terça-feira, 14 de janeiro de 2014

APRÍCIO

APRÍCIO*

João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

Magro como um galho de Jurema do Sertão em tempo de seca, de olhar desconsolado, Aprício dormia á sombra do oitizeiro da única praça da cidade de Cajueiros, com a cabecinha arruivada apoiada no braço desnutrido. Não tinha pai, não tinha mãe? Certamente que tinha, mas que só serviram para gerá-lo com um amor clandestino. Com menos de um ano, quando se acabou o leite nos peitos de Gerusa, foi deixado em casa da preta velha Alexandrina, apenas por alguns dias que nunca terminaram. Aprício nem teve tempo de guarda-lhes a fisionomia. E talvez tenha sido melhor assim. Pelo menos não deixavam saudades nem lembranças. Só Deus sabia quanto lhe custara à sobrevivência durante os oito anos, os restos de vida de Alexandrina. E quando ela fechou os olhos para não mais abri-los, Aprício andava pelas ruas a pedir para salvar-se. Ao entrar em casa com as migalhas que levava, assustou-se com as mulheres que rezavam o ato da contrição.
            Olhou para a mãe Preta que não podia mais lhe dizer nada. Ali estava a morte, como um ponto final em suas esperanças de menino pobre. Saiu para um canto e começou a chorar, vez por outra olhando para o lado de Alexandrina que já não pensava mais nele. E agora o que iria fazer Aprício que tinha medo de ficar sozinho, de dormir naquele casebre sem ouvir e sentir a presença de mãe Preta. Poderia ser que até algumas daquelas criaturas que ali estavam de condoesse dele e levasse por caridade.
            O enterro saiu sem choro, ouvindo-se apenas o falatório dos acompanhantes. A morte tinha dessas coisas. Esqueceu-se de Aprício. A morte era mais importante do que aquele ruivozinho desamparado. Mas Aprício foi indo atrás, de longe, nutrindo ainda alguma esperança de que alguém se lembrasse dele. Onde andariam o pai e mãe naquele momento de desespero. E, francamente, teve ódio dos dois. Não tinha culpa de estar ali, desamparado.
            Os outros meninos tinham mãe. Bem que via.  Mas ele, não, havia sido largado no mundo como um traste qualquer, imprestável. Também jamais iria procurá-la. E se aparecesse, fugiria de perto. O mundo não era ruim. Ruins eram as pessoas e considerava a pior de todas as criaturas era uma mãe que abandonava os filhos. Como poderia ser tão ruim assim. E senão fosse a mãe Preta, o que teria sido dele. E agora nem mais a mãe Preta para fazer-lhe companhia. Só lhe restava uma alternativa, sair se oferecendo de casa em casa para ver se alguém o queria. Mas se a mãe o atirou fora, era de imaginar os outros. Nem se lembrara de pedir alguma coisa para comer. Só o que sentia era medo, medo de que a noite chegasse e o pegasse sozinho sem ter onde dormir. Os outros meninos nem pensavam nessas coisas. Tinham mãe e casa para ampará-los. Cansado, adormecera na praça e ali estava esquecido de suas mágoas. Mas um cachorro de rua latiu pertinho dele e o acordou assustado. Olhou ao redor como se não soubesse onde estava.
            Lembrou-se de mãe Preta daquela gente que a levava para o enterro que era o enterro de sua última esperança...
            Como o mundo poderia ser tão ingrato. E onde estavam os santos para quem mãe Preta rezava. Não viam que ele não tinha mãe e que ela era que cuidava dele. Não, nem viram nada. E também não estavam vendo que ele tinha medo. Mãe Preta havia perdido todo o seu tempo com as suas rezas. E, no entanto rezava com tanta fé. Ele também rezava todas as noites, repetindo as rezas que mãe Preta ensinara. E não valeram de nada. Morreu mãe Preta e ele ficou só e com medo. Já nem falava na fome que lhe roía por dentro como um rato faminto. Aprício andou pela praça só por andar. Não tinha qualquer destino. Começou a entardecer e os últimos raios de sol já se escondiam por trás da casaria. Agora sim, ia anoitecer e Aprício não sabia nem de longe onde iria dormir. Quem passava por ali em direção a casa, nem se preocupava com ele. E resolveu sair andando.
