segunda-feira, 22 de abril de 2013

  
DESCOBRIMENTO DO BRASIL*
22 de abril de 1500 – 22 de abril de 2013





Vicente Rodrigues Palha, frei Vicente do Salvador**

A terra do Brasil, que está na América, uma das quatro partes do mundo, não se descobriu de propósito, e de principal intento; mas acaso indo Pedro Álvares Cabral, por mandado de El-rel d. Manuel, no ano de 1500 para as Índias, por capitão-mor de 12 anus, afastando-se da costa de Guiné, que já era descoberta ao Oriente, achou estoutra ao Ocidente, da qual não havia notícia alguma, foi costeando alguns dias com tormenta até chegar a um porto seguro, do qual a terra vizinha ficou com o mesmo nome.
Ali desembarcou o dito capitão com seus soldados armados, para pelejarem; porque mandou primeiro um batel com alguns a descobrir campo, e deram novas de muitos gentios, que viram; porém não foram necessárias armas. Porque só de verem homens vestidos, e calçados, brancos, e com barba / do que tudo eles carecem / os tiveram por divinos, e mais que homens, e assim chamando-lhes Caraíbas, que quer dizer na sua língua coisa divina, se chegaram pacificamente aos nossos.
Donde assim como os índios da Nova Espanha, quando viram desembarcar nela os espanhóis lhe chamaram viracocés, que significa escuma do mar, parecendo-lhes que o mar os lançara de si como escumas, e este nome lhe ficou sempre, assim somos ainda destoutros chamados Caraíbas e respeitados mais que homens. Mas muito mais cresceu neles o respeito, quando viram oito frades da ordem do nosso padre São Francisco, que iam com Pedro Álvares Cabral, e por guardião o padre frei Henrique, que depois foi  bispo de Cepta, o qual disse ali missa, e pregou, onde os gentios ao levantar da hóstia, e cálice se ajoelharam, e batiam nos peitos como faziam os cristãos, deixando-se bem nisto ver como Cristo senhor nosso neste divino Sacramento domina os gentios, que é o que a igreja canta no Invitatório de suas Matinas, dizendo: Christum regem dominantem gentibus, qui se manducantibus dat spiritus pinguedinem, venite adoremus.
Do deus Pã, diziam os antigos gentios, que dominava e era senhor do Universo, e disseram verdade se o entenderam desse Pã divino; porque sem falta ele é o Deus que tudo domina, e apenas há lugar em toda a terra onde já não seja venerado, nem nação tão bárbara de que não seja querido e adorado, como estes Brasis bárbaros fizerem.
Bem quiseram os nossos frades, pela facilidade que nisto mostraram, para aceitarem a nossa fé católica, ficar-se ali, para os ensinarem e batizarem, mas o capitão-mor, que os levava para outra seara não menos importante, partiu daí a poucos dias com eles para a Índia, deixando ali uma cruz levantada como também dois portugueses degredados pra que aprendessem a língua, e despediu um navio a Portugal, de que era capitão Gaspar de Lemos com a nova a el-rei d. Manuel, que a recebeu com o contentamento, que tão grande coisa, e tão pouco esperada merecia.



                                                                  Pedro Álvares Cabral

*Escrito na Bahia a 20 de dezembro de 1627.
**Missionário e historiador franciscano brasileiro nascido em Matuim, nos arredores de Salvador da Bahia, considerado o autor do primeiro documento da historiografia brasileira, leitura indispensável para o conhecimento do primeiro século da vida no Brasil. Depois de estudos no Colégio dos Jesuítas da Bahia, cursou Direito em Coimbra e doutorou-se em teologia pela universidade de Coimbra. Ordenou-se e voltou ao Brasil (1587) onde exerceu sucessivamente os cargos de cônego, vigário-geral e governador do bispado da Bahia, até entrar para a Ordem Franciscana (1599). Foi guardião da Ordem da Paraíba (1603–1606), servindo na Paraíba, Pernambuco e Bahia, e viajou para a cidade do Rio de Janeiro, onde permaneceu (1607–1608) e colaborou na fundação do Convento de Santo Antonio. Foi para Portugal onde pesquisou dados para a sua História do Brasil, que concluiu em sua terra natal. No regresso definitivo à Bahia (1624) foi aprisionado na baia de Todos os Santos pela esquadra holandesa que invadiu o Brasil, mas logo foi libertado e morreu no final da década seguinte, em Salvador.
Escreveu Crônicas da Custódia do Brasil (1618), cujos originais foram perdidos, e História do Brasil (1627), encontrada nos códices da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (1881), por Capistrano de Abreu, que a publicou em uma primeira versão (1888) e numa edição definitiva (1918).
Na sua obrar relatou a história da sua terra desde o descobrimento até à expulsão dos holandeses, de uma forma rigorosa, ainda que com uma visão medieval da história, descritiva e linear, mas com o mérito de ter realizado a primeira tentativa no gênero.

