domingo, 3 de janeiro de 2016

O ROÇADO


O ROÇADO*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Ananias saiu da escola porque não tolerava leitura, nem conta. Muitos pensavam que era burrice; e, a professora dona Marieta tinha pena do pobre coitado que havia nascido sem memória e sem inteligência. Era mesmo de fazer dó, aquele tapume mental. Por mais que explicasse as coisas repetidamente era como se estivesse pregando no deserto. Nem uma lição certa. Na tabuada pior ainda. Baralhava tudo, metia os pés pelas mãos, confundia os números mais simples.
            Seu problema era sair da escola, e, cuidar daquilo que lhe apetecia. E como nada lhe entrava no bestunto, deixou as aulas de dona Marieta e as caminhadas diárias do sítio do pai à cidade.
            O caderno, cartilha e a tabuada lhe pesavam demais. O que queria mesmo era ter o seu roçadinho de milho, feijão e melancia. Plantar algumas fruteiras e viver sem o atropelo da escola. Não podia haver coisa mais enjoada do que a escola. Decorar aquelas garatujas, dar as lições e sem atinar para que; já sabia falar e dizer o que lhe convinha. Todo mundo lhe entendia. E então, para que a tal leitura. Burrice legítima. Era coisa só e só para quebrar a cabeça. Para trabalhar e mais tarde arranjar uma namorada, não necessitava de letras.
            O pai estava ali, sem saber sequer assinar o nome e tinha propriedade, casa para morar, um bocado de vacas, cabras e ovelhas. E então? Ter que agüentar a chateação de dona Marieta, com aqueles olhos miúdos e lábios finos e secos, dando-lhe gritos, mandando-o estudar. Porque não procurava outra coisa para fazer. Além disso, dois mil réis por semana que saía do bolso do pai. Seria muito mais certo que os desse a ele para comprar doce-seco e cocada. Isto sim valeria à pena.
Quando saiu da escola, benzeu-se às escondidas e rendeu graças a Deus.
            - Pai me dê um cantinho de terra para fazer meu roçado. Lá naquela terra nova da broca. Não tenho cabeça para os estudos, mas talvez dê para a plantação. Eu mesmo quero é plantar, limpar e fazer a colheita. Vou ganhar dinheiro.
            - O meu gosto e de tua mãe é que estivesse na escola, pra não cresceres burro como o teu pai. Não sei ler um bilhete.
            - O senhor não lê, mas fala, diz o que quer. Tem terra, gado, roçado e tem muita gente que sabe ler, sem ter um pau para dar num gato.
            - Vem cá, Ananias. Conta mesmo à verdade. Não acredito nessa tua falada burrice.
            - É pai. Sou burro não. Não gostava daquilo. Só servia para atrapalhar minha vida. Tinha tanto desgosto. E não é assim mesmo quando a gente tem que fazer alguma coisa que não gosta.
            - Não acredito nesta tua roça. Estudar que não pesa, largastes pra lá, quanto mais o cabo do freijó.
            - Tenho forças nos braços. A cabeça é que se cansa com aquela letraria ingresiada.
            - Pois bem. Vais ter o teu roçado e num local dos melhores. Vamos ver a tua disposição.
            Ananias enfiou a enxada na terra. Preparou a rigor para semeá-la quando as chuvas chegassem. Tudo limpinho e ciscado. O pai ficou até com inveja do trabalho do filho. Era só esperar pelas trovoadas. As sementes estavam reservadas e catadas. Sem podres e sem chochas. Deu um solzinho nelas para aquecê-las. Deveria ser bom. Todo mundo gosta de um pouco de sol. Teve vontade de semear no seco, mas poderia chover pouco e não dar para nascer. Era melhor mesmo aguardar. Havia de chover forte para molhar a terra, bem molhada.
            Ananias acordou certa noite com o estalo do trovão e o aguaceiro caindo. Bem sabia que não faltaria chuva para plantar o seu primeiro roçado. Havia de mostrar que renderia mais do que a Escola de dona Marieta, ensinando a ler e escrever gastando o dinheiro do pai.
