AGOSTINHO*
João
Henriques da Silva
(In
Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)
Agostinho começara sua vida como caixeiro, um
menino ainda, para ajudar a mãe viúva e cheia de filhos. Levava semanalmente o
seu salário para as compras minguadas que haviam de sustentar a família com
mais o pouco que Dona Tilinha ganhava com o seu fabrico de cocadas, bolinhos e
tapioca. Era tudo tão pouco, para aquelas seis criaturas, que afinal de contas,
não tinham culpa de terem nascidos. E Agostinho, apesar de tão jovem, pensava
porque o mundo era assim. E porque havia de morrer tão cedo, o pai de uma
família pobre. E muito pior ainda teria de ser, se viesse a perder aquele
emprego. Fazia o quanto podia para cumprir suas obrigações e ser fiel, não
dando motivo a qualquer reclamação. Quando recebia as moedas do seu trabalho
era como se fosse por uns instantes, um menino rico.
Ajudava-o a boa memória, para
guardar os preços das mercadorias e facilidade de fazer mentalmente os cálculos
e passar os trocos. Não chegava a pensar em aumento de salário. Pedia a Deus é
que lhe conservasse o emprego. Dois anos depois já ajudava a fazer as compras e
marcar as mercadorias. No fim do mês, fechou a última porta, entregou a chave
ao patrão e correu para casa. Levava no semblante uma alegria que espantou dona
Tilinha.
– O que é isto Agostinho. Viste
algum passarinho verde. E Agostinho meteu a mão no bolso e entregou-lhe o
dinheiro da semana, quase duplicado.
-
Fui aumentado, mãe. Agora poderá comprar mais alguma coisa. E tive uma idéia
que foi aprovada pelo patrão. Vou vender miudezas nos domingos e feriados. Ele
me entregou as mercadorias, venderei com algum lucro e o que sobrar devolverei
a casa. Não vai ser bom? Agora, quero aquela malinha da senhora emprestada.
Depois comprarei uma ou mandarei seu Pedro, o marceneiro, fazer uma. Dependerá
do lucro.
-
E irás vender o que?
-
A senhora é quem vai escolher. Coisas que as donas de casa sempre precisam e às
vezes se esquecem de comprar.
-
Bem. Alguma delas, agente sabe, mas com o tempo irás anotando pela procura.
Olha: Linhas, botões, agulhas, alfinetes, broches, pó, sabonete, vidrinhos de
perfume baratos sem esquecer chupetinhas da vários tipos. Meninos viciados não
se calam e nem dormem sem elas. E não esqueças cadarços de sapatos, graxa, escovas
de dente e pastas. Um pouco de tudo. Mas olha uma coisa, não vendas fiado.
Senão perderás o dinheiro e o freguês. É melhor vender mais barato. Terás a
desculpa de dizer que a mercadoria não é tua e foi essa a recomendação dom
patrão.
Agostinho caiu em campo. Os primeiro
dias não lhe ajudaram muito. Já era esperado. Mas depois a coisa foi crescendo.
Os lucros compensavam o sacrifício.
- Agostinho, - dizia-lhe a mãe, -
precisas descansar um pouco, meu filho.
- Não Posso ainda, mãe, mas irá
chegar o tempo de nós todos podermos. Já possuo uma boa freguesia e quero que a
senhora, sempre que poder vá guardando um pouco. Tenho um plano para mais
tarde. Poderá dar certo e sei que dará.
Agostinho prestava contas
rigorosamente ao patrão, Senhor Adalgiso, o que lhe aumentava a confiança e o
crédito.
Agostinho já era um rapazinho
simpático, andava sempre limpo e bem apessoado, o que contribuía para ser bem
aceito e estimado. No seu bairro, quem era então que já não o conhecia e
esperava. Em sua maleta nova já iam muitos outros artigos, inclusive batom,
ruge, pó de arroz cheiroso e adornos para o cabelo. Seu segundo irmão saía com
ele para ajudá-lo e ir treinando nos negócios. Mais tarde poderia sair os dois,
cada um para seu lado.
- Olha mãe, a senhora, daqui por
diante irá ficar vendendo em casa. De começo venderá pouco, mas com paciência
chegará à freguesia. E dois meses depois já eram três a vender. Ganhava o dono
da loja e ganhavam eles.
- Mãe, essas vendas que a senhora
faz serão a semente daquilo onde pretendo chegar. Abrir nossa casinha de comércio.
Miudezas e estivas.