            Anoiteceu. O meio que encontrou para aliviar-se do medo foi parar á porta da delegacia. Valer-se dos soldados. Parou ali e foi ficando.
            - Quem é você, menino. Não tens pai nem mãe?
            - Não, não tenho ninguém. A mãe Preta que me criava enterrou-se hoje. Fiquei só e não tenho onde dormir. Ainda não comi hoje.
            - E para aonde vais?
            - A canto nenhum. Não tenho para onde ir e nem tenho o que comer. Quero ficar aqui para não ter medo.
            - Toma, vai comprar alguma coisa para comer, disse-lhe o delegado.
            - Sim senhor, obrigado. Mas vou voltar não é?
            - É sim.
            Aprício saiu quase correndo ao quiosque já seu conhecido.
            - Ou dona, me de este dinheiro de comida.
            E comeu como se a fome estivesse morrendo de fome. Foi à delegacia, sentou-se no batente e ficou a imaginar coisas.        
- Bem que o senhor poderia ficar comigo em sua casa. Fazer mandados, varrer o quintal e o que me mandasse fazer. Não queria mais pedir esmolas. Tenho tanta vergonha de andar pedindo...
            Se não me quiser, mande-me para outra pessoa. Só tinha mãe Preta. Levaram para o cemitério e acabou-se tudo.
            - Tua mãe nunca te procurou?
            - Nem sei quem é. Deixou-me bem novinho e sumiu. Nem parece que tinha um filho. Deixou-me com mãe Preta e ela disse que prometera voltar logo. E se esqueceu de mim.
            - Um dia irá te aparecer e precisar de ti. Sempre é assim. Enquanto está bem, esquece. Depois aparece para se valer dos filhos. Bem, vou te levar comigo e se fores bonzinho não sairás de lá.
            Aprício teve a maior alegria de sua vida. Não iria mais ter medo de nada.
            Em casa do delegado não entrava nem assombração e todo moleque da rua teria que respeitá-lo.
 - Vai bulir não. É o menino de seu delega.
O delegado Sinfrônio, sargento de policia, entregou-o á mulher, D. Milena.
            - Está aí este menino. Não temos filho e vamos criá-lo, se concordares comigo. Foi me procurar na delegacia. Estava com fome e, sobretudo com medo. Não sabe quem é a mãe, nem o pai, foi criado por uma preta velha que levaram hoje cedo para o cemitério. Ficou só. Parece uma criatura boazinha. Vamos ver. Chama-se Aprício, de que não sabe.
            - Ótimo Sinfrônio. Estava mesmo necessitando de uma companhia. Já estava para te falar disso. Um casal sem filhos não tem certas preocupações, mas a casa da gente parece vazia. Não sei como uma mãe abandona um filho. Só mesmo uma degenerada.
- É sim. E nunca lhe deu o menor sinal de vida. Olha bem para ele. Magrinho, desconsolado, triste. Só recebia o carinho da mãe Preta como ele chamava. Vamos adotá-lo. Não temos bens para lhe dar, mas lhe daremos afeição.
            Aprício ouvia aquela conversa sem entendê-la totalmente. No entanto sentia-se o menino mais rico e feliz desde mundo. Só aquela sensação agradável de não estar só e nem ter mais medo disso, bastava-lhe e comovia-o. E não teve ouro meio senão começar a chorar baixinho, agitando o corpinho desnutrido.
           - O que é isto, menino. Não gostastes de ficar com a gente. Não iremos te obrigar. Só ficaras por tua vontade. Gostaríamos que quisesse ficar, mas somente se for do teu agrado.
           Aprício tirou as mãos do rosto, olhou para dona Milena e sorriu numa mistura de emoções.
           - Não, não senhora. Estou chorando de alegria. Alegria de encontrar quem me queira, de ter um pai e uma mãe. A senhora não pode avaliar o quanto sofri de ontem, para hoje, até a hora que cheguei á delegacia. Estava com tanto medo que até me esqueci de pedir para comer. Estava com tanto medo que fui me valer da delegacia. Passei pela casa do Padre Amaro e ele não me quis. Não tinha lugar para menino vagabundo. Disse que não era casado e que não ia quebrar a cabeça com filho dos outros. Que já era proibido padre casar para não ter responsabilidade de família. Quis contar-lhe minha história e foi logo falando que nem queria saber e quem te teve que te crie. Sei lá quem és tu, malandrinho. Dai saí com mais medo ainda. Se o padre não me queria, quem haveria de me querer. Fui me valer dos soldados pelo menos para aliviar o medo.
