O ROÇADO*
João Henriques
da Silva
(In Memoriam
20/09/1901 – 16/04/2003)
Ananias saiu da escola porque não
tolerava leitura, nem conta. Muitos pensavam que era burrice; e, a professora
dona Marieta tinha pena do pobre coitado que havia nascido sem memória e sem
inteligência. Era mesmo de fazer dó, aquele tapume mental. Por mais que
explicasse as coisas repetidamente era como se estivesse pregando no deserto.
Nem uma lição certa. Na tabuada pior ainda. Baralhava tudo, metia os pés pelas
mãos, confundia os números mais simples.
Seu problema era sair da escola, e,
cuidar daquilo que lhe apetecia. E como nada lhe entrava no bestunto, deixou as
aulas de dona Marieta e as caminhadas diárias do sítio do pai à cidade.
O caderno, cartilha e a tabuada lhe
pesavam demais. O que queria mesmo era ter o seu roçadinho de milho, feijão e
melancia. Plantar algumas fruteiras e viver sem o atropelo da escola. Não podia
haver coisa mais enjoada do que a escola. Decorar aquelas garatujas, dar as
lições e sem atinar para que; já sabia falar e dizer o que lhe convinha. Todo
mundo lhe entendia. E então, para que a tal leitura. Burrice legítima. Era
coisa só e só para quebrar a cabeça. Para trabalhar e mais tarde arranjar uma
namorada, não necessitava de letras.
O pai estava ali, sem saber sequer
assinar o nome e tinha propriedade, casa para morar, um bocado de vacas, cabras
e ovelhas. E então? Ter que agüentar a chateação de dona Marieta, com aqueles
olhos miúdos e lábios finos e secos, dando-lhe gritos, mandando-o estudar. Porque
não procurava outra coisa para fazer. Além disso, dois mil réis por semana que
saía do bolso do pai. Seria muito mais certo que os desse a ele para comprar
doce-seco e cocada. Isto sim valeria à pena.
Quando saiu da escola, benzeu-se às escondidas e rendeu graças a Deus.
- Pai me dê um cantinho de terra
para fazer meu roçado. Lá naquela terra nova da broca. Não tenho cabeça para os
estudos, mas talvez dê para a plantação. Eu mesmo quero é plantar, limpar e
fazer a colheita. Vou ganhar dinheiro.
- O meu gosto e de tua mãe é que
estivesse na escola, pra não cresceres burro como o teu pai. Não sei ler um
bilhete.
- O senhor não lê, mas fala, diz o
que quer. Tem terra, gado, roçado e tem muita gente que sabe ler, sem ter um
pau para dar num gato.
- Vem cá, Ananias. Conta mesmo à
verdade. Não acredito nessa tua falada burrice.
- É pai. Sou burro não. Não gostava
daquilo. Só servia para atrapalhar minha vida. Tinha tanto desgosto. E não é
assim mesmo quando a gente tem que fazer alguma coisa que não gosta.
- Não acredito nesta tua roça.
Estudar que não pesa, largastes pra lá, quanto mais o cabo do freijó.
- Tenho forças nos braços. A cabeça
é que se cansa com aquela letraria ingresiada.
- Pois bem. Vais ter o teu roçado e
num local dos melhores. Vamos ver a tua disposição.
Ananias enfiou a enxada na terra.
Preparou a rigor para semeá-la quando as chuvas chegassem. Tudo limpinho e
ciscado. O pai ficou até com inveja do trabalho do filho. Era só esperar pelas
trovoadas. As sementes estavam reservadas e catadas. Sem podres e sem chochas.
Deu um solzinho nelas para aquecê-las. Deveria ser bom. Todo mundo gosta de um
pouco de sol. Teve vontade de semear no seco, mas poderia chover pouco e não
dar para nascer. Era melhor mesmo aguardar. Havia de chover forte para molhar a
terra, bem molhada.
Ananias acordou certa noite com o
estalo do trovão e o aguaceiro caindo. Bem sabia que não faltaria chuva para
plantar o seu primeiro roçado. Havia de mostrar que renderia mais do que a
Escola de dona Marieta, ensinando a ler e escrever gastando o dinheiro do pai.
