quarta-feira, 15 de maio de 2013





TRANQUILINO*
João Henriques da Silva
(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

            Tranquilino chegou a casa pela madrugada, enfiou a chave na fechadura devagarzinho para não fazer ruído e acordar a mulher. Sabia que a patroa era capaz de torcer-lhe o pescoço pela desobediência.
            Ele magrinho, uma figurinha de nada, não tinha como enfrentar fisicamente a onça que tinha em casa, mas naquele dia aventurou-se, por insistência dos amigos.
            Era uma situação difícil que lhe havia criado, uma verdadeira tentação do capeta. Mas não havia mais jeito. Procurava enxergar em plena escuridão e rezava pra que dona Mangerona estivesse ferrada no sono profundo.
No entanto, foi infeliz, tropeçou numa cadeira, derrubou-a e foi aquele barulhão no silêncio da madrugada. Ficou parado, de ouvidos abertos, rondando o ambiente. Não ouviu nada. Tranquilizou-se um pouco, mas de repente aconteceu a desgraça. A luz acendeu-se e Tranquilino foi surpreendido no meio da sala, aparvalhado. Rodou a cabeça devagarinho, com espanto nos olhos e assustado.
- Sim senhor, seu Tranquilino. Boa hora de chegar a casa. E ainda por cima de tudo, derrubando cadeiras, perturbando o sono dos outros. Que acha. Vosmecê está esquecido de que eu era o teu amorzinho, a tua queridinha e que eras somente meu?
Engraçado. Naquele tempo não me parecias ter tão fraca memória. Anda move-te daí. Vai tomar um banho com sabão de lavadeira, tirar o cheiro da farra e depois me apareças!
Fiquei só, como não tivesse dono. Perdei o sono, preocupei-me, rezei por ti, fiz o que uma esposa fiel pode fazer para resguardar o seu bem amado. E me chegas a estas horas, palitó no ombro, gravata sem nó, cheirando a bebidas espirituosas.
Mas não te preocupe, meu amorzinho. Tudo vai correr bem. Afinal de contas és o dono da casa, não achas? E a culpa é da tua mulherzinha aquela mesma que casou contigo por amor.
- Mangerona, deixa que te explique. As coisas acontecem. Não fui eu, foram os amigos que me prenderam para um bate-papo.
- Onde?
- No clube. Sabes como é. Conversa vai, conversa vem e o tempo passa sem a gente perceber. Imagina que saí só e ainda os deixei-os lá. Saí à força, só para correr para casa. Entendes?
- Vem cá.
Tranquilino aproximou-se cauteloso, com o coração do tamanho de uma moedinha de centavo.
Mangerona cheirou-lhe a roupa, o pescoço e não teve dúvida. Havia cheiro de outras mulheres. Em casa não havia daqueles perfumes, e nem era cheiro próprio do Tranquilino.
- Muito bem. Donde saiu esse perfume de pó de arroz vagabundo e esse cheirinho de loção ordinária?
- Ora, mulher. Houve dança no clube. Dancei algumas partes, mas sem qualquer intenção. Tu não me saias do pensamento, Mangerona.
- Não me adianta estar em teus pensamentos e tu agarrado com outra, seu sem vergonha. Vou tirar isto a limpo. Esta tua conversa está me parecendo furada, ouvistes?
Tranquilino escorregou-se para o banho, antes de mais perguntas indiscretas. Saiu do banheiro, como entrara em casa. Bem de mansinho. Entrou para o quarto e já encontrou Mangerona deitada, esperando-o. Tentou dormir para um lado, fechando os olhos a força, quando Mangerona chamou-o. Queria tirar a prova dos nove fora. Tranquilino fracassou. A farra e o estado emocional o deixaram em frangalhos. Tentou reagir, compreendendo a situação, mas foi tudo inútil.
- Levanta-te daí. Vai para o sofá ou para onde quiseres. Comigo não se deita um desmilinguido de tua qualidade. Eu bem sabia que ias negar fogo. Passastes à noite agarrado com tuas parceiras e chegas aqui mentindo. Não me procures mais. Queres me misturar com essas quengas da ponta da rua. Estás muito enganado.