            A roça iria ver. No fim do ano teria dinheiro para comprar sapatos novos e se empanturrar de doce-seco e aluá. Oras bolas, seria outra vida. De que diabo lhe serviria aprender a somar e multiplicar sem um tostão no bolso. Somar e multiplicar o quê? Só mesmo a cabeça de dona Marieta poderia sair tal idéia.
Entupiu a terra molhada de sementes de milho, feijão, melancia e jerimum caboclo e de leite. Quinze dias depois já o chão mostrava as carreirinhas de suas preciosas lavouras.
            Aquilo sim era escola. Quando estivesse com milho maduro, levaria umas boas espigas a professora que não plantava nem coentro e tinha que comprar tudo, com toda sua sabedoria. Poderia até passar fome ou priva-se de muita coisa. Ele não. Sem cartilha e sem tabuada, tinha para comer e vender. Dava-lhe vontade de perguntar-lhe onde estava sua produção. Uma fava! Ganhar um dinheiro magro para meter bobagens no quengo dos bestas.
            A coisa era mesmo plantar, ter roçado repleto de milho e feijão, encher o depósito, ter para dar e vender. O milharal estava pendoado e o feijão canivetado. Coisa de fazer gosto. Mas, inesperadamente as chuvas pararam. Ananias assustou-se. Andava caldo e ouvia as lamentações do pai e dos vizinhos.
            - Parece que vai se perder tudo. Mais uma ou duas semanas de verão e lá se foi tudo quanto “Marta fiou”!
            Ananias não dormia direito. Temia o fracasso e lembrava-se de suas intenções para com a dona Marieta. Nem uma tamboeira de milho e nem leitura. Um desastre dos diabos. E não choveu mesmo. O cariri era isso assim. Preparar a terra, semear, tratar da lavoura e perder o trabalho. O que sobrava eram apenas os retraços para o gado comer.
            Ananias não tinha gado. Andava triste, macambúzio, sem dizer nada a ninguém. Fora de má sorte. Dona Marieta continuava dando as suas aulas e formando a meninada para o dia sete de setembro e nas procissões da Igreja.
            Ananias vestira roupa nova porque o pai lhe comprara. Teve inveja dos ex-colegas uniformizados, marchando pelas ruas principais da cidade. Olhou para as mãos e estavam grossas de calos. Metera a mão no bolso e tinha apenas as moedinhas que a mãe lhe dera para os doces secos e o aluá. Por falta de uma chuvinha à-toa estava ali deprimido, de cara pro ar.
            No desfile iam faixas em letras graúdas. Não sabia o que elas diziam. Era como estivesse olhando para sua ignorância. A enxada não lhe deu milho, nem feijão. As abobreiras não vingaram. Os alunos que desfilavam, o olhava com um rizinho safado, e zombeteiro. Traduzia aquilo como se estivesse chamando de burro.
            - Olha aí, meu filho. Bem que poderias estar marchando também. Não é tão bonito? Sabem ler, sabem contar e mais tarde poderão até se firmar. E tu, nem estudo nem lavoura. O que pensas disso?
            - Vou plantar de novo. Há de chover!
            - E porque não faz as duas coisas, menino teimoso? Queres te criar bruto como um toco de roçado?
            - Não mãe. Não gosto de escola e não aprendo nada. A cabeça não dá.
            - Dá sim. Bastará um pouco de esforço e boa vontade. Poderás não ser dos primeiros alunos, mas pelo menos não ficarás como um jegue que só sabe rinchar, não muda o tom. Teu pai fica sempre acabrunhado quando pedem para assinar qualquer coisa. Tem que botar o dedão melado de tinta e exigem testemunhas. E já me pediu para lhe ensinar a assinar o nome. E vai aprender. Deixa essa história de roçado, numa terra que só chove por acaso. Pelo menos, muda para criar algum bicho que coma o mato do campo. As poucas chuvas criam alguma coisa.
            - Mais uma vez só, mãe. Se não der certo volto para a escola de dona Marieta.
            E no ano seguinte estava o roçado todo plantado e as lavouras crescidas. Mas as chuvas foram escassas e produção mixurucas. Não pagava o trabalho e as sementes.
            É, mãe.  A senhora tinha razão. Vou para a escola. Aprender qualquer coisa para ter ao menos um emprego.