Nota:
No momento da partida de Cabral um marinheiro pulou do navio fugindo para a praia, ficando na nova terra três portugueses, que talvez  tenham dado início a mistura entre os dois primeiros povos do Brasil.
Grijalva Maracajá Henriques  
Historiador






A fome Me Ensinou


A FOME ME ENSINOU*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

             Deolindo era uma dessas pessoas que nasceram sem sorte. O pai, sapateiro remendão, ganhava apenas o suficiente para manter a casa, isto mesmo fazendo uma economia de usurário.
Deolindo saíra da escola primaria e não tinha como continuar os estudos. Não lhe restava outra coisa se não ir bater sola de sapato com o pai. Não perdia, entretanto, oportunidade e colava-se aos livros. Acreditava que mesmo sem se formar poderia ser mais tarde uma pessoa letrada e de prestígio. Sua sorte poderia mudar. Não seria o primeiro. Talvez dependesse apenas de esforço e trabalho perseverante.
Com algum tempo na tenda de sapateiro, observou que a freguesia era pequena para os dois e teria que aumenta-la. E foi assim que tomara a iniciativa de fazer seu trabalho a domicílio, coisa não usual. Preparou sua tenda móvel para serviços de urgência, tais como repregar, colocar saltos e outros pequenos consertos. Aproveitava para pegar encomendas que executaria em casa. Ele ou o pai. E a coisa deu certo. Não lhe faltava trabalho e já estava indo longe. Para avisar sua passagem usava um apito fixo que poderia se ouvir longe. E assim, quando saia de uma casa já havia noutra alguém o esperando. Muitas das vezes tinha que comer qualquer coisa pela rua para poder atender sua freguesia.
Tinha sua maneira própria de cobrar. Cobrava mais, cobrava menos conforme a situação da família. Algumas pessoas lhe pagavam até mais do que cobrava. E ainda lhe pediam que não deixassem de passar sempre por ali. - Casa de muito menino, não havia sapato que durasse. Chutavam pedras e paus. - Deolindo conduzia material suficiente para os concertos e não perder tempo. Com isto sua vida e de sua família começou a mudar gradativamente. O pai teve que botar um auxiliar, para não perder freguesia. Deolindo verificou que tinha de fazer bem feito. Serviço ordinário significava perda de cliente. E o pior é que a notícia do mau trabalho se propagava rapidamente. Ao contrário, a propaganda era positiva.
            - Espera o Deolindo! Trabalha bem e não é careiro!
           O fato é que dinheiro não lhe faltava para ajudar em casa e comprar os livros. Levava uma vida humilde, mas honesta e tranquila.
Alguns comentavam: - quando se quer ser gente é assim como Deolindo. Viu que não podia estudar e dedicou-se logo ao trabalho. E pelo que se vê não está lhe faltando nada. Serviço limpo e razoável no preço. Se fosse outro estaria batendo bola ou vagabundeando, mas Deolindo não. Quando se quer ser gente é assim.
 Pela noite, aos domingos e feriados, Deolindo enfincava-se nas leituras, sobretudo de Português e História do Brasil. No entanto, História era o que, mas lhe atraia. Tinha mesmo gosto e facilmente aprendia. Os pais percebiam seu interesse pelos livros, mas não alcançavam até onde o filho queria chegar. De qualquer forma admiravam sua dedicação. Tempos depois já possuía uma prateleira cheia de livros. História e Gramática, sobretudo. Cadernos de anotações e coisas escritas. Pai e mãe não sabiam ler e toda aquela coisa servia de comentário entre os dois.
            - O menino não perde tempo. Deveria se divertir um pouco como faz os outros.
            É, Mariana. Mas deixa para lá. Ele sabe o que quer. Prefere um livro e uma caneta aos companheiros. Já é um rapazinho e não sai porque não gosta ou não quer.
            - Mas seria bom que falasses com ele, Adriano. Pode até pensar que a gente não gostaria que ele saísse.
            - Não, pai, já passo o dia pela rua e prefiro estar lendo e aprendendo alguma coisa. Quem sabe se não nos servirá depois.
Quando se tem boa memória, tem-se uma preciosidade na cabeça. E Deolindo possuía esse dom. Lia e guardava como se estivesse guardando moedas numa gaveta, por uma aberturazinha de mealheiro. Durante as horas vagas e nas refeições gostava de contar aos pais às narrativas que lia. Passou a servir de admiração e entretenimento. Ao mesmo tempo iam aprendendo fatos da História do Brasil e Universal.
            - Sabes de uma coisa, Mariana, este mocinho vai longe. É pena, não frequentar colégio.
            - É! E estive vendo que tem uma porção de coisa escrita nuns cadernos. Deve ser coisas que ele inventa. A gente pode até pedir para ele ler.
           O tempo foi se indo e Deolindo enfiado nos livros. Um dia chegou com um livrão grosso e os pais se perguntaram se ele teria cabeça para ler um livrão daquele. Era um dicionário, o pai dos burros como se costumava dizer. Deolindo explicou para que serve. E certo dia Deolindo entrou em casa com uma novidade espantosa.
            - Sabe pai, sabe mãe, vou fazer um concurso de ensinar. No colégio do estado. Então chamando quem queria se inscrever. Para ensinar história.
            - E tu sabes contar história Deolindo. Nunca te ouvimos contar história nem de Trancoso, nem de “Camonge”.
            - Não, mãe, são outras histórias. Histórias do que se passou de importante no Brasil e no mundo.
            - Está ficando biruta, Deolindo. Tem tanto doutor sabido por aí e queres te meter no meio deles. Isto é doidice, meu filho. Doutor sabe tudo, Deolindo, vai passar é vergonha. Além disso, gente pobre não deve nem ir perto dessas coisas.
            - Sei não. Mas não custa tentar.  Deu, deu. Não deu paciência.
            - Olha minha gente, inscreveu-se um rapazinho filho do sapateiro e sapateiro também. Deve ser doido. Só tem o primário. Nem deviam ter aceitado. Vai ser uma palhaçada. Vão ver que nem sabe o que está fazendo. Talvez até pense que é concurso de corrida ou de queda de braço.
            - Tem nada não. Pelo menos vai dar para rir e desopilar o fígado.
            - Mas sabes que o ridículo é desumano. Não se deve fazer zombaria de ninguém. O coitado não sabe o que está fazendo. É bom adverti-lo. É ainda muito jovem para passar por tamanho ridículo. Nunca mais será gente! A menos que seja um demente.
            - Olha Deolindo, desiste dessa ideia de concurso de história. Estás equivocado. Ficarás humilhado.
            - Desisto não. Já disse que aprendi muita história em casa. E minha memória não é lá tão ruim.
            - Está bem, teimoso!
            No dia das provas, Deolindo sentou-se perto da banca examinadora. Os concorrentes comentaram e riram de si para si. Que diabo viera ver aquele fedelho de cara de anjo, numa competição como aquela. Pouco juízo e muita ignorância e teimosia. Pelo menos renderia assunto para algumas semanas.
            Deolindo fez de propósito. Foi o primeiro que entregou a prova. Pediu licença e saio para aguardar à outra.  A prova oral seria logo após a correção da primeira que era eliminatória. E Deolindo não fora eliminado como esperavam. A coisa criou pulga na orelha. Não era possível. Só poderia ser brincadeira da banca examinadora. Que diabo queria fazer com o rapazinho teimoso. Não iriam concordar com zombaria.