           - E como era tua mãe?
           - Ah! Nem sei. Era tão novinho ainda que nem me lembre do seu rosto, nem de nada. Só me lembro, e tenho saudades da Mãe Preta que me criou e acharam de carregar para o cemitério. Não sei como fizeram isto com ela e com uma criança. Andava pedindo esmolas para os dois, quando me tomou ela. Era um menino pobre, mas tinha a mãe Preta. Tinha fome, mas não tinha medo. Pois bem, não tiveram pena de mim e fecharam os olhos de mãe Preta. Nunca irei perdoar quem me fez isto. Também não vou perdoar o padre que me chamou de vagabundo. Como não tem filhos em casa, nem entende o que sofre um menino solto e abandonado como eu. E que vergonha eu tinha de ir todos os dias de porta em porta pedir comida e roupinhas velhas. E minha sorte é que nunca havia ido à casa do seu vigário. Foi o primeiro que me chamou de vagabundo e não me deu nada. E isto aconteceu quando eu mais necessitava de esmolas, justamente hoje, no dia que levaram a mãe Preta para o cemitério e fiquei só, morrendo de medo. Mas foi até bom, porque o medo me levou a delegacia e ganhei pai e mãe. Será que padre vai para o céu. Acho que não, pelo menos os da qualidade do padre Amaro.
           Chamou-me de vagabundo. Ora veja, eu pedia para comer e ele pede para viver e ficar rico. Não vou chorar mais. Mas é tão bom chorar de alegria. Agora não, mas quando estiver sozinho vou chorar mais. Tenho que chorar mais. Vou dormir de barriga cheia e sem medo. Tenho que chorar de felicidade.
          E não se conteve. Chorava e ria ao mesmo tempo.
          - Vem Aprício, vem jantar. Senta-te ali, esse será o teu lugar de todos os dias, comas a vontade. Vou fazer o teu prato. Bem, não se fala mais nos teus sofrimentos e procure esquecê-los. Agora é ir para frente.
          - E eu Posso chamar de pai e de mãe? Ou padrinho e madrinha.
         - De pai e de mãe. Queremos ter a felicidade de ter quem nos chamem assim. Sempre esperamos tanto por isso!
         As palavras mais belas do mundo são meu filho e minha mãe. Minha mãe sempre a pronuncie e ainda tenho a felicidade de chamar, mas, meu filho, somente agora, meu Aprício.
         E Aprício não teve como se esconder. Chorou novamente de alegria.
        Chegou a hora de dormir.
         - Está aí a tua cama, o teu travesseiro e a tua cobertinha de lã. Agasalha-te e dorme tranquilo. Mas antes vamos rezar uma oração, faz bem as pessoas. Pronto. Aqui não terás mais medo, não é assim?
       - Nem um tico. Tinha medo era de ter ficado só, sem a mãe Preta. A bênção mãe?
         No dia seguinte, Aprício acordou cedinho, com a carriça que cantava no quintal. Banhou-se na lavanderia e ficou-se a olhar para sua felicidade. E como aqueles ares eram agora diferentes, com o mundo sorrindo para ele. Foi ao fundo do quintal. A mangueira esta cheia de frutos, com vários caídos e espalhados pelo chão. Juntou-os e guardo-os na mesinha do alpendre. Dai por diante passou a arrancar os matos do quintal e a quebrar alguns galhinhos secos do cajueiro e da velha goiabeira. Teria de deixar tudo limpinho. Botou água nos pés de flor de D. Milena. Tirou delas as folhas secas e as flores murchas. Como era bom ter o que fazer: ter uma casa, uma mãe e um pai delegado. E ele que nunca havia sonhado com isso. Como haveria de esperar se a sua única sorte era ter ficado com a mãe Preta. E esta mesma, haviam tomado e enterrado no chão imundo do cemitério, em que enterravam toda qualidade de gente com doenças feias. A sorte da mãe Preta é que ela não sabia mais de nada.