Ananias matriculou-se. A turma comentava as escondidas. Chegou o jerico, o tapado. Pelo menos será uma distração. Dona Marieta vai ficar fina para enfiar qualquer coisa naquela cabeçota de pedra de mármore.
            Mal sabiam que Ananias não era como pensavam. Não aprendera antes muito de indústria. Gostava era da vidinha do campo, com a cabeça cheia de doces ilusões. O destempero das chuvas tirou-lhe a graça.
            Somente a experiência despertaria para a realidade. Que sabia das coisas era mesmo quem já havias passado pela vida prática. Não acreditara nos conselhos dos pais, e atolara-se até as orelhas. Como havia muita gente tola e pretensiosa.
            Decorrido o primeiro mês de aula, Ananias causava inveja aos colegas. Tinha as lições na ponta da língua e era mestre na tabuada. Dona Marieta estava impressionada. O burroíde de dois anos atrás dava quinau em todo mundo. Certamente dera também um estalo no quengo, como acontecera com o padre Vieira. Ananias não se orgulhava do que sabia e aprendia. Comportava-se com a maior naturalidade, como se não houvesse mudado. Não tinha pretensão de saber mais do que os outros, mas destacava-se e recebia elogios de dona Marieta. A roça lhe ensinara outros caminhos. Boa memória e inteligência não lhe faltavam. Achava antes, que se poderia viver melhor sem as tais letras. E o que lhe aconteceria depois. O pai destripava-se, mas haveria de formá-lo em alguma coisa. E mandou-o para outros colégios e para a escola de farmácia. Depois do diploma, abriu uma botica, farmaciazinha com poucos vidros e tinturas para manipulação.
            O dinheiro foi entrando e a botica foi crescendo. Especializou-se em curativos e injeções. O povo pobre não procurava médico. Corria para o Ananias e era certa a cura. Dois anos depois estava com um casarão repleto de drogas. Lia, lia , lia e formulava remédios para as pessoas pobres. Juntava dinheiro no baú de dona Amélia, sua mãe.
            Chegaria ao que idealizava comprar; uma fazendola e criar gados: bovinos, caprinos e ovelhas. Fazer, talvez, nos bons invernos, suas roças de milho, feijão, jerimum e melancia. Haveria de acertar algumas vezes. Tinha um plano. Comprar 12 novilhas e um burrinho para começar. Uma dúzia de ovelhas e uma dúzia de cabras com os respectivos reprodutores. Queria e fazia questão de ter um pai de chiqueiro especialista no bodejar... E um dia teria de levar o milho verde de sua roça para dona Marieta. Em casamento nem se falava. O bom mesmo era viver com os pais e a irmã que a seu contra gosto já andava noivando.
            Ananias considerava a vida de solteiro a melhor forma de viver. Nada de atrapalho de filhos e depois poderiam não se entender bem e teria que dar grande desgosto aos pais. Tinha o exemplo do seu amigo Fulgêncio, casara-se por amor, segundo dizia, e andava crucificado.
            A mulher, apesar de honesta, era exigente e ciumenta até a raiz dos cabelos. Tinha que atender em casa na hora certinha e que Deus o livrasse de ser apanhado conversando com alguma dona, mesmo das mais respeitáveis. Sua mulherzinha vivia espoletada e mordida. O pobre do Fulgêncio anda sob um controle de cachorro amordaçado. Até para sair com algum amigo, tinha que ser bem selecionado. Andar pelas pontas da rua, mesmo a negócio, era um precipício.
             Em sua casa comercial era fiscalizado constantemente. A empregadinha doméstica era mandada freqüentemente a loja para certificar-se se o “bicho” estava lá e com quem. Era um Deus no acuda.
            - O que anda fazendo menina?
            - Foi dona Florinda quem mandou saber se o senhor estava aqui.
            - Diga a ela que não estou e que nem sabe onde fui. E veja lá. Se eu te pego!
            - Pronto, patroa. Seu Fulgêncio não estava e nem se sabe para onde foi. Está na loja apenas o empregado. E acrescentava por sua conta e risco: “Parece que foi uma dona quem mandou chamá-lo...”.
            - O que? É hoje que bode dá leite e macaco enjoa banana...


*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.

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