            - Olha, pode não ser. Ás vezes o coelho corre de onde se pensa que não há. Já têm acontecido coisas assim. Quem sabe lá se os bobos não somos nós. Presta atenção. Uns já foram eliminados e Deolindo não. E é bom que tomemos cuidados, para evitar uma dura surpresa desagradável.
            - Estás brincando, hein?
            - Sei lá? De mim te digo que não tenha medo, mas aquele pivete pode muito bem ser uma criatura dotada, um privilegiado.
            - Ele confunde História do Brasil com história de Trancoso e de Pedro Malazarte...
            - Pensei assim, antes, mas agora que o mocinho já está aprovado na eliminatória. É melhor ninguém rir antes de tempo.
           Começou a oral e Deolindo ficou para último. Deveria ser mesmo para um arremate pitoresco. Calado, pensativo, Deolindo aguardava sua vez. Nem ria, nem chorava como se costuma dizer com as pessoas impassíveis. E afinal chegou sua vez. Entregou o trabalho de livre escolha, e ficou em pé apesar de o mandarem sentar-se.
            - Muito bem, senhor Deolindo. Estamos chegando ao final. O senhor já logrou aprovação na primeira prova. Esperamos que tenha sorte na última. Quer expor a matéria ou prefere perguntas.
            - Os senhores são quem escolhem. Para mim será a mesma coisa.
            - Então, vamos às perguntas.
            E foi aí que veio a maior surpresa. Deolindo era tão claro e tão incisivo que surpreendeu a todas. Perceberam então que não era história de Trancoso, nem de Pedro Malazarte. O menino, como diziam, era um cobra na matéria. E como poderia ser se não frequentara escolas além do primário e levava a vida remendando sapatos. Que milagre era aquele. Já não havia a menor dúvida de que o lugar seria dele, o que foi confirmado três dias depois.
            Deolindo visitou toda sua clientela para avisar-lhe que deixaria a profissão. Havia sido nomeado por concurso, professor de História. No entanto iria deixar alguém em seu lugar. O ajudante do pai substitui-o e seu Adriano chamou outro para ajudante.
            Na cidade não se fala de outra coisa. O Deolindo ganhou o concurso para professor do ginásio. Derrotou, sem se esperar, os mais sabidos da terra. Menino danado. Não se sabe com quem aprendeu. Outros poderiam fazer à mesma coisa, mas o que se vê é pai pagando colégio sem resultado. Muitos gastaram a mesada em farras e quando conseguem um diploma, não vale uma titica. Perdeu-se logo na vida prática e há bacharéis que não sabem nem copiar um requerimento. Menino danado. Remendando sapato para viver e ter tantos conhecimentos de história. Só merece elogios.
            - É isto mesmo. Menino pobre, inteligente, mas, sobretudo sério e dedicado. E podem esperar uma bela carreira no magistério. As provas que fez foi elogiada. E o mais engraçado e curioso é que os concorrentes zombaram dele antes das provas. Pensavam que o jovem estava confundindo história legítima, com historias de Trancoso e Pedro Malazarte. Procuraram levá-lo ao ridículo e terminaram sobrando, desclassificados.
            Deolindo prosseguia nos estudos de português, sem esquecer o aprofundamento em História Universal. Queria ir mais longe. Sua estante de livros crescia. E já homem feito pensou nos colégios da capital e em cursos superiores, visando apenas o ensino. Esperava que houvesse algum concurso sobre História ou Português. E com algum tempo abriu-se vaga para a língua materna. Não teve dúvida em se inscrever. Era um nome ainda pouco conhecido no ensino superior e isto talvez viesse a ajudá-lo. Não lhe dariam importância e poderia pegar os concorrentes de surpresa. Preparou uma tese sobre concordância e queimou as pestanas nos estudos especialmente de certas particularidades da língua. Naturalmente se pretendessem desclassifica-lo empurrando o mais difícil poderia causar-lhe uma surpresa. Já se apercebia que a política se enfiava em tudo e ele só contava mesmo com os seus conhecimentos e suas habilidades. Tinha que estar tanto quanto possível, seguro.  A língua portuguesa era cheia de fricotes linguísticos e precisava estar afiado nas regras da última reforma. Possuía boa memória para ajudá-lo e a força de vontade era seu melhor incentivo. Se pretendesse espicha-lo iriam ver que não seria tão fácil assim. E pela segunda vez Deolindo foi aprovado. Ninguém sabia, entretanto, quantos dias, madrugadas e noites Deolindo puxava pela memória e pela inteligência para a tessitura de seus conhecimentos. Sabia o quanto lhe custara viver ao lado dos pais roendo fome e crivado de problemas. E se Deus havia lhe dado inteligência e boa memória seria certamente para usá-las. Não podia pagar professores, mas os livros lhe ensinavam tudo. Era uma questão de querer vencer, passar um pano molhando no quadro negro de seu passado de sacrifícios. Se a vida lhe tivesse sido fácil e permitido frequentar boas escolas, talvez não fosse além das coisas primárias, como é freqüente aos que não sabem o que é dormir e acordar com o estomago vazio. Era bem certo o ditado que a dor ensina a gemer. E agora estudava, lia e lia porque era agradável faze-lo, percorrer os caminhos que conduzem à sabedoria.
            Deolindo sabia, entretanto, no exercício de seu ministério, que muitos jovens careciam de livros didáticos mais claros e compreensíveis. Havia alunos de pequena capacidade de interpretação, particularmente no domínio da língua materna. Tomou então à decisão de elaborar uma gramática onde o aluno não tivesse dificuldade em assimilar conhecimentos práticos e tirar todas as dúvidas por meio de exemplos e explicações bem claras.
 O livro apareceu de surpresa e as decisões se sucederam. E, então, os alunos diziam ao professor: “Não precisa mais explicar, bastaria medir nossos conhecimentos”. Sua gramática já explica claramente tudo. Todos os professores deveriam escrever livros assim. Mas é isto mesmo. Talvez não saibam fazer e escrever e escrevem um emaranhado que complica mais do que esclarece.
            - É rapazes, aprendi sem professor e os livros me mostraram as dificuldades que os estudantes enfrentam. Fiz o que pude. E graças a Deus vocês compreendem e perdoam minhas deficiências. Na outra edição tentarei melhora-lo.
            - Ora, professor, livro como este só existe mesmo um. Este aqui. Livro de quem conhece o assunto e os alunos. Mas, afinal de contas, professor, o Senhor estudou sozinho. E por quê?
            - Muito simples muito simples.
            Não tinha dinheiro para pagar professor...
            - E professor era tão caro assim.
            - Que nada. Cobravam uma ninharia, mas se não se tinha nem o que comer. Meu pai consertava calçado. Não dava para nada. Somente depois a ajudá-lo e então não nos faltou mais o feijão... E foram tais dificuldades que me empurraram para os livros. Trabalhava e estudava sozinho, procurando um outro caminho na vida. E agora tenho a felicidade de estar aqui com vocês, transmitindo-lhes o que a fome me ensinou...