         - Aprício?
         - Oi, mãe.
         - Já estava pensando que havias fugido. Tão cedo e não te encontrei, mas na cama. Tomei um susto medonho.
            Aprício riu.
         - Deus me livre. Sempre acordei cedinho para ir á padaria pedir um pão para mãe Preta. E o padeiro sempre me dava dois. O ruim era quando não tinha café para tomar com o pão. Mãe Preta fazia chá de capim santo, cidreira ou de folhas de laranjeiras. Eu gostava, mas ela era doida por café. Ia para rua pedir. Quando me davam ela torrava num caco de barro e saia aquele cheiro bom que enchia a casa e saía pelo terreiro. Mãe Preta ficava tão contente que só vendo. Adorava o cheiro do café torrado. Só se vendo com que gosto fazia. Era a mesma coisa quando tinha alguma coisa para cozinhar. Acendia o fogo solfejando umas coisas do seu tempo de moça. Mas havia dia que não tinha nada. Quando uma vez eu adoeci, ai sim faltava tudo. Ela saiu se arrastando para pedir qualquer coisa. E eu tinha tanta pena dela. Saía olhando para mim, como se não quisesse me deixar só.
         - Já volto, já volto Aprício. Não fica com medo não.
         - Tenho medo não mãe, dizia para não deixa-la aflita. Mas ficava com medo. Menino doente, sozinho, sabe como é. E eu tinha medo de morrer, tremendo de febre. Mas nem morri nem nada...
         Era só medo.
       - Não vamos mais falar nestas coisas. São muito tristes.
       - Sim senhora. Era só pra a senhora saber como é a vida de gente pobre como era a gente.
       - E agora, como de sente?
       - Sou o menino mais rico do mundo. Uma boa mãe e um filho de delegado, o homem mais brabo da cidade. Um luxo! Acho que os outros meninos vão ter inveja de mim. Na certa.
       - Bem, vamos preparar o café. Toma dinheiro e vai comprar o pão e um pouco de manteiga.
       - Manteiga também. Virgem Maria, nunca comi pão com manteiga. Deve ser muito gostoso...
         Aprício saiu quase a correr. Ia provar manteiga no pão. E ia imaginando coisas. Nunca esperava que sua vida viesse a mudar tanto. E ria com o prazer de ir comer manteiga e tomar café á vontade, sem ter que pedir. Agora era gente, com dinheiro no bolso, para comprar pão novinho e quente, saído do forno.
       - Toma teus pães.
       - Não senhor. Vim foi comprar. Dê-me cinco pães bem assadinhos e fofos. São para Dona Milena, mulher do senhor delegado.
       - Então, deixa escolher.
       - Agora um mercado de manteiga da boa.
       - Muito bem. Daqui para frente já sei. Não precisar lembrar. Mando do melhor, e leva esses biscoitinhos para seu delegado provar. É massa nova de primeira.
       - Estão aqui as encomendas e está aqui o troco. Estes biscoitos são para o senhor delegado experimentar. Presente da padaria.
       - Vamos, te senta para tomar café.
       - Não senhora. Tomo depois. Sou um menino “veio” á toa. Não sei me servir em mesa.
       - Aprenderás. Vai, te senta.
       Aprício estava de olho na manteiga. Que gosto teria. Dona Milena preparou o pão, aberto no meio e bem passado de manteiga,
        Uma delicia. Que coisa boa ser rico, comer pão com manteiga, sentar-se numa mesa com uma xícara de café daquele tamanho, xícara de louça. E poder comer á vontade. Pobre era mesmo uma desgraça.
        E depois do café, Aprício queria saber o que tinha a fazer. Poderia ir limpar o quintal, apanhar mangas, varrer a casa, lavar as louças.
       - Não! Da cozinha cuido eu. Trata do quintal. Quando quiseres, chupa mangas.