- Juro por Deus, Mangerona, que nada aconteceu do que estás pensando.
- Pois sim, saberemos depois...
Logo depois do café, Mangerona saiu. Não disse onde pretendia ir. Informou-se. Não tinha havido festa no clube. A festa tinha sido na pensão de dona Fidoca. Pensão de mulheres. Foi lá onde estivera Tranquilino. Não havia dúvida.
O traçado Dalí por diante seria outro. Não havia se casado pra ser arrumadeira com um marido dançando com quenga e deitando-se com elas...
Calada estava calada ficou; esperando perdão ou esquecimento total. Tranquilino tranqüilizou-se. Era só desabafo, conversa fiada.
Mal sabia que a panela da vingança estava fervendo a todo vapor. Estava pertinho do almoço.
- Vem cá, Tranquilino. Vamos para o quarto. Tira a roupa, deita-te aí.
Preparou-se e deitou-se também. Tranquilino suou frio e terminou desmoralizado.
- De que diabo serviu me casar com um Zé Mingau da tua qualidade. É por isso que muitas mulheres traem os maridos. Se continuares assim. Vou me virar.
- O que é isso Mangerona? Uma mulher não deve abrir a boca para dizer semelhante disparate.
- Disparates é deixares uma mulher nova, asseada, até bonita como eu para ir se refocilar nos cabarés. E tu foste. Sei de tudo. Daqui por diante vais ver a terra tremer nos teus pés. É bom te avisar. Contarei tudo a papai se não deres conta do recado. E vou pedir para fazer uma operação em tu, uma vez que não serve para nada, dá-se fim logo a essa molambeira. Conhece papai, não é? Nem é bom imaginar. Faca cega ou Queixada de burro. Vais ver. Saia novamente à noite, chegue fora de hora e verás como se fala fino. Conheces muito bem minha raça.
- Mas mulher, não fiz nada de mal. Foi um acaso, insistência de amigos.
- Ou de amigas, seboso. Espero-te à noite. Quero ver se vais cumprir com os seus deveres. Não agüento mais. O prazo terminará improrrogavelmente à meia noite de hoje. Amanhã será tarde.
Tranquilino não via como dar conta do recado. A noite de farra pesada deixara-o na lona. E nem era isso. O pior era a insegurança em que se encontrava diante daquela pressão e do estado emocional.
O velho Madeira era afamado. Ele e a raça toda. Não fazia diretamente, mas, era useiro e vezeiro em mandar fazer. Não tinha que se meter com uma família violenta, e manhosa daquela. Sabia que o ciúme envenena qualquer um. E a dona Mangerona não era flor que se cheirasse. Bastaria uma pequena leviandade para entornar o caldo.
E tomou uma decisão. Preparou-se para fugir, caso viesse a falhar, como era provável. Já era um fraco e naquele arrocho, era quase certo.
Mas o diabo é Mangerona andava de olho nele e pressentiu certos preparativos. Percebera que havia trocado de roupa e havia apanhado dinheiro na gaveta da cômoda. Uma figurinha desmilinguida daquela, dominaria facilmente.
Tranquilino tomava garapa de açúcar para acalmar jos nervos e se exercitava psicologicamente. Mas a coisa não regia a ponto de inspirar confiança. Abriu a porta e saiu às pressas, sem que a mulher pressentisse.
Foi direto para a casa do dr. Raíz. Precisava urgentemente de revigorante. Pagava o quanto cobrasse que fosse eficaz. O doutor preparou-lhe um chá forte e deu-lhe para beber.
- Deste frasquinho aqui, beba uns quinze minutos antes do aperto. Isto é mesmo que um guindaste do cais do porto.
Tranquilino voltou exultante, com o frasquinho no bolso traseiro. Em casa, na hora prevista, bebeu o conteúdo. Procurou a mulher, fez-lhe alguns carinhos e sentiu-se preparado para qualquer eventualidade.
Inesperadamente, dona Mangerona, aborreceu-se com o alisado de Tranquilino e sentenciou:
- Não quero mais nada contigo hoje. Vai-te pra lá. Deixa-me em paz.
- Mas, Mangerona, minha nega como pode ser isso. Ora queres ora não queres. Não te entendo.
- Quem determina sou eu. Andastes pela rua. Certamente tomastes alguma porcaria. Perdestes o tempo. Quero a coisa ao natural. Conheço essa tua pressa. Sai de perto de mim.
Tudo perdido pensou Tranquilino. Ficou-se lá para um canto, pensando na vida. Não era medo da mulher, era receio de um encontro com o pai dela, bicho perverso que não ia mais mandava friamente.
Havia se casado por amor. Quase rico não interessava o dinheiro do sogro. E agora estava naquela travessia terrível. Se pelo menos fosse um homem de coragem. Mas não era. O medo o dominava inteiramente.
A mulher chama-o para o jantar. Tranquilino não se mexeu. Olhou para ela como se pede uma esmola. E foi ai que dona Mangerona teve pena dele.
- Porque não queres vir jantar, Tranquilino?
- Estou sem apetite, disse desconsolado. Não queres mais saber de mim e assim não vale apena viver. Fiz tudo pra ti agradar e me humilhastes. Só tenho uma saída. Vou me suicidar ou terei que cometer uma violência. Levou-te a força para onde eu quiser. E vou te dizer mais. É agora mesmo. Entra, vai para o quarto. Em casa que mulher é quem manda, homem não mora. Levantou-s e apontou o dedo indicador, a porta da alcova. Mangerona obedeceu como se não fosse mais ela.
- Bobagem, meu amorzinho. O que tu queres e que tua mulherzinha não quer?
E o jantar esfriou.
- Espere que vou esquentar, meu bem.
E foi assim, em circunstancias tais, que veio a luz do dia, o primeiro filho do casal, nutrido como dona Mangerona e sem nenhuma semelhança com o pai.
- Estás vendo aí, Tranquilino, deve ter a cara do sujeito que te vendeu a droga para beber. Não foi propriamente tu o autor. Zela-te para fazer alguma coisa tu mesmo.
Mas, ao mesmo tempo deixaram à porta de Tranquilino, pela madrugada, um garotinho de poucos dias que era o seu retrato. Mirinzinho, olhos castanhos e miúdos, boca pequena, orelhas iguais a dele. O nariz então era a marca registrada dele.
 Dona Mangerona viu-o primeiro. Tomou-o nos braços e correu para Tranquilino. - Que coisa estranha. Como parece contigo, Tranquilino?
- Vamos colocar noutra porta, Mangerona.
- Quem cria um cria dois. Não tem culpa de ter nascido. E mesmo faço questão de ter em casa qualquer coisa feita por ti. Vai-se saber depois que é a mãe. Em cidade pequena tudo se sabe.
Na verdade, Tranquilino já sabia. Havia sido ele quem pedira para deixá-lo em sua casa, mas negara de pés juntos. 
- Meu nada, mulher. Sempre te fui fiel. Essas coisas sempre acontecem. Não podem criar e entregam a pessoas generosas e amigas com és.
- Não te preocupes. Temo apenas uma coisa, isto é, que papai note a semelhança contigo. Sabes que ele é um puritano e não tolera traições conjugais.
- Não é meu, não é meu, não é meu, mas por amor de nosso filho legítimo, não digas a ninguém que o Aquilininho se parece comigo. Evita complicações.
- Oi, sabes o nome do menino? Estás muito adiantado. Confessa logo tua tramóia. Bastará se teu filho para aumentar o bem que terei pelo coitadinho que a mãe desprezou.
- Nada, mulher, foi o nome que me veio de repente. Mas podes mudar.
- Se é teu mesmo, foi gerado por acaso e ele não tem culpa.
- Estás louca, Mangerona.
- Não é apenas para ter recordação tua como homem. Quero prestar-te uma homenagem.
- Vou te mostra quem é Tranquilino. Da próxima vez será parto duplo. Prepara-te.
- Vou ficar esperando pelo milagre... Sem garrafada.

*O conto faz parte do livro “Vidas Nordestinas”, no prelo.













Nenhum comentário:

Postar um comentário