Em 19.09.1986
*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

A chuva Grande


                                                   



A chuva Grande*
João Henriques da Silva**
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


 Dia de sábado, perto de uma hora da tarde. Estava-se num período de seca como pouco se tinha visto, faltava-se água para os bichos e mandava-se apanhar para beber com mais de uma légua numa cacimba no topo de um imenso bloco de granito. Água finíssima. Era comprada. Pagava-se por lata ou ancoreta.
Meu pai havia escavado uma cacimba bem no bojo do açude novo. Difícil do gado descer para beber. Naquele dia, desceu uma vaca magra, prestes a ter cria. Não conseguiu sair. O vaqueiro conseguiu retirá-la e deixou-a pertinho de casa à sombra do “umbuzeiro cabeludo” como se chamava. Não teve jeito. Findou morrendo antes do meio dia.
O vaqueiro extraiu o bezerro e colocou-o no galpão da casa de farinha. Nesse momento, exatamente, começaram a cair grossas gotas de chuva. Repetidamente, o céu começou a despejar água, como se estivesse todo furado.
Chuva sem vento, sem trovão, uma tromba d’água. Foram duas horas e cinco minutos de destampatório. As xiringas d’águas caiam verticalmente. Não se via mais chão. Era por toda parte um lençol d’água. Com meia hora de chuva, já se ouviu o estouro do açude novo que não era lá tão pequeno.
 A avalanche cortou-o bem no meio da barragem. E quanto mais tempo passava, mais água caía. Meu pai não estava em casa. A chuva era localizada. Menos de meia légua em raio.
Se não fora a tranqüilidade com que caía, teria se arrasado tudo. Já no meio da chuva para o fim, chegou o Sr. Francisco Patrício que vinha prestar socorro.
 Sabia que estávamos em casa sós com minha mãe. Tinha feito uma volta imensa procurando por onde passar. Felizmente encontrou todos em paz. Minha mãe, coitada, ora rezava no quartinho dos santos, ora corria de um lado para outro para nos proteger.
 Uma santa. Com a chegada do senhor Francisco Patrício, todos se acalmaram mais. Era um homem corajoso e muito amigo da família. Era um amigo e compadre.
Depois da chuva, meu pai chegou. Lá na cidade e por perto não havia caído uma gota d’água. Ficou surpreso e espantado com o dilúvio.
 Começaram, então, os boatos.
- Foi castigo em cima do Coronel Virgolino. Como não chovia, ameaçava furar com uma vara as nuvens que por ventura paravam.
 É pouco, para não zombar com as coisas de Nosso Senhor. Está pensando que castigo é só pra gente pobre, hein!
 Nós, todos os filhos, tínhamos pena e aflição de minha mãe. Rezava, rezava e quanto mais rezava mais chovia.