       Como era possível aquela fartura toda depois de tanta miséria
        Aprício foi para escola, coisa inesperada, e ninguém se esforçou mais que ele. Tinha admiração pela vida militar de seu pai adotivo. Vestiu farda e de concurso em concurso, chegou a primeiro sargento. Foi nomeado delegado de Carnaíbas, município vizinho. O ato publicado nos jornais fez a divulgação: Sargento Aprício, nomeado... Era difícil existirem dois Aprícios. Gerusa quase não teve duvida que fosse seu filho.
         Gostaria imensamente de vê-lo e de ter uma confirmação, mas não tinha coragem. E o remorso doía-lhe mais do que um espinho no coração. Dia por dia o desejo a experimentava, mas sempre recuando. Uma mãe que abandonara um filho pequenino e o seu rebento, não teria como explicar-se. E o mais grave é que vivia bem e o poderia ter criado. A culpa era só sua. O ódio que nutria do pai de Aprício, refletido no filho, não justificava o abandono de um inocente, que certamente sofrera demais. E agora Aprício não precisava mais de sua presença. Estava criado e em situação invejável. Em todo caso iria escrever-lhe. E mandou-lhe o seguinte bilhete:
- Aprício, Sargento Aprício, creio que sou tua mãe, se é que és aquele menino que deixei em casa da preta Alexandrina. Não te peço perdão porque não a mereço como não o merece, qualquer mãe que abandona um filho. Não valerá a pena me conheceres e, francamente, tenho imensa vergonha de que me vejas. Bastar-me-á, saber que vives bem e que não me odeias, pela brutalidade que cometi. Deus te acompanhe sempre. Estou bem. Não me falta nada. Apenas envelhecida, pesarosa e envergonhada por não ter sabido ser mãe: embora isto não basta para me redimir, sei que me atormentará pelo resto da vida. Deus te abençoe e te guie. Da tua mãe Gerusa, que foi tua mãe apenas para te gerar. Meu endereço é Gerusa Palmeira, Rua Prof.ª Maria das Graças, 26 Caiçara - PB.  PS: tenho vergonha de te ver, mesmo morrendo de desejos. Foi à traição do teu pai que me fez abandonar-te, como se tivéssemos alguma culpa. Ele já não existe.  Gerusa.
         Aprício ficou confuso. Como era então; a mãe o desprezara por haver criado ódio ao seu pai. O amor tinha dessas coisas estranhas. Aquela carta era uma confissão de arrependimento. E uma mãe era sempre uma mãe. Afinal de contas ele havia escapado da vida dura que tivera e agora estava bem.
         O que passava já era mesmo coisa do passado. Seria fácil imaginar o quanto sofrera a mãe para tomar a atitude de abandona-lo. E quem teria sido o seu pai. Possivelmente teria o enganado e desprezado por outra ou por mau caráter. Seria culpa da própria mãe?
          Mesmo se não fosse sua mãe, não suportava saber que uma mulher sofria. Dai pôs-se a tirar a limpo sua origem e conhecer verdadeiramente as causas que levaram sua mãe a enjeita-lo. Obteve uma licença e foi ao seu encontro. Se lhe havia dado o endereço é porque nutria esperança de que isso viesse a acontecer.
          Tão logo o sargento Aprício teve oportunidade, foi a Caiçara. E de informação em informação veio, a saber, como vivia a Dona. Gerusa.
- Ha! Sei, deve ser mesmo a mulher costureira, da Rua Prof. ª Maria das Graças. Com este nome só se conhece ela. Faz toda qualidade de roupa para mulher e homem. Não dá vencimento. Ganha um dinheirão. Ela e as auxiliares.
          O Sargento comprou pano para camisa e foi até lá. Teve uma surpresa. A Dona Gerusa era uma mulher alourada e simpática. Pela fisionomia notava-se que levava uma vida normal e despreocupada, em relação a certo conforto.
         - Sim senhor, costura, mas não poderei lhe entregar ainda hoje. Estamos cheias de encomendas. Está vendo aí o monte de cortes. E todos têm presa, dia marcado.
         - Dê um jeitinho, Dona Gerusa. Estou de viagem e não poderei demorar.
         - Vai-se ver. Abigail toma conta dessa camisa deste senhor. Mas deixa que o colarinho eu mesma corto.
           Enquanto Dona Gerusa riscava e cortava blusas e saias, conversava:
        - Sente-se aí um pouco. Sim, camisas de mangas curtas ou compridas.