Agustinho andava, andava, com o olho
fixo em seus planos. Um dia chegaria à oportunidade. Tinha, entretanto uma
preocupação, não podia largar o balcão de seu Adalgiso, que lhe dera a mão e
lhe franqueara tudo. Mas havia de conciliar as duas coisas. Havia nascido homem
e sentia-se responsável pela mãe e pelos manos. Teria de vê-los, um dia,
saldáveis e felizes. Mas não pensava em riqueza. Preocupava-se, sim, em não
faltar comida na mesa e nem roupas e agasalhos para o tempo frio.
Agostinho observava que muitas
pessoas faziam-lhes compras com a visível intenção de ajudá-los de alguma
forma. Agradecia todas as compras que faziam e prometia sempre voltar. Já não
estavam mais na penúria do começo de suas lutas. E isto já lhe parecia uma
grande vitória. Nenhum dos irmãos menores botava mais aqueles olhos compridos
quando viam comida. Também não viam mais a mãe angustiada e ás vezes com lágrimas
a queimarem-lhe o rosto moreno e triste. Um grande alivio para o seu coração.
Mas Agostinho nunca se maldizia, e nem se amorteciam suas grandes e firmes
esperanças. Era uma questão de tempo e paciência. Havia de apagar todas as
rugas deixadas por sacrifícios tão grandes. Teria de ver todos os rostos
alegres e todas as bocas sorrindo. E casa vez mais se acendia em Agostinho a
chama da esperança. Pensava tudo isto consigo mesmo, para não relembrar o que
se passara. Que esperassem pela sua coragem e dedicação
Dona Tilinha fabricava seus doces e
vendia ajudada pela filha mais velha, que tomava a si as tarefas mais pesadas.
O bazarzinho de miudezas ia se afreguezando. Todas as noites e ao amanhecer
dona Tilinha fazia suas orações de ação de graças. Rezava pela sorte da
família, pela alegria que já lhes abrandava as mágoas passadas. Rezava;
sobretudo pelo filho Agostinho substituíra o pai com tanto empenho e quase
devoção.
E dona Tilinha imaginava o que se
passava com outras mães que não possuíam uns filhos iguais aos seus, filhos que
suportaram toda sorte de privações e nunca desesperaram. Filhos que lhe davam
coragem e mesmo assim, na penúria em que viveram não se maldiziam. Filhos que a
adoravam, filhos que ela abençoava a todos os momentos. Quantas famílias
Tilinha conhecia que era melhor que não tivessem tido filhos. Tinha pena dessas
criaturas infelizes que tinham de lutar pela vida e muito mais para controlar
os filhos, desastrados e desobedientes. Filhos que não sabem mais o que é um
pai, nem um mestre. Filhos que exigem aquilo a que não tem direito, nem
merecem.
Agostinho, inesperadamente, foi
despertado por um sentimento esquisito. Não que ele o tivesse motivado
voluntariamente, mas, por alguém que o desejava e o vinha seguindo a bastante
tempo, atraída não só pelos seus dotes morais, pela sua conduta desde o verdor
dos anos, mas, igualmente pela sua aparência pessoal. Agostinho reunia o que
uma moça honesta e bem intencionada poderia querer para uma convivência feliz.
Antes não tivera tempo de olhar para as mulheres pensando em casar-se. E foi numa
de suas idas e vindas visitando sua freguesia a domicílio, que notara os
olhares e os sorrisos de Jacira, uma jovem que, pela sua condição social,
estava muito acima da sua. Além disso, a família possuía uma representação
financeira invejável. Agostinho, em sua modéstia e reconhecendo sua posição,
não acreditava que fosse mais do que um gesto de simpatia e admiração pelo
esforço que fazia, tentando vencer na vida, ou uma forma educada de encorajá-lo
a prosseguir. Mas aqueles olhares e aqueles sorrisos repetiam-se todas as vezes
que se encontravam. A principio teve vontade de esquivar-se não indo, mas a
casa de Jacira. Quando se aproximava; pensava em distanciar-se, mas enquanto ia
pensando ia também se aproximando e era a primeira pessoa que via, como se o
estivesse esperando. E, então, Jacira demorava-se na escolha das pequenas
coisas que inventava de comprar. Outras vezes se entretiam a procurar artigos
que sabia de antemão que Agostinho não conduzia. A mãe de Jacira, muitas vezes
chamava-lhe atenção:
- Deixa o moço ir Jacira, vender
suas mercadorias. Ele precisa fazer seus negócios. Não tomes assim o seu tempo.