*O conto pertence ao livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

**Meu pai nasceu na Fazenda Arara, Município da cidade de Esperança Paraíba, onde ocorreu esta tromba d’água.

sábado, 6 de abril de 2013

Agostinho




 AGOSTINHO*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)


 Agostinho começara sua vida como caixeiro, um menino ainda, para ajudar a mãe viúva e cheia de filhos. Levava semanalmente o seu salário para as compras minguadas que haviam de sustentar a família com mais o pouco que Dona Tilinha ganhava com o seu fabrico de cocadas, bolinhos e tapioca. Era tudo tão pouco, para aquelas seis criaturas, que afinal de contas, não tinham culpa de terem nascidos. E Agostinho, apesar de tão jovem, pensava porque o mundo era assim. E porque havia de morrer tão cedo, o pai de uma família pobre. E muito pior ainda teria de ser, se viesse a perder aquele emprego. Fazia o quanto podia para cumprir suas obrigações e ser fiel, não dando motivo a qualquer reclamação. Quando recebia as moedas do seu trabalho era como se fosse por uns instantes, um menino rico.
Ajudava-o a boa memória, para guardar os preços das mercadorias e facilidade de fazer mentalmente os cálculos e passar os trocos. Não chegava a pensar em aumento de salário. Pedia a Deus é que lhe conservasse o emprego. Dois anos depois já ajudava a fazer as compras e marcar as mercadorias. No fim do mês, fechou a última porta, entregou a chave ao patrão e correu para casa. Levava no semblante uma alegria que espantou dona Tilinha.
– O que é isto Agostinho. Viste algum passarinho verde. E Agostinho meteu a mão no bolso e entregou-lhe o dinheiro da semana, quase duplicado.
            - Fui aumentado, mãe. Agora poderá comprar mais alguma coisa. E tive uma idéia que foi aprovada pelo patrão. Vou vender miudezas nos domingos e feriados. Ele me entregou as mercadorias, venderei com algum lucro e o que sobrar devolverei a casa. Não vai ser bom? Agora, quero aquela malinha da senhora emprestada. Depois comprarei uma ou mandarei seu Pedro, o marceneiro, fazer uma. Dependerá do lucro.
            - E irás vender o que?
            - A senhora é quem vai escolher. Coisas que as donas de casa sempre precisam e às vezes se esquecem de comprar.
            - Bem. Alguma delas, agente sabe, mas com o tempo irás anotando pela procura. Olha: Linhas, botões, agulhas, alfinetes, broches, pó, sabonete, vidrinhos de perfume baratos sem esquecer chupetinhas da vários tipos. Meninos viciados não se calam e nem dormem sem elas. E não esqueças cadarços de sapatos, graxa, escovas de dente e pastas. Um pouco de tudo. Mas olha uma coisa, não vendas fiado. Senão perderás o dinheiro e o freguês. É melhor vender mais barato. Terás a desculpa de dizer que a mercadoria não é tua e foi essa a recomendação dom patrão.
Agostinho caiu em campo. Os primeiro dias não lhe ajudaram muito. Já era esperado. Mas depois a coisa foi crescendo. Os lucros compensavam o sacrifício.
- Agostinho, - dizia-lhe a mãe, - precisas descansar um pouco, meu filho.
            - Não Posso ainda, mãe, mas irá chegar o tempo de nós todos podermos. Já possuo uma boa freguesia e quero que a senhora, sempre que poder vá guardando um pouco. Tenho um plano para mais tarde. Poderá dar certo e sei que dará.
Agostinho prestava contas rigorosamente ao patrão, Senhor Adalgiso, o que lhe aumentava a confiança e o crédito.
Agostinho já era um rapazinho simpático, andava sempre limpo e bem apessoado, o que contribuía para ser bem aceito e estimado. No seu bairro, quem era então que já não o conhecia e esperava. Em sua maleta nova já iam muitos outros artigos, inclusive batom, ruge, pó de arroz cheiroso e adornos para o cabelo. Seu segundo irmão saía com ele para ajudá-lo e ir treinando nos negócios. Mais tarde poderia sair os dois, cada um para seu lado.
- Olha mãe, a senhora, daqui por diante irá ficar vendendo em casa. De começo venderá pouco, mas com paciência chegará à freguesia. E dois meses depois já eram três a vender. Ganhava o dono da loja e ganhavam eles.
- Mãe, essas vendas que a senhora faz serão a semente daquilo onde pretendo chegar. Abrir nossa casinha de comércio. Miudezas e estivas.
Agustinho andava, andava, com o olho fixo em seus planos. Um dia chegaria à oportunidade. Tinha, entretanto uma preocupação, não podia largar o balcão de seu Adalgiso, que lhe dera a mão e lhe franqueara tudo. Mas havia de conciliar as duas coisas. Havia nascido homem e sentia-se responsável pela mãe e pelos manos. Teria de vê-los, um dia, saldáveis e felizes. Mas não pensava em riqueza. Preocupava-se, sim, em não faltar comida na mesa e nem roupas e agasalhos para o tempo frio.
Agostinho observava que muitas pessoas faziam-lhes compras com a visível intenção de ajudá-los de alguma forma. Agradecia todas as compras que faziam e prometia sempre voltar. Já não estavam mais na penúria do começo de suas lutas. E isto já lhe parecia uma grande vitória. Nenhum dos irmãos menores botava mais aqueles olhos compridos quando viam comida. Também não viam mais a mãe angustiada e ás vezes com lágrimas a queimarem-lhe o rosto moreno e triste. Um grande alivio para o seu coração. Mas Agostinho nunca se maldizia, e nem se amorteciam suas grandes e firmes esperanças. Era uma questão de tempo e paciência. Havia de apagar todas as rugas deixadas por sacrifícios tão grandes. Teria de ver todos os rostos alegres e todas as bocas sorrindo. E casa vez mais se acendia em Agostinho a chama da esperança. Pensava tudo isto consigo mesmo, para não relembrar o que se passara. Que esperassem pela sua coragem e dedicação
Dona Tilinha fabricava seus doces e vendia ajudada pela filha mais velha, que tomava a si as tarefas mais pesadas. O bazarzinho de miudezas ia se afreguezando. Todas as noites e ao amanhecer dona Tilinha fazia suas orações de ação de graças. Rezava pela sorte da família, pela alegria que já lhes abrandava as mágoas passadas. Rezava; sobretudo pelo filho Agostinho substituíra o pai com tanto empenho e quase devoção.    