A roça iria ver. No fim do ano teria
dinheiro para comprar sapatos novos e se empanturrar de doce-seco e aluá. Oras
bolas, seria outra vida. De que diabo lhe serviria aprender a somar e
multiplicar sem um tostão no bolso. Somar e multiplicar o quê? Só mesmo a
cabeça de dona Marieta poderia sair tal idéia.
Entupiu a terra molhada de sementes de milho, feijão, melancia e jerimum
caboclo e de leite. Quinze dias depois já o chão mostrava as carreirinhas de
suas preciosas lavouras.
Aquilo sim era escola. Quando
estivesse com milho maduro, levaria umas boas espigas a professora que não
plantava nem coentro e tinha que comprar tudo, com toda sua sabedoria. Poderia
até passar fome ou priva-se de muita coisa. Ele não. Sem cartilha e sem tabuada,
tinha para comer e vender. Dava-lhe vontade de perguntar-lhe onde estava sua
produção. Uma fava! Ganhar um dinheiro magro para meter bobagens no quengo dos
bestas.
A coisa era mesmo plantar, ter
roçado repleto de milho e feijão, encher o depósito, ter para dar e vender. O
milharal estava pendoado e o feijão canivetado. Coisa de fazer gosto. Mas,
inesperadamente as chuvas pararam. Ananias assustou-se. Andava caldo e ouvia as
lamentações do pai e dos vizinhos.
- Parece que vai se perder tudo.
Mais uma ou duas semanas de verão e lá se foi tudo quanto “Marta fiou”!
Ananias não dormia direito. Temia o
fracasso e lembrava-se de suas intenções para com a dona Marieta. Nem uma
tamboeira de milho e nem leitura. Um desastre dos diabos. E não choveu mesmo. O
cariri era isso assim. Preparar a terra, semear, tratar da lavoura e perder o
trabalho. O que sobrava eram apenas os retraços para o gado comer.
Ananias não tinha gado. Andava
triste, macambúzio, sem dizer nada a ninguém. Fora de má sorte. Dona Marieta continuava
dando as suas aulas e formando a meninada para o dia sete de setembro e nas
procissões da Igreja.
Ananias vestira roupa nova porque o
pai lhe comprara. Teve inveja dos ex-colegas uniformizados, marchando pelas
ruas principais da cidade. Olhou para as mãos e estavam grossas de calos.
Metera a mão no bolso e tinha apenas as moedinhas que a mãe lhe dera para os
doces secos e o aluá. Por falta de uma chuvinha à-toa estava ali deprimido, de
cara pro ar.
No desfile iam faixas em letras
graúdas. Não sabia o que elas diziam. Era como estivesse olhando para sua
ignorância. A enxada não lhe deu milho, nem feijão. As abobreiras não vingaram.
Os alunos que desfilavam, o olhava com um rizinho safado, e zombeteiro.
Traduzia aquilo como se estivesse chamando de burro.
- Olha aí, meu filho. Bem que
poderias estar marchando também. Não é tão bonito? Sabem ler, sabem contar e
mais tarde poderão até se firmar. E tu, nem estudo nem lavoura. O que pensas
disso?
- Vou plantar de novo. Há de chover!
- E porque não faz as duas coisas,
menino teimoso? Queres te criar bruto como um toco de roçado?
- Não mãe. Não gosto de escola e não
aprendo nada. A cabeça não dá.
- Dá sim. Bastará um pouco de
esforço e boa vontade. Poderás não ser dos primeiros alunos, mas pelo menos não
ficarás como um jegue que só sabe rinchar, não muda o tom. Teu pai fica sempre
acabrunhado quando pedem para assinar qualquer coisa. Tem que botar o dedão
melado de tinta e exigem testemunhas. E já me pediu para lhe ensinar a assinar
o nome. E vai aprender. Deixa essa história de roçado, numa terra que só chove
por acaso. Pelo menos, muda para criar algum bicho que coma o mato do campo. As
poucas chuvas criam alguma coisa.
- Mais uma vez só, mãe. Se não der
certo volto para a escola de dona Marieta.
E no ano seguinte estava o roçado
todo plantado e as lavouras crescidas. Mas as chuvas foram escassas e produção
mixurucas. Não pagava o trabalho e as sementes.
É, mãe. A senhora tinha razão. Vou para a escola.
Aprender qualquer coisa para ter ao menos um emprego.
