ainda mais, ao lado, aspas de barris para os molejos e outros arranjos.
Agradeceu e ia saindo quando seu Juca chamou-o para dizer-lhe que podia vir buscar tantas vezes necessitasse. Carrapeta instalou-se no quintal, fechado de varas. Ninguém deveria ver sua fabrica. Um caixão servia de bancada. O serrote novo não serrava. Levou-o a casa do Manoel Ferreiro para amolá-lo.
- Não é só amolar não, menino tem que travar. Mas deixa que faço.
Carrapeta não sabia o que diabo era travar e ficou pasmado de ver como era. No começo teve um susto danado. Tinha impressão que o ferreiro estava quebrando os dentes de seu precioso serrote. Quase gritava e pedia que não fizesse aquilo, pois não poderia comprar outro.
- Apanha ali aquele toro de madeira, Carrapeta. Toma e experimenta teu serrote. Se não serrar, nada mais poderei fazer. E o serrote entrou toro adentro como um raio.
- Que beleza, mestre. Quando vi o senhor entortar os dentes, pensei que estava desgraçando meu serrotinho. Quanto é?
- Nada, seu tolo. Vai fazer tuas carruagens.
No final da semana Carrapeta estava com a sua primeira obra prima prontinha. Iria pegar no primeiro dinheiro de sua arte. O carrinho tinha até faróis, duas tampas metálicas de guaraná. Mostrou-o a mãe, com a alegria de quem tinha o seu primeiro filho:
- Bonito, não é?
- Ora, uma belezinha. Já sabia que irias fazer uma joia.
- E agora; Vou vender e fabricar outros. Mas por quanto, mãe?
- Cinco mil reis, mais ou menos. Vale até mais. Aquele que te dei custou quatro. Pede mais um pouco, mas antes espere que os meninos vejam. Daí saia às encomendas.
            Ora, não demorou e as cinco pratas estavam no bolso. Deu-os a mãe para guardar, comprar as coisas, se precisasse. E Carrapeta tocou o serrote pra frente. Serrou madeira para três carros. Só depois começaria a montagem. Já adquirira prática. E Carrapeta não parou mais e passou a fabricar automóvel também e outros tipos de brinquedos, inclusive “Mané Gostoso” que dava pulos do demo e carrinhos de duas rodas de varinha para menino empurrar. Fabricava tudo quanto via. Adquiria mais ferramentas apropriadas, inclusive serra de decupagem. Era o menino mais rico do povoado.
A notícia corria da engenhosidade de Carrapeta. E foi daí que a sorte lhe bateu a porta. Os carinhos já envernizados e atraentes despertavam a atenção de quem ia a Marmeleiro. E um belo dia chegou ao povoado o doutor Salvino, médico da Saúde Pública da capital. Viu os brinquedos do Carrapeta e foi falar com a mãe dele.
- Olhe dona, seu filho é um artista. Quero levá-lo para a escola de artífices da capital para se aperfeiçoar. Tomo conta dele. Não terá que se preocupar. Virá passar as férias aqui. Virei trazê-lo.
E lá se foi Carrapeta, com saudade da mãe, mas ia ter sua oportunidade de aprender mais e mais. E lá se foram três anos de aprendizagem.
Dr. Salvino trouxe de volta Carrapeta com uma proposta do diretor da escola, Carrapeta poderia continuar na escola como monitor, auxiliar no artesanato.
 No entanto Carrapeta preferiu ficar em Marmeleiro e instalar sua pequena indústria de brinquedos. Não somente por apego a terra, mas, sobretudo para permanecer perto de sua mãe, que não desejava sair em hipótese alguma. Tinha suas amizades, sua boa freguesia e o clima lhe conservavam saudável.
Carrapeta agradeceu e começou a planejar sua tenda de trabalho. Agora sim, poderia ter auxiliares, treinar meninos, vender seus brinquedos para outras cidades, em grosso. Não tinha ambição. O que lhe empolgava era contribuir para alegria da criançada, ganhando o bastante para viver. Com algum conforto. E não errou nos prognósticos. Os negócios prosperavam. Comprou uma máquina de costura elétrica e deu-a de presente a mamãe.
Já ninguém, depois de algum tempo, o chamava de Carrapeta. Simplesmente era mestre Carrapeta. Inventava novos tipos de brinquedos e sempre tinha novidades para a meninada. Brinquedos envernizados, pintados e coloridos. Os auxiliares faziam tudo. O mestre apenas planejava e comercializava.
Era uma terça-feira. Carrapeta levantou-se com o raiar do sol. Tomou o seu café com bolacha seca e pão doce. Parecia imaginar qualquer coisa importante. Ao acordar à noite percebera que sua mãezinha costurava até muito tarde. Sentia que ela estava se sentindo cansada. A expressão dos olhos denunciava isso. Quase sempre parecia estar vendo as coisas bem distantes, para lá do horizonte. E então, chamou:
 - Mãe, ou mãe?
- Estou aqui filho.
E Carrapeta foi se chegando, sutil com quem quer apanhar uma borboleta de asas azuis.
- A senhora trabalhou até tarde da noite, mãe! Eu vi.
- Medo, meu filho, que nos falte alguma coisa.
- Pois é mãe, daqui por diante, as despesas da casa ficam exclusivamente comigo. Fecha a máquina e costure apenas nossas roupas. Já tenho rendimentos para o custeio e, além disso, a obrigação já é minha. Completei dezoito anos. Quando estiver com saudade do ruído da máquina, que nos deu tanto, em suas mãos, sente-se nela e pedale costurando qualquer coisa para seu uso. E na mesinha da máquina, ao lado dela, coloque a santinha de sua devoção e uma florzinha do pé de bugarí...
Até agora a nossa vida foi com a senhora, de hoje pra sempre será aqui com o mestre Carrapeta. Não quero vê-la olhando distante e nem pedalando para vivermos. Quero vê-la sim sorrindo e cantando, como eu, que tenho a mãe mais bela, mais santa e melhor deste mundo. Estas me ouvindo dona Maria Rosa!
- Cuida em te casar Carrapeta!...
- Não, mãe. Não dá! Tenho ciúme de mulher bonita e medo de mulher feia...

*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

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