E dona Tilinha imaginava o que se passava com outras mães que não possuíam uns filhos iguais aos seus, filhos que suportaram toda sorte de privações e nunca desesperaram. Filhos que lhe davam coragem e mesmo assim, na penúria em que viveram não se maldiziam. Filhos que a adoravam, filhos que ela abençoava a todos os momentos. Quantas famílias Tilinha conhecia que era melhor que não tivessem tido filhos. Tinha pena dessas criaturas infelizes que tinham de lutar pela vida e muito mais para controlar os filhos, desastrados e desobedientes. Filhos que não sabem mais o que é um pai, nem um mestre. Filhos que exigem aquilo a que não tem direito, nem merecem.
Agostinho, inesperadamente, foi despertado por um sentimento esquisito. Não que ele o tivesse motivado voluntariamente, mas, por alguém que o desejava e o vinha seguindo a bastante tempo, atraída não só pelos seus dotes morais, pela sua conduta desde o verdor dos anos, mas, igualmente pela sua aparência pessoal. Agostinho reunia o que uma moça honesta e bem intencionada poderia querer para uma convivência feliz. Antes não tivera tempo de olhar para as mulheres pensando em casar-se. E foi numa de suas idas e vindas visitando sua freguesia a domicílio, que notara os olhares e os sorrisos de Jacira, uma jovem que, pela sua condição social, estava muito acima da sua. Além disso, a família possuía uma representação financeira invejável. Agostinho, em sua modéstia e reconhecendo sua posição, não acreditava que fosse mais do que um gesto de simpatia e admiração pelo esforço que fazia, tentando vencer na vida, ou uma forma educada de encorajá-lo a prosseguir. Mas aqueles olhares e aqueles sorrisos repetiam-se todas as vezes que se encontravam. A principio teve vontade de esquivar-se não indo, mas a casa de Jacira. Quando se aproximava; pensava em distanciar-se, mas enquanto ia pensando ia também se aproximando e era a primeira pessoa que via, como se o estivesse esperando. E, então, Jacira demorava-se na escolha das pequenas coisas que inventava de comprar. Outras vezes se entretiam a procurar artigos que sabia de antemão que Agostinho não conduzia. A mãe de Jacira, muitas vezes chamava-lhe atenção:
- Deixa o moço ir Jacira, vender suas mercadorias. Ele precisa fazer seus negócios. Não tomes assim o seu tempo.
- Ora, mãe, é porque gosto de conversar com o Agostinho, de ouvir suas explicações. É só esta vez. E que vez era essa que se repetia sempre. E dona Almira passou a suspeitar que estivesse havendo outra espécie de interesse. E foi então que chamou a filha para sondar-lhe o coração. Será verdade Jacira, o que estou pensando de tuas conversas com o Agostinho. Espero que não. Em todo caso uma mãe custa a se enganar. O que há realmente contigo, perguntava-lhe olhando-a firmemente.
- É mãe, gosto do Agostinho. Ele me prendeu. E eu mesma não sei o que fazer. Sei que nem a senhora, nem papai vão aprovar e talvez  achem que é doidice minha.
- Não é possível o que estas me dizendo. Agostinho além de viver ainda lutando pela vida, minha filha, não tem tua condição social. Isto é um disparate. Acaba com isto. Muda de idéia, procura um outro de tua igualha. Teu pai vai ficar desapontado. Coloca logo, - enquanto é cedo, - um ponto final nessa doidice, nessa falta de juízo. Pois não vês, menina, que poderás encontrar um moço de teu nível. Afinal de contas o que esperar de Agostinho. Não tem nada para de dar. Mal tem onde cair vivo. Deus do céu.
- Não fui eu quem o procurou e nem foi ele quem me procurou. Foi uma simpatia que nasceu como um ramo que brota depois de uma chuva de verão. Estava para brotar e brotou e o ramo começou a crescer e a florar. Nem eu, nem ele temos culpa do que está acontecendo. E agora, mãe?
            - Já de disse, sai fora. Esquece Agostinho. Olha para outros rapazes.
            - Mas olho para os outros e não vejo nada neles e quando vejo, sobre o seu rosto, só vejo o rosto de Agostinho. Aí é que está. E por que não Agostinho? Só por que é um moço pobre? Nos outros aspectos, quem é melhor do que ele. Trabalhador, honesto, simpático, cordial e simples. Não tem jeito não. Já disse que foi uma coisa que nasceu dentro de mim.
- Vou falar com Adriano. Espera o estouro da boiada. Sabes muito bem o que ele é.
            - E o que posso fazer. Fale, pois eu mesma nem tenho coragem. Mesmo parece cedo.
            Adriano chegou. A mãe de Jacira contou-lhe tudo, minuciosamente e esperou o estouro. Sabia que iria haver relâmpagos e coriscos.
- Terminou mulher?
            - Terminei.
            - Pois é. E a Jacira gosta mesmo do vendedorzinho de miudezas? Parece-me um bom moço. E sei que é. Então, quando pretendes que eles se casem. Arruma as coisas e marca a data do casamento.
            - Estas ficando biruta, homem.
            - Por quê?     
            - Esse mocinho é pobre, um Zé ninguém e tens a coragem de entregar-lhe nossa única filha, assim sem mais nem menos. Conhecia-te, outro. Criar uma menina com tanto mimo, tanto zelo e me sais com esta. Santo Cristo.
            - Olha mulher, se conseguir convence-la do contrário, nada direi. Deixo, pois, contigo. Mas não contes comigo. Eu já havia percebido que ela estava apaixonada pelo Agostinho e tive o cuidado de saber quem era ele. Basta te dizer que sempre foi um ótimo filho, trabalhador, honesto e sem vícios perniciosos. Que queres mais. Um desses pilantrazinhos bem penteadinhos e todo engraxado, que só possuem a aparência. Sou pelo Agostinho. E uma coisa te digo, não tentes forçar a menina. Se fosse uma safadório aí sim, não aprovaria, mas um Agostinho, e só por ser pobre. Pobre em dinheiro e rico em sentimentos. Toma cuidado.
Para que diabo Jacira vai querer mais do que tem. Será que só quem tem obrigação de ser rico é o noivo. A riqueza do noivo, isto é, a maior, é o caráter. É faça-me o favor de não me envolver nas suas tramas contra Agostinho.
E neste exato momento Jacira vai chegando. Notou a fisionomia da mãe, transtornada, mas o pai recebeu-a com um sorriso.
- Então, Jacira, parece-me que estás querendo casar? Não será muito cedo, filha?
            - Pode até ser, pai, mas não sei o que me deu. Estou gostando do Agostinho, e nem sei o que vou fazer. Sei que não vão aprovar, mas tenho que confessar minha atração por Agostinho. Mamãe ficou zangada.
- Olha Jacira, zangada somente ela. De mim, estou de pleno acordo. Faz o que pede teu coração e contes comigo. Gosto do Agostinho.
            - Vocês dois são da mesma estopa...