Ananias matriculou-se. A turma comentava as escondidas. Chegou o jerico,
o tapado. Pelo menos será uma distração. Dona Marieta vai ficar fina para
enfiar qualquer coisa naquela cabeçota de pedra de mármore.
Mal sabiam que Ananias não era como
pensavam. Não aprendera antes muito de indústria. Gostava era da vidinha do
campo, com a cabeça cheia de doces ilusões. O destempero das chuvas tirou-lhe a
graça.
Somente a experiência despertaria
para a realidade. Que sabia das coisas era mesmo quem já havias passado pela
vida prática. Não acreditara nos conselhos dos pais, e atolara-se até as
orelhas. Como havia muita gente tola e pretensiosa.
Decorrido o primeiro mês de aula, Ananias
causava inveja aos colegas. Tinha as lições na ponta da língua e era mestre na
tabuada. Dona Marieta estava impressionada. O burroíde de dois anos atrás dava
quinau em todo mundo. Certamente dera também um estalo no quengo, como acontecera
com o padre Vieira. Ananias não se orgulhava do que sabia e aprendia. Comportava-se
com a maior naturalidade, como se não houvesse mudado. Não tinha pretensão de
saber mais do que os outros, mas destacava-se e recebia elogios de dona
Marieta. A roça lhe ensinara outros caminhos. Boa memória e inteligência não
lhe faltavam. Achava antes, que se poderia viver melhor sem as tais letras. E o
que lhe aconteceria depois. O pai destripava-se, mas haveria de formá-lo em
alguma coisa. E mandou-o para outros colégios e para a escola de farmácia.
Depois do diploma, abriu uma botica, farmaciazinha com poucos vidros e tinturas
para manipulação.
O dinheiro foi entrando e a botica
foi crescendo. Especializou-se em curativos e injeções. O povo pobre não
procurava médico. Corria para o Ananias e era certa a cura. Dois anos depois
estava com um casarão repleto de drogas. Lia, lia , lia e formulava remédios
para as pessoas pobres. Juntava dinheiro no baú de dona Amélia, sua mãe.
Chegaria ao que idealizava comprar;
uma fazendola e criar gados: bovinos, caprinos e ovelhas. Fazer, talvez, nos
bons invernos, suas roças de milho, feijão, jerimum e melancia. Haveria de
acertar algumas vezes. Tinha um plano. Comprar 12 novilhas e um burrinho para
começar. Uma dúzia de ovelhas e uma dúzia de cabras com os respectivos
reprodutores. Queria e fazia questão de ter um pai de chiqueiro especialista no
bodejar... E um dia teria de levar o milho verde de sua roça para dona Marieta.
Em casamento nem se falava. O bom mesmo era viver com os pais e a irmã que a
seu contra gosto já andava noivando.
Ananias considerava a vida de
solteiro a melhor forma de viver. Nada de atrapalho de filhos e depois poderiam
não se entender bem e teria que dar grande desgosto aos pais. Tinha o exemplo
do seu amigo Fulgêncio, casara-se por amor, segundo dizia, e andava
crucificado.
A mulher, apesar de honesta, era
exigente e ciumenta até a raiz dos cabelos. Tinha que atender em casa na hora
certinha e que Deus o livrasse de ser apanhado conversando com alguma dona,
mesmo das mais respeitáveis. Sua mulherzinha vivia espoletada e mordida. O
pobre do Fulgêncio anda sob um controle de cachorro amordaçado. Até para sair
com algum amigo, tinha que ser bem selecionado. Andar pelas pontas da rua,
mesmo a negócio, era um precipício.
Em sua casa comercial era fiscalizado
constantemente. A empregadinha doméstica era mandada freqüentemente a loja para
certificar-se se o “bicho” estava lá e com quem. Era um Deus no acuda.
- O que anda fazendo menina?
- Foi dona Florinda quem mandou
saber se o senhor estava aqui.
- Diga a ela que não estou e que nem
sabe onde fui. E veja lá. Se eu te pego!
- Pronto, patroa. Seu Fulgêncio não
estava e nem se sabe para onde foi. Está na loja apenas o empregado. E
acrescentava por sua conta e risco: “Parece que foi uma dona quem mandou
chamá-lo...”.
- O que? É hoje que bode dá leite e
macaco enjoa banana...
*O conto faz
parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.
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