        - Curtas mesmo para dar menos trabalho.
        - Pelo que se vê tem um ótimo negócio.
        - Dá para ir vivendo. Eu e estas meninas.
        - Casa própria, não.
        - É sim senhor. Fizemos economia por muito tempo e compramos. Parte a dinheiro parte a prazo. Mas está aí. Não é grande coisa, mas dá para o ofício.
       - A senhora é daqui mesmo.
       - Sou não, mas estou aqui há muito tempo. Anos e anos. Nem sei contar. No começo de minha vida fui uma mulher sem sorte. Casei-me e sofri demais. Meu marido, bonzinho no começo, findou-me deixando-me por outra. Eu era louquinha por aquele homem, cheguei a ter um filho dele. Fiquei tão decepcionada e desapontada com o golpe que sofri que nem pude mais ver o filho. Parecia-me está vendo nele a figura exata do Abreu. E num dia de verdadeira loucura, deixei-o em casa de uma preta velha, prometendo voltar logo para apanha-lo e nunca voltei; de tão traumatizada vivia. Existem feridas que nunca saram. Era uma criatura dominada pela revolta.
        O menino chama-se Aprício. Sofria muito com isto, mas nunca pude perdoar o Abreu. Não queria nada que pudesse lembra-lo. Era uma espécie de loucura. Embora a criança não tivesse culpa, como não tinha e nem tem, nunca o fui procurar. O golpe que sofri foi tão profundo que virei à cabeça. Nunca pude me dominar. Eu era tão moça, tão cheia de desilusões e de sonhos que fiquei marcada. Só depois de muitos anos me veio à reflexão. Mas aí fui dominada por outro sentimento. Sentimento de vergonha e de remorso. O que havia feito não merecia perdão. Meu filho já deveria estar grande e não deveria querer ver-me. Eu merecia e repudio dele. Coitadinho, deve ser sofrido demais. Somente há algum tempo li pelos jornais a nomeação de um sargento com o mesmo nome, para delegado. Fiz-lhe uma carta que nem sei se recebeu. E se recebeu, merecia ser rasgada sem ler. Eu não tinha mais direito em nada e ele jamais poderia acreditar que tinha uma mãe.
        Sim, não poderia ser uma mãe, mas uma espécie de demônio, ou uma louca. E nunca mais terei paz em minha vida. O senhor me vê assim, aparentando uma criatura feliz, mas na realidade sou a mulher mais infeliz deste mundo. Meu ex-marido morreu de febre. Não deve ter procurado o filho. Tornara-se uma pessoa sem entranhas.
        E nunca lhe fui infiel, nunca o trai. Quando me deixou, andei á beira do suicídio. Ainda cheguei a comprar formicida. E agora não tenho mais esperança de ver meu filho, mesmo porque não mereço esta graça de Deus. E por mais que venha a sofrer, nunca pagarei o que fiz. Sei que vou morrer me lembrando disso. E como será desagradável. Mas só pagarei assim. Nem sei que paixão tão grande era aquela que tinha pelo Abreu. Parecia uma coisa feita. Paixão que virou ódio, ódio que atingiu o meu próprio filho inocente. Quem pode saber como acontecem coisas dessa ordem. Nunca achei uma explicação. Foi tão inesperado e violento o golpe que sofria na flor de minha mocidade que cheguei a cometer tais loucuras. Meu filho jamais ira entender. E não dará mesmo para entender. Não passou por isso... Que Deus o tenha amparado e não tenha sofrido tanto. Creia que não fui eu quem fez aquilo, foi uma força estranha, uma revolta que me cegou e enlouqueceu. Só não ter coragem de ver o meu filho, já é um martírio. E também saber que ele não desejará verme. E com toda razão. Vamos cuidar de sua camisa. O senhor não tem nada a ver com os meus padecimentos e minhas desventuras. Perdoe-me. Alivia-me poder extravasar um pouco minha infelicidade. Desculpe-me, desculpe-me. A noitinha pode vir apanhar sua encomenda.
         Aprício se foi transtornado, sem saber o que fazer. Tinha suas dúvidas se ela suportaria mesmo encontrar-se com o filho de Abreu. Em todo caso ele já havia falecido e tinha que ser. Mãe era sempre mãe.