 *O conto pertence ao romance “Vidas Nordestinas”, no prelo.

O MOLEQUE SARAMPO*

João Henriques da Silva
(In Memoriam – 20/09/1901 – 16/04/2003)


            O moleque Sarampo nascera mesmo sem sorte. Filho de pai ignorado, e, a mãe fugira com um malandro qualquer, deixando-o em casa de uma vizinha. - Seria apenas por poucos dias, - dias que nunca terminavam e Sarampo teve que se valer da rua para sobreviver.
            Largara a casa da vizinha, onde era tratado com desprezo e cascou-se na rua para que desse e viesse. Dormia aqui e ali, onde o sono o pegava, como um bicho do mato. Depois de algum tempo uma preta velha levou-o para casa e deu-lhe um cantinho para dormir. Mas teria que continuar a pedir comida, alguns níqueis e roupas velhas para vestir. Dava graças a Deus ter onde se recolher quando a cidade dormia. 
            O pouco dinheiro que lhe davam, entregava religiosamente a madrinha Preta, como a chamava. E quando sobrava comida, chegava com ela em casa, para a madrinha.
            Tinha sorte numa coisa; não adoecia. A vida crua que levava era-lhe uma vacina polivalente. Passou a entender que a madrinha Preta passava fome, não tinha fumo para o cachimbo de barro e às vezes nem a panela ia para as trempes.
            Dia inteiro com o fogo apagado. Ele poderia sim, passar fome, mas aquela velhinha não poderia agüentar. E começou a esmiuçar a casa. O quarto onde a madrinha dormia era uma lástima. Uma cama velha forrada com uma esteira de carnaúba, um lençol velho aos pedaços. E naquele Cariri frio de julho, como poderia dormir aquela criatura magra e cansada.    Sarampo pensava naquilo tudo, enquanto roia um pedaço de pão que lhe haviam dado e madrinha Preta comia os restos que Sarampo lhe entregara numa lata de doce usada e sem tampa. Aquela miséria lhe obrigava a pensar, pensar no que haveria de fazer para sair daquela ruína.
            O que lhe davam era tão pouco e havia ainda de suportar as recriminações: – Por que não vai trabalhar moleque vadio, não tem pai nem mãe, seu preguiçoso?  - Doía-lhe como uma pancada na cabeça aquela situação infeliz. Nem podia atinar porque ainda viviam os dois. Ninguém acreditava nele e cada dia saía mais espantado e desiludido. Os dias amanheciam vazios e mais sombrios ainda. Chegou a pensar em furtar, levar para casa um pouco do muito que via nas mercearias: Feijão, farinha, arroz, um pedaço de carne...
            No entanto, pior seria se fosse apanhado e recolhido. Não teria mais quem pedisse para a madrinha Preta. E como iria ela viver. Teve, então, a idéia de pedir nas casas comerciais, e nas feiras. Apanhara nos terrenos baldios, sacolas de papel abandonado. E lá ia um punhadinho de feijão, um pouquinho de farinha, um naco de carne do Ceará, uma colher de café e outra de açúcar.
 - “Pra madrinha Preta que estar morrendo de fome. Ela não pode andar, nem trabalhar e está tão magrinha que faz dó”.
 Teve mais sorte. Chegava a casa com um pouco mais e que não era resto de comida.
            Não se esquecia de passar pela padaria e pedir um pão ou bolachas quebradas. Tudo servia. De volta, nas casas, depois do almoço e do jantar pedia alguma coisinha mais. Queria já crescer para arranjar trabalho e deixar de pedir.
            A madrinha teve uma lembrança:
 - Vai pedir também em casa do padre, do médico e do Dr. Juiz. É tudo gente rica. Quem sabe, Sarampo. E podem até te arranjar um emprego.
 E teve sorte. O médico chamou-o para zelar o consultório. Pagaria por semana. Mas Sarampo teve que explicar.
- Sim senhor, seria tão bom, mas tenho que pedir esmolas para madrinha Preta que me cria. Uma velhinha que vive com fome. Peço para ela comer. Ela e eu.
            - Tem nada não. Toma dinheiro e vai comprar alguma coisa. Deixa em casa, e vem para o trabalho. Varrer, espanar, fazer mandados.
            - Vou ligeiro e volto correndo!
 Saiu aos pinotes como um doido. Nem saiba o que fazer com aquele dinheiro todo, bem apertado na mão. Entrou em casa como um foguetão ou um buscar-pé em dia de festa.
            - Está aí, madrinha. O doutor me deu pra gente comprar comida e me deu um emprego. Vá à senhora comprar aí na bodega do vizinho. Hoje a gente vai almoçar do bom e do melhor. Vou correr para o consultório do doutor.