- Ora, mãe, é porque gosto de
conversar com o Agostinho, de ouvir suas explicações. É só esta vez. E que vez
era essa que se repetia sempre. E dona Almira passou a suspeitar que estivesse
havendo outra espécie de interesse. E foi então que chamou a filha para sondar-lhe
o coração. Será verdade Jacira, o que estou pensando de tuas conversas com o
Agostinho. Espero que não. Em todo caso uma mãe custa a se enganar. O que há
realmente contigo, perguntava-lhe olhando-a firmemente.
- É mãe, gosto do Agostinho. Ele me
prendeu. E eu mesma não sei o que fazer. Sei que nem a senhora, nem papai vão
aprovar e talvez achem que é doidice
minha.
- Não é possível o que estas me
dizendo. Agostinho além de viver ainda lutando pela vida, minha filha, não tem
tua condição social. Isto é um disparate. Acaba com isto. Muda de idéia,
procura um outro de tua igualha. Teu pai vai ficar desapontado. Coloca logo, -
enquanto é cedo, - um ponto final nessa doidice, nessa falta de juízo. Pois não
vês, menina, que poderás encontrar um moço de teu nível. Afinal de contas o que
esperar de Agostinho. Não tem nada para de dar. Mal tem onde cair vivo. Deus do
céu.
- Não fui eu quem o procurou e nem
foi ele quem me procurou. Foi uma simpatia que nasceu como um ramo que brota
depois de uma chuva de verão. Estava para brotar e brotou e o ramo começou a
crescer e a florar. Nem eu, nem ele temos culpa do que está acontecendo. E
agora, mãe?
- Já de disse, sai fora. Esquece
Agostinho. Olha para outros rapazes.
- Mas olho para os outros e não
vejo nada neles e quando vejo, sobre o seu rosto, só vejo o rosto de Agostinho.
Aí é que está. E por que não Agostinho? Só por que é um moço pobre? Nos outros
aspectos, quem é melhor do que ele. Trabalhador, honesto, simpático, cordial e
simples. Não tem jeito não. Já disse que foi uma coisa que nasceu dentro de
mim.
- Vou falar com Adriano. Espera o
estouro da boiada. Sabes muito bem o que ele é.
- E o que posso fazer. Fale, pois
eu mesma nem tenho coragem. Mesmo parece cedo.
Adriano chegou. A mãe de Jacira
contou-lhe tudo, minuciosamente e esperou o estouro. Sabia que iria haver
relâmpagos e coriscos.
- Terminou mulher?
- Terminei.
- Pois é. E a Jacira gosta mesmo do
vendedorzinho de miudezas? Parece-me um bom moço. E sei que é. Então, quando
pretendes que eles se casem. Arruma as coisas e marca a data do casamento.
- Estas ficando biruta, homem.
- Por quê?
- Esse mocinho é pobre, um Zé
ninguém e tens a coragem de entregar-lhe nossa única filha, assim sem mais nem
menos. Conhecia-te, outro. Criar uma menina com tanto mimo, tanto zelo e me
sais com esta. Santo Cristo.
- Olha mulher, se conseguir
convence-la do contrário, nada direi. Deixo, pois, contigo. Mas não contes
comigo. Eu já havia percebido que ela estava apaixonada pelo Agostinho e tive o
cuidado de saber quem era ele. Basta te dizer que sempre foi um ótimo filho,
trabalhador, honesto e sem vícios perniciosos. Que queres mais. Um desses
pilantrazinhos bem penteadinhos e todo engraxado, que só possuem a aparência.
Sou pelo Agostinho. E uma coisa te digo, não tentes forçar a menina. Se fosse
uma safadório aí sim, não aprovaria, mas um Agostinho, e só por ser pobre.
Pobre em dinheiro e rico em sentimentos. Toma cuidado.
Para que diabo Jacira vai querer
mais do que tem. Será que só quem tem obrigação de ser rico é o noivo. A riqueza
do noivo, isto é, a maior, é o caráter. É faça-me o favor de não me envolver
nas suas tramas contra Agostinho.
E neste exato momento Jacira vai
chegando. Notou a fisionomia da mãe, transtornada, mas o pai recebeu-a com um
sorriso.
- Então, Jacira, parece-me que estás
querendo casar? Não será muito cedo, filha?
- Pode até ser, pai, mas não sei o
que me deu. Estou gostando do Agostinho, e nem sei o que vou fazer. Sei que não
vão aprovar, mas tenho que confessar minha atração por Agostinho. Mamãe ficou
zangada.
- Olha Jacira, zangada somente ela.
De mim, estou de pleno acordo. Faz o que pede teu coração e contes comigo.
Gosto do Agostinho.
- Vocês dois são da mesma estopa...
*O conto pertence ao romance “Vidas
Nordestinas”, no prelo.