         À noitinha Aprício foi apanhar a camisa. Entrou no salão de Dona Gerusa, como um velho conhecido. Ela já estava preparada para o jantar. Convidou-o para a refeição e obrigou-o a jantar com ela.
        - Está vendo. O Abreu deixou-me só e nestas condições de abandono. Minha sorte é esta mocinha que crio e mora comigo. É como se fosse minha filha. Pergunte a ela se não sou uma boa mãe. Procuro adivinhar-lhes os pensamentos, não aparentar, mas pela doçura de ser mãe. Aí, e meu filho legítimo, como estará. Deve ter sentido muita falta de uma mãe, a mãe Preta onde o deixei não tinha nada para dar-lhe, além de carinho. Vou parar aqui para não enlouquecer. Dá para isto. Não há padre nem bispo que possa me perdoar. Mas juro-lhe que não foi por mim. Foi a traição do Abreu. Ninguém poderia me salvar, além do meu filho. Mas não posso esperar isto dele. Não o mereço. Quanto não terá sofrido pela falta de uma mãe.
        - Poderá não ser tanto assim. Por que não vai procurar. É questão de criar um pouco de coragem e deixar de ser tão pessimista. Qual é o filho que não gostaria de ver e ter sua mãe ao seu lado. O que acontece neste mundo sempre tem uma causa. Má ou boa. Há um determinismo do qual ninguém escapa. E pode ficar certa a senhora que a gente nunca faz exatamente o que deveria fazer. Há qualquer coisa que empurra a gente, tanto para o alto da montanha, donde se divisa o resto do mundo como quem se tornou um Deus, como para as profundezas dos abismos, donde só se sai com muita fé e muita coragem. Quantas vezes esse filho não terá pensado e falado na senhora. Sabe lá o que é não ter mãe. Sabe não. Eu, por exemplo, não tive mãe. Não a vi, e nem guardo na memória qualquer traço dela. E não morri. Aguentei firme, corajosamente. Não adiantava me lamentar. Mas dava toda minha vida para ter uma mãe. Se tivesse mãe não teria medo e nem frio. Mãe protege, mãe aquece.
          - È. Duas situações opostas. Uma mãe sem filho, um filho sem mãe.
          - Não, mãe eu tenho. Só não sei onde anda. Deixou-me novinho e hoje sou este homão. Sempre desejei conhecê-la pelo menos para ver como era e saber ao certo porque me havia deixado. E só depois de muito tempo consegui vê-la e sem ela saber.
        - E deixou-a sem dizer-lhe quem era?
        - Pois eu sei que morreria de desgosto se isto me acontecesse. A coisa que eu mais quero neste mundo é ver meu filho, saber como está, embora não me perdoasse. Também não merecia.
       - Mas, afinal de contas, não sei ainda o seu nome.
       - É um nome esquisito. Mas como é a camisa ficou pronta.
       - Ficou sim.
       - E seria possível, apor o meu nome.
       - Vem cá Palmira, abre o nome deste senhor na camisa.
       - Então comece. Primeiro a letra A, um p, um r, um i, um c, outro i e por ultimo um o. E no final, conhece alguém com este nome.
       - È, conheci sim é por quem morro de saudades e de arrependimentos. Mas, que fazer se não tenho coragem de vê-lo.
       - E se eu lhe disser que sou aquele Aprício que a mãe Preta criou.
       - Não, não acreditaria. Deus não tem razão para me fazer assim tão feliz de um momento para o outro.
       - Pois então, me abrace e me abençoe. A camisa foi apenas um pretexto para conhecê-la e passar a ter o que todo mundo tinha e eu não, uma mãe, sim uma mãe. Dona Gerusa desmaiou, e quando retornou, levou minutos de enlevo sem coragem de falar, ainda na dúvida de que estivesse vendo aquele fruto de seu primeiro e único amor. Caiu nos braços do filho como se estivesse se banhando num lago azul de felicidade. E não teve outra coisa a fazer senão chorar, chorar, chorar, e depois rir como uma criança pobre que recebe o seu primeiro e desejado brinquedo.

 Em 26.10.986

*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo

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