            - Como é bom ter juízo. Deu certo o que a senhora me disse. Chego para a comida. Não se esqueça de comprar sal e fumo para o seu cachimbinho de barro. E pão novo, o dinheiro dá!
            Sarampo entrou no consultório do doutor Albino como se fosse um empregado graduado. Aquilo sim era vida de gente.
Doutor Albino chamou a enfermeira e mandou-a dá sabão e uma toalha a Sarampo. Despachou para a loja a fim de comprar duas calças e duas camisas prontas e um par de botinas. Queria Sarampo limpo e apresentável. Depois do banho, veio-lhe a surpresa. Roupas novas. Já era luxar demais. Dalí fizera um juramento, só sairia empurrado. Tocou a vassoura, varreu tudo, espanou, passou mais um pano nos móveis, mas sem se esquecer de olhar para a roupa nova, em que estava entonado e na outra que estava guardada.
            Tudo pronto, foi ao jardim, passou para o quintal e limpou de canto a canto. Três dias depois, era somente conservar.
            - Sarampo?
            - Pronto seu doutor.
            - Donde tirastes esse nome engraçado. Quem te botou?
            - Foi o povo mesmo. Eu acho que era de tanto andar pedindo. Sarampo não é doença que pega no ar?
            - E o teu nome mesmo, como é?
            - Abílio. José Abílio. Mas é melhor me chamar mesmo de Sarampo. É mais fácil e todo mundo já me conhece assim. Sarampo...
            Sarampo era ligeiro como um raio. Parece que quando ia já estava de volta.
 - Vai comprar cigarro, pacote de gases, esparadrapo, algodão.
 Nem carecia de nota. Tinha boa memória. Quando a enfermeira aplicava injeção ou fazia qualquer tratamento, Sarampo estava por aí, farejando e tentando aprender.
            Algum tempo depois já era ajudante da enfermeira. Fazia curativos leves e achava graça quando o cliente gemia:
- Deixa de ser mole. Sara logo. Pior é se fosse para cortar a perna ou arrancar a língua... O doente terminava rindo.
            Quando Sarampo andava pela rua ou qualquer local e via um sujeito magro ou gordo de mais, logo aconselhava. Vai consultar o doutor Albino. Ele tem remédio para tudo. O magro engorda e o gordo emagrece. E tem uma enfermeira que vale a pena ver. Vai lá enquanto é tempo, mesmo que seja só para ver a enfermeira... É mais bonita do que eu.
            Com algum tempo ninguém mais reconhecia a madrinha Preta. Vestira os ossos da carne, pisava firme e tornara-se alegre. Tinha uma cama com colchão de lã e um cobertor novinho em folha. Sarampo dormia em rede de varanda e a casa havia recebido uma mão de cal.
            Doutor Albino lhe mandava fortificantes que a tonificavam. Sarampo, gordo lustroso, freqüentava escola à noite e terminou cursando enfermagem, onde se diplomou. Doutor Albino empregou-o na Casa de Saúde, onde ele se dizia rico.
            Mas não deixava o seu protetor hora nenhuma. Parecia andar de ouvidos no ar e sondar os seus desejos. Quando pretendeu se casar correu lá a lhe pedir conselhos.
            - Vai te casar com moça branca, sarampo. Achas que dará certo. Por que não formas um parzinho igual?
            - É doutor não há mais jeito. É grande a paixão dos dois.
            - É filha de quem Sarampo?
            - Aí é que está o problema. É filha do senhor Pedro Ferreira, comerciante.
            - O que, Sarampo?
            - Verdade, doutor. Foi ela que me buscou. E a família sabe e aprova.
            - Você merece sarampo; uma boa moça mesmo.
- E sabe. O senhor vai ser meu padrinho. Também já não sou mais o moleque sarampo. Agora sou José Abílio, nome de gente branca, não acha?
            - Bem se é assim, seja feita tua vontade.
            E lá passou o moleque Sarampo de braço com uma moça branca e bonita todo cheio de amores.
            - Confio em Nosso Senhor e no doutor Albino. Acho que estou certo. Só quero é que os meninos puxem a beleza dela. Lá em casa, de gente feia basta um... Já aluguei casa e não quero móveis velhos. Tudo do bom e do melhor em homenagens a santinha Maria...
Em, 16.7.